O Matador de Metáforas
Confesso que não vai ser muito fácil. Também não sei se minha prosa tem a envergadura simplificadora que o empreedimento exige. Mas como tudo é exercício, mãos a obra. Que as musas me alumiem o caminho (que vai ser um pouco mais longo que o habitual – haja luz!)…
Retomemos o livro de Giannetti, (mal) resumido abaixo. Ao adotar um “fisicalismo reducionista” o personagem-narrador se mete numa enrascada existencial pois, acha ele, tal posição filosófica afeta a forma como se vê no mundo, tolhendo-lhe o significado do verdadeiro “eu” e colocando no lugar uma sopa de neuromediadores de concentração variável. O capítulo 55 (último) é pródigo neste tipo de questionamento existencial (que eu achei meio exagerada, como tentarei mostrar a seguir):
“É possível termos acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege os nossos músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos eletroquímicos no cérebro, como a fosforescência no rasto de um fósforo aceso no escuro ou a espuma de uma onda neural? E que, portanto, fazer de um propósito ou de uma intenção consciente a causa de uma ação humana é tão desprovido de fundamento como falar do propósito de uma espermatozoide ao fecundar um óvulo ou da cigarra ao entoar sua cantoria ou do Sol ao irradiar calor? Sim, é possível.”
Vai daí, que entram no rol do “é possível” as reflexões ético-morais, as guerras ideológicas e religiosas, a psicologia, o ateísmo militante e outras coisas até chegarmos ao engodo da consciência. Um tipo de farsa onde acreditamos que somos os personagens que representamos. Isso pode causar um imobilismo, um mal-estar trans-histórico (que vem desde a antiguidade); nos tornar a-morais, como parodiando a tese ivankaramazoviana: se não há um “eu”, nem uma alma, (então) tudo é permitido”. E assim, termina o livro e aqui vamos começar a discutir essa tese que foi criticada de várias formas, por vários autores.
“Uma tal tentativa é associada com a tentativa de identificar a ‘verdade literal’ com a ‘verdade científica’ e a tratar a literatura como oferecendo meramente ‘verdades metafóricas’, algo que não pode realmente ser denominado de verdade acima de tudo. A concepção usual, desde Platão, tem sido a de que um entre os vários vocabulários que nós usamos espelha a realidade, e que os outros são na melhor das hipóteses ‘heurísticos’ ou ‘sugestivos'”.
Aqui entra Davidson, filósofo da linguagem, e o título do post. Uma de suas premissas é que metáforas não têm significados. Isso quer dizer que sua ocorrência é como um efeito colateral da utilização de uma linguagem, não há nada implementado com intuito de produzi-las. Entretanto, apesar de surgirem assim, quase sem querer, elas têm um papel fundamental quando se “literalizam”. Literalizar uma metáfora é matá-la, mas no momento em que isso ocorre, reformulam-se nossas crenças, conceitos e desejos. Sem a morte de metáforas “não haveria nenhuma coisa tal como uma revolução científica ou uma ruptura cultural, mas meramente o processo de alterar os valores de verdade das asserções formuladas em um vocabulário para sempre imutável.” Desse ponto de vista, uma teoria científica é simplesmente uma redescrição metafórica. Por exemplo, quando os cristãos disseram ‘O amor é a única lei’, quando Copérnico disse ‘A Terra gira em torno do Sol’, ou Marx ‘A história é a história da luta de classes’ ou ainda os físicos afirmaram que ‘a matéria pode ser transformada em energia’, tais frases pareciam mais com um modo de falar que com uma verdade. Um filósofo analítico naïve diria que são confusas. O que queremos dizer com “lei”, “sol”, “história” ou “matéria”? Mas quando cristãos, copernicanos, marxistas e físicos começaram a redescrever porções da realidade sob a luz dessas sentenças – e comprovar o valor de tais redescrições – nós começamos a falar delas como afirmações com grande valor de verdade.
Nesse ponto, nos aproximamos do cume. Eu disse que subir não ia ser tão fácil, mas não vamos parar aqui, né?
Vamos para uma citação do texto de Rorty:
“Esse fenômeno da produção e ‘literalização’ de metáforas é o fenômeno que a tradição filosófica ocidental sentiu como sendo necessário para avaliação a partir de uma oposição entre matéria e espírito. Essa tradição pensou a criatividade artística, bem como a ‘inspiração’ moral ou religiosa, como incapazes de serem explicadas nos termos usados para explicar o comportamento da ‘realidade meramente física’. (Nota do Blogueiro: dizem que tudo começa com Platão e aqui, em especial, isso é bem verdade, ver A República e o artigo de Maria Villela-Petit. Além disso, Rorty se coloca em uma linhagem de pragmatistas americanos que começou com Pierce, James e Dewey e que vem combatendo, a seu modo, a tradição filosófica ocidental que é como eles chamam o pensamento que começou com Platão e atingiu o seu ápice em Kant, com vários desdobramentos atuais). Em vista disso, surgiram as oposições entre ‘liberdade’ e ‘mecanismo’ que dominaram o período pós-kantiano na filosofia ocidental. Mas segundo a visão de Davidson, ‘criatividade’ e ‘inspiração’ são meramente casos especiais da capacidade do organismo humano articular sentenças sem significado – isto é, sentenças que não se ajustam a velhos jogos de linguagem e que servem enquanto ocasiões para modificar esses jogos de linguagem e criar novos. Essa capacidade é exercida constantemente, em toda e qualquer área da cultura e da vida cotidiana. Nesta última, ela aparece como chiste. Nas artes e nas ciências ela aparece, retrospectivamente, como gênio.”
