Uma Redenção para a Psicanálise?
Renato Mezan [1] conta que foi Freud quem escreveu o verbete “psicanálise” para a Enciclopédia Britânica em 1923. Lá, defendeu que a psicanálise é o nome que se dá a 3 coisas diferentes: Em primeiro lugar, é um método para investigação (Forschen) de fenômenos não acessíveis por outros métodos seculares (excluindo então as possibilidades – plausíveis – religiosas e sobrenaturais de abordagem dos problemas mentais). É, também, o conhecimento obtido a partir dessa investigação e, por fim, é a aplicação desse conhecimento a situações clínicas (Heilen). A aplicação das teorias freudianas em situações não-clínicas é tão problemática quanto, por exemplo, a aplicação das teorias darwinianas a contextos não-relacionados à biologia (ver este artigo em pdf) mas, sendo áreas de integração, fronteiras de saberes, tais incursões sempre acabam por promover novos insights e permitir novos estudos. Nas situações clínicas, englobadas nas duas primeiras definições, a psicanálise realmente persiste como prática e parece ter algo a dizer sobre os tais “fenômenos que não são acessíveis por outros métodos seculares”.
Recentemente, uma metanálise [2] (estudo onde dados de vários estudos são reunidos e submetidos a um tratamento estatístico) de 14 artigos totalizando 603 pacientes, aponta para a conclusão, algo inédita, de que a psicanálise consegue de fato mudanças mensuráveis em pacientes com distúrbios psiquiátricos complexos, mas salienta que a falta de grupos-controle se constitui em séria limitação à interpretação dos resultados. Outros estudos, com metodologia não tão apurada como este, já tinham indicado que a psicanálise, aquela mesma baseada na tríade edipiana ou na conflituação interpessoal, no caso dos pós-clássicos, na qual o terapeuta fica numa poltrona ATRÁS do divã em que o paciente está deitado, quem diria, parece ter seus efeitos demonstrados “cientificamente”.
Sempre pensei existir um certo exagero em torno da psicanálise. Sua ligação com a filosofia sempre me fascinou mas terminou por criar uma imagem algo estilhaçada dela, o que, obviamente, não exclui minha incompetência em compreendê-la(s). Fiz alguns cursos, aprendi coisas interessantes. Tenho vários pacientes e amigos psicanalistas, alguns até bem conhecidos. Questionar a eficácia da psicanálise nas suas mais variadas vertentes, para eles, é como questionar o oxigênio que respiramos. Tal é o dilema que um médico, nascido e criado em ambientes “baseados em evidência”, se defronta e que, não fosse eu um ranheta auto-referente em questões que envolvem a prática médica, faria, como outros, ouvidos moucos e tocaria a vida já complexa e trabalhosa o suficiente. Mas, a vida dá voltas…
Foi então que o Fredrik Svenaeus me apresentou o Heidegger. O Heidegger, à sua maneira, exigiu que eu lesse o Ricoeur, um de seus mais brilhantes discípulos. E lendo o Ricoeur conheci o Roy Schafer que teve a mesma ideia que eu tive, só que a publicou em 1976 (isso sempre acontece comigo!): poderia toda a psicanálise ser subsumida ao fenômeno da linguagem? Posteriormente, Schafer escreveu um artigo resumido de suas ideias e que discuto brevemente abaixo [3].
No prefácio do artigo, Schafer começa dizendo que Freud realmente queria que a psicanálise tivesse a melhor conotação científica possível para a época na qual foi criada (preço alto que ele paga até hoje), mas que essa conotação pode ter uma leitura diferente. De acordo com essa leitura, Freud criou “apenas” um sistema complexo de regras para comunicação entre duas pessoas, um terapeuta e seu paciente (ou analisando, argh!). Assim, prossegue ele “psicanalistas teóricos de diferentes credos (isso!) têm empregado princípios interpretativos ou códigos diferentes, pode-se dizer até, diferentes estruturas narrativas para desenvolver suas formas de fazer análise e falar sobre ela” (grifos meus). Essas estruturas narrativas são importantes não porque analisam dados, tal como o projeto inicial de Freud, mas porque nos dizem o que deve ou não ser considerado dado na história que está sendo construída. Isso é importante porque não há interpretações definitivas. Há interpretações que fazem sentido; outras que não. O dados não são encontrados, são construídos ou constituídos ou, até mesmo, buscados. A partir de então, o autor envereda para exemplos e mais exemplos no intuito de demonstrar sua tese.
