O Paradigma do Risco

Max Joseph von Pettenkofer (1818-1901). From Wikipedida, the free encyclopedia

No post anterior, chamei a atenção para um interessante artigo publicado em uma revista de prestígio de Medicina Interna cuja tese era: o diagnóstico rotula os pacientes inadequadamente. Em doenças de alta prevalência na sociedade industrial é mais interessante fazer a predição do risco. Segundo os próprios autores, no resumo, “this article discusses risk prediction as an alternative to diagnosis: Patient risk factors (blood pressure, age) are combined into a single statistical model (risk for a cardiovascular event within 10 years) and the results are used in shared decision making about possible treatments. The authors compare and contrast the diagnostic and risk prediction approaches and attempt to identify the types of medical problem to which each is best suited“. O interesse desse artigo é comprovar a tese de que vivemos sob o paradigma do risco. O que isso significa e quais as implicações é o que tentaremos mostrar a seguir.

Vamos acompanhar o raciocínico de José Ricardo Ayres no paper Epidemiologia, promoção da saúde e o paradoxo do risco da Revista Brasileira de Epidemiologia, 28 Vol. 5, supl. 1, 2002. Nos interessará principalmente o processo de construção histórico-epistemológica da epidemiologia do risco, como também o bastante mais aprofundado livro do mesmo autor “Sobre o Risco” (infelizmente esgotado!)
A evolução do pensamento epidemiológico pode ser dividida em três grandes períodos definidos pela completude da penetração da modernização do discurso científico que lhe servia de base. O primeiro período é chamado de Epidemiologia da Constituição (1872-1929). John Snow é quem primeiro aplica conceitos modernos de epidemiologia na epidemia de cólera da Londres vitoriana. Nesse período inicial, o Instituto de Higiene de Munique, fundado por Pettenkofer foi paradigmático. De caráter mais pragmático e atuante, ela veio modificar o pensamento epidemiológico da época por utilizar-se de uma “macrofisiologia” para explicação dos fenômenos de saúde pública, como um “Claude Bernard” epidemiológico, servindo de exemplo para fundação de importantes instituições que viriam a ter grande influência no período, como a escola de Saúde Pública da Johns Hopkins. Nessa fase, já começam a aparecer traços do risco como diretriz do pensamento epidemiológico, em substituição ao meio. Nas palavras do autor:
“O termo risco começa a surgir no jargão epidemiológico ainda em plena fase da epidemiologia da constituição, em torno dos anos 20. À proporção que o conceito de “meio externo”, relacionado a uma perspectiva mais teorética e ontológica acerca das “constituições” desfavoráveis à saúde, vai se rarefazendo conceitualmente, o risco vai se adensando, configurando uma perspectiva mais tecnicista e pragmática de tratar dos mesmos fenômenos. À medida em que o meio vai sendo marginalizado na estrutura argumentativa da epidemiologia, o risco vai definindo a sua centralidade até assumir, numa nova configuração discursiva, um papel definidor da perspectiva analítica mais característica da ciência epidemiológica.”
Continuaremos com a Epidemiologia da Exposição e Epidemiologia do Risco.

Against Diagnosis


Um artigo do Annals Internal Medicine de 5 de Agosto tem chamado a atenção dos médicos. O artigo tem o título “Against Diagnosis”( Ann Intern Med. 2008;149:200-203). Como pode alguém publicar um artigo “contra o diagnóstico”? Na verdade, a proposta dos autores, que são epidemiologistas do Memorial de Nova Iorque, é que pensar na doença em termos de predição de risco é muito mais vantajoso que pensar nela em termos de diagnóstico. Vejamos:
Para eles, existem duas vantagens principais: 1) Dado que muitas variáveis em medicina são contínuas, p.ex. glicemia de jejum, pressão arterial, etc; qual seria o nível a partir do qual classificaríamos um paciente de hipertenso ou não? Diabético ou não? 2) E se o paciente tivesse vários fatores de risco, não valeria a pena colocarmos o “sarrafo” mais acima para evitar complicações precoces? Todas essas perguntas realmente colocam em xeque a abordagem da doença via arbitrariedade do diagnóstico. O diagnóstico como ferramenta cognitiva binária não dá conta do contínuo de variáveis de um ser humano real. Principalmente quando tratamos de doenças com intervalo de normalidade arbitrário.
Talvez esse texto seja uma explícita declaração da filosofia que domina a Ciência Médica atualmente: a Epidemiologia do Risco. Tentaremos uma aproximação a esse assunto nos próximos posts.

Bias de Divulgação

Saiu na Circulation deste mês. Aparentemente, os ensaios clínicos provenientes de instituições não-beneficentes (como as Big Pharmas) têm maior probabilidade de serem citados do que os ensaios clínicos patrocinados por instituições que não visam o lucro (como universidades e o governo federal). Seria um tipo de bias de divulgação! O mais interessante é que mutatis mutandis, nas palavras dos autores:

“In marked contrast, in analyses limited to trials in which the new intervention was significantly worse than the standard of care, an inverse pattern was observed with fewer citations per publication per year for trials funded by for-profit organizations compared with not-for-profit organizations (33 versus 41; P=0.048)”(grifos meus).
Ou seja, quando o resultado não interessa…

O Canto das Sereias

Odisseu ou Ulisses, o Ninguém, é o primeiro sujeito universal cognoscente. Ao entrar em contato com o canto das sereias, misto de prazer e morte, se vê atraído pela possibilidade de conhecer o que nenhum mortal jamais conheceu. Aos companheiros, prescreve tapar os ouvidos com cera e obriga-os a remar com todas as forças de seus músculos. Para si, ordena amarrarem-no ao mastro do navio e que quanto mais gritar, mais forte o atem. E assim se fez.

A Vontade de Saber do sujeito moderno encontra suas sementes já em Homero. Ulisses usa estratagemas e artimanhas para conhecer o que não pode ser conhecido, para dominar a Natureza e, mais que dominar, tomar posse dela.

Não haveria outra forma? Não poderia haver uma “dominação passiva”, uma convivência pacífica, uma existência compartilhada?

A carnificina perpetrada pela modernidade aos mitos antigos não foi suficiente para eliminá-los. Mitos não são feitos de carne! São feitos de medo. Um tipo de medo que o conhecer não alivia…

O Relato da Queda

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: “Foi isto mesmo que Deus disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?”
Respondeu a mulher à serpente: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse: ‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão'”.
Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como deuses, serão conhecedores do bem e do mal“. Gênesis 3, 1-5.
Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo aperientur oculi vestri et eritis sicut dii scientes bonum et malum.
Tivemos que esperar Homero para podermos tolerar nossa vontade de saber…