“Exatamente como as sinapses neurais estão em contínua interação umas com as outras, constantemente formulando uma diferente configuração de descargas elétricas, também nossas crenças e desejos estão em contínua interação, redistribuindo valores de verdade entre asserções. Exatamente como o cérebro não é algo que “tenha” tais sinapses, mas É simplesmente um aglomerado delas, assim o Si próprio não é algo que “tenha” as crenças e os desejos, mas simplesmente a rede que as reúne e conecta.”
Isso implica que ter uma crença ou desejo significa ter muitas crenças e desejos; significa ter o fio de uma extensa trama que nos constitui.
Por fim, esse trabalho de desmistificação do fisicalismo reducionista também foi feito com muita simplicidade, a exemplo do silogismo de Giannetti na parte IV do post abaixo, por Hempel com o raciocínio que se segue:
“Talvez uma das críticas mais incisivas ao fisicalismo esteja no dilema apontado por
Hempel (1980): se o fisicalismo for definido de acordo com a ciência Física atual, então se
trata de uma tese possivelmente falsa, já que a Física atual não é, de maneira alguma, uma
ciência completa. Por outro lado, se o fisicalismo apoiar-se em uma ciência Física hipotética,
uma ciência completa que ainda está por vir, então o fisicalismo perde sua força, pois não
sabemos como será essa Física e que coisas farão parte desse mundo físico que ainda não
somos capazes de conceber.”
Do excelente artigo de Diego Zilio em Ciências & Cognição 2010; Vol 15 (1): 217-240.
Acho que dá para falar no “Erro de Giannetti” e em tempestade em copo de água, né?
Livro “A Ilusão da Alma” de Giannetti
Ganhei de presente o livro, com dedicatória e tudo, com a promessa de que leria e escreveria alguma coisa. Alguma coisa aí vai…
Libido Sciendi. Aqui o livro entra de cara no problema mente-cérebro e Giannetti se mostra um grande didático e autodidata. Coloca alguns problemas que já abordamos aqui, como nesta passagem:
“(…) não é coisa fácil para o ser humano apreender impessoalmente a si próprio e à maneira como vê o mundo; percebi que fazer isso exigia uma postura distinta daquela a que estamos habituados na vida comum. Precisava de algum modo me afastar e recuar de mim mesmo, alcançar um grau de distanciamento que me permitisse olhar-me de fora, o mais friamente possível, com o mesmo espírito com que um botânico coleta e examina variedades de orquídeas ou um musicólogo analisa a partitura de uma sonata.”
Ou seja, Rogozov. De importante, no capítulo 17 a menção do riquíssimo conto machadiano “O Espelho” (ver uma boa análise aqui) e a “teoria das duas almas” que será usada ao longo de todo o livro. No capítulo 19, o confrontamento anunciado na “orelha” do livro e no seu dorso: Demócrito vs Sócrates. A partir do Fédon de Platão e da narrativa da morte de Sócrates, o narrador-personagem coloca a decisão deste em não fugir e submeter-se às leis de Atenas como um conflito arquetípico entre o fisicalismo e o mentalismo. Demócrito de Abdera já foi taxado de materialista (tese de Marx), antinaturalista (tese de Clément Rosset) e fisicalista, este último termo especificamente relacionado à produção da mente pelo cérebro. Ele e seu mestre Leucipo, de quem pouco se sabe, resolveram o problema heráclito-parmenidiano com o atomismo. Tudo flui na aparência, mas os átomos que constituem todo o universo, continuam iguais, unos e indivisíveis. O fisicalismo, por sua vez, sustenta que tudo o que existe está e é sujeito às leis físicas o que implica que o que chamamos de “vontade”, “livre-arbítrio” e outras cositas são vícios de linguagem e, de fato, seriam apenas configurações neuronais que se deixariam perceber pela consciência. O mentalismo é a visão de que a mente é a real causa da vontade e que apenas a partir dela ocorrem os fenômenos in concert que determinam os comportamentos humanos (cobrir-se quando se tem frio, procurar comida quando se tem fome, etc). Tendo a decisão de Sócrates de tomar a cicuta que lhe