Ricoeur [4], por sua vez, vai citar Schafer no contexto de uma possível estrutura pré-narrativa da experiência. O problema de Ricoeur consiste, grosso modo, especificamente nessa seção do seu monumental trabalho, em fundamentar o mundo das experiências – que ele apelida de mímesis I – com um certo “enredamento pré-narrativo”; com o que ele chama de “história (ainda) não contada” e ele usa o exemplo da psicanálise para ilustrar tal conceito. Nesse ponto, vale a leitura do original:
O paciente que fala com o psicanalista lhe traz fragmentos de histórias vividas, sonhos, “cenas primitivas”, episódios conflituosos; pode-se perfeitamente dizer sobre as sessões de análise que elas têm por finalidade e por efeito que o analisando tire desses fragmentos de história uma narrativa que seria ao mesmo tempo mais insuportável e mais inteligível. Roy Schafer ensinou-nos até a considerar o conjunto das teorias metapsicológicas de Freud como um sistema de regras para recontar as histórias de vida e elevá-las à categoria de histórias de caso. Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica que a história de uma vida procede de histórias não contadas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia assumir para si e ter por constitutivas de sua identidade pessoal. É a busca dessa identidade pessoal que garante a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história expressa pela qual nos responsabilizamos.
Isso pode ser entendido como uma redenção. Simplifica escandalosamente o processo psicanalítico e, de quebra, além de explicar seus efeitos benéficos, abre uma avenida investigativa que é a via dos efeitos da linguagem na constituição da identidade do indivíduo e de suas patologias. Nesse sentido, pouco importa quais códigos se utilize para narrar. O psicanalista oferece, de acordo com seu credo, um vocabulário a seu paciente. Dá certo quando o paciente incorpora (torna corporal) essa nova linguagem e a utiliza para recontar sua(s) história(s). Esse movimento de encadeamento entre fatos aparentemente não relacionados se torna inteligível por meio da narrativa e por isso, fica muito mais difícil de suportar, podendo gerar catarse e suscitando, por que não?, a cura. Ricoeur, ainda avança profundamente nessa espiral de contar e recontar; interpretar e re-interpretar, mas a nós basta a ideia inicial.
Se nossa identidade, ou ao menos o que nós entendemos por nós-mesmos, é construída tendo como base o mundo das experiências, seu impacto e suas interpretações, ao fornecer um código de símbolos, mitologias, modelos, enfim, um vocabulário ao paciente, o psicanalista facilita a recontagem dessa história e a reconstrução e consciência da identidade pelo analisando. Não precisamos mais escarafunchar cérebros na busca anatômica do ID ou do EGO. Eles estão, junto com todos os outros componentes do aparelho psíquico, “encriptados” na nossa linguagem.
[1] Renato Mezan. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. J. Psicanal. [online]. 2006, vol.39, n.70 pp. 227-241 . Disponível aqui. ISSN 0103-5835.
[2] de Maat S, de Jonghe F, de Kraker R, Leichsenring F, Abbass A, Luyten P, Barber JP, Rien Van, & Dekker J (2013). The current state of the empirical evidence for psychoanalysis: a meta-analytic approach. Harvard review of psychiatry, 21 (3), 107-37 PMID: 23660968
[3] Roy Schafer (1980). Narration in the Psychoanalytic Dialogue. Critical Inquiry, 7 (1), 29-53 DOI: 10.1086/448087
[4] Paul Ricoeur (2010). Tempo e Narrativa. Vol 1, pág 128. Martins Fontes – São Paulo. Tradução Cláudia Berliner.
Cartum do baiano Reinaldo Gonzaga. Tirada daqui.
Kehl, Freud e o Processo da Verdade
A verdade social não é ponto de chegada, é processo
Maria Rita Kehl
Maria Rita Kehl é dessas mulheres fascinantes. Sou seu fã desde há muito e adoro ouvi-la falar de qualquer assunto. Também adoro lê-la. Não foi à toa que li com carinho seu artigo na Folha de SP no último domingo – 24 de Março de 2013 – data emblemática desde que a ONU a escolheu como o Dia Internacional do Direito à Verdade. Para “rememorá-lo”, como membro integrante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita escreveu, sobre Psicanálise e Estados Totalitários, um artigo com o título sugestivo de “A verdade e o recalque“.
No artigo, Maria Rita associa o conceito freudiano de “recalque” – interdição de fragmentos de lembranças e/ou fantasias sexuais, por exemplo – à repetição de sintomas neuróticos que, como uma válvula de escape, permitem dar vazão ao que foi aprisionado à força, no inconsciente. Freud propõe a quebra desse binômio esquecimento/sintoma psíquico pela elaboração do trauma. Até aqui, esse seria, talvez, o pensamento padrão de um psicanalista.
O problema, na minha humilde opinião, está na seguinte frase: “Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintoma sociais”. Bom – pensei -, ao juntar psicanálise e sintomas sociais vamos acabar na Frankfurt do pós-guerra e sua mistura “explosiva” de Freud com Marx de seu Instituto para Pesquisa Social. Depois de uma aproximação pacífica, já em “Eros e Civilização” (1955), Marcuse articula uma crítica ao conceito freudiano de uma repressão orgânica e biológica com a qual teríamos que conviver. No lugar desse “biologismo” freudiano, ele afirma com Marx, que “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem”[1]. No texto, Maria Rita chega a afirmar que “Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história”. Se Freud leu Marx eu não sei, mas n’ “O Futuro de Uma Ilusão” chega a esboçar uma luta de classes (em livre tradução do espanhol de [2]):
Mas quando uma cultura não superou a situação na qual a satisfação de um número de seus membros tem como pressuposto a opressão de outros, quiçá de uma maioria – e este é o caso de todas as culturas atuais -, se compreende que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra essa cultura que tornam possível com seu trabalho, mas de cujos bens têm escassa participação.
Horkheimer e Adorno, a partir de sua volta a Frankfurt depois de exílio forçado nos EUA, Marcuse, que ficou por lá, e em especial, Habermas alguns anos depois, reformulam suas interpretações públicas das teorias freudianas[2], mas mesmo as críticas da Escola de Frankfurt se tornaram obsoletas quando se viram obrigadas a lidar com a dissolução dos conceitos de totalidade postulados por Marx e Hegel. O próprio Habermas constatou que sua “‘teoria da história da espécie’, elaborada no texto Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), também continuava presa, a exemplo da teoria marxiana, a categorias da filosofia do sujeito e da reflexão, porquanto entendia que os processos de aprendizagem da história mundial se concretizariam em classes sociais e povos, isto é, sujeitos superdimensionados“.[3] (grifos meus). Daí em diante, vem o “Giro Linguístico” e todos os seus desdobramentos, em especial, no que se refere a dissolução do paradigma do sujeito.
Acho problemático que a teoria freudiana do recalque, tão criticada, seja aplicada a um contexto sociológico atual com intuito de estabelecer uma explicação da doença social causada pela interdição da verdade; em que pese a nobreza da causa. Não sei bem porque Maria Rita escolheu esse caminho. Poderia ter usado algo da Teoria Crítica ou mesmo de Hannah Arendt, sei lá. Talvez por objetivos didáticos, já que Freud “pega na veia” e esses autores não são popstars como Freud e ela quisesse causar impacto. Ou talvez por familiaridade com o tema; fico pensando se o não dito, ou no caso, o não citado, também não falaria por si. Também acredito que para dizer, como ela disse lindamente no artigo, que “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva” pudesse prescindir de Freud. Esse “coletiva” a que ela se refere parece não estar ainda na obra do médico vienense. Essa ligação entre os desejos individual e o coletivo na construção da sociedade moderna talvez só viesse anos depois com a Teoria Crítica. Já a belíssima frase que epigrafa o post demanda algo mais. A verdade como processo é aquisição kafkiana recente da sociedade. Livre.
Por isso, Maria Rita é essencial.
~ o ~
PS. Sensacional, diga-se de passagem, o elegante cruzado de direita que ela dá em Contardo Calligaris pelo famigerado artigo sobre tortura.
[1] Souza, MA. Eros e Logos: Marcuse, crítico de Freud. Filosofonet. Publicado em 11/11/2007.
[2] McCarthy, T. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. 4a ed. Tecnos. 1998. pp 230-51.
[3] Siebeneichler, FB. Apresentação à edição brasileira da “Teoria do Agir Comunicativo” de Jürgen Habermas. Martins Fontes. 2012. pp XVIII- XIX.