Evidência

Talvez, essa seja uma das palavras que teve seu significado mais conspurcado na medicina nos últimos 20 anos. Grande parte dos médicos pouco sabe de sua origem. Aqui, minhas tentativas de apreender o significado de uma palavra-conceito que, de tão importante, forjou as relações entre a evidência produzida pela ciência médica, e os conceitos de verdade, validade e confiabilidade, atributos da realidade sem os quais não é possível tomar decisões. E, como sabemos, um médico é um decididor.

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Uma vez, perguntaram a Bertrand Russello que ele faria se, após sua morte, fosse levado à presença de Deus e lhe perguntassem porque, durante toda sua vida, não acreditou Nele. O filósofo e matemático inglês, ateu de carteirinha, disse que olharia bem de frente para o Criador e diria: “Sem evidências suficientes, Senhor! Sem evidências suficientes!!”A literatura anglófona dá a palavra evidence uma força que não é equivalente a sua correspondente em português: evidência. Em inglês, a palavra toma rumos quase metafísicos e dita o tom da realidade. Qualquer episódio de CSI pode comprovar isso. Basta uma evidência para que o indivíduo seja incriminado. Em português, ao menos no Brasil – e agora escrevo para meus leitores de além-mar que, descobri recentemente, não são poucos – confundimos evidência com fato. Evidência é diferente de fato. Veja-se por exemplo, ninguém fala “é evidente que chove” ou “é evidente que hoje é dia 23”, a menos que uma pergunta fora de propósito tenha sido feita e a resposta, com um pouco de ironia, tenha o objetivo de demonstrar nossa admiração ou encerrar a discussão. Não que a chuva ou a data de hoje não sejam evidentes, muito pelo contrário, elas o são em demasia. São fatos. E muito fáceis de confirmar. Um bom resumo de como a ciência utiliza esses termos pode ser encontrado aqui.

É importante frisar que evidência é uma certa experiência do pensamento e do mundo. Só poderá ser chamado de evidente um juízo acerca de algo atual ou intemporal. A existência simples é por demais evidente. Dizemos assim “é evidente que ontem choveu, pois o chão está molhado”, ou “é evidente que hoje é quinta-feira pois ontem foi quarta”. A evidência é portanto, uma relação. Segundo Fernando Gil, a afirmação “é evidente” pertence a uma família de expressões que traduzem as atitudes do locutor perante o valor de verdade de uma proposição. Esse valor de verdade que atribuímos a algumas afirmações formam um continuum que vai do evidentemente, sem dúvida nenhuma ao é duvidoso, estranhamente, passando por com certeza, aparentemente, mais ou menos, se é que, enfim, o fato é que, etc. Esse continuum é a expectativa de crença do locutor em determinada afirmação proferida. O preenchimento de uma expectativa é um dos eixos conceituais da evidência. Isso nos leva à perspectiva do sujeito sobre o estabelecimento de verdades e captação da realidade a partir do objeto e isso, eu sei, cheira bem fenomenologia. Pode-se então, entender a evidência como uma adequação entre expectativa (que não deixa de ser o desejo modificado) e a razão (aqui encarada como um pensamento com qualquer tipo de formalização). “A satisfação da evidência advém de uma compreensão que não precisa ser aprofundada: reunindo a completude da alegria (satis + facere) e a clausura de um contentamento (de contineo) que é também apaziguamento (Befriedigung).”

Apaziguamento vem de paz. Seria esse tipo de paz um daqueles que eu não deveria conservar?

Consultei

1. Gil, Fernando. Tratado da Evidência. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1996.
2. Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete “Evidência”. Pág 457-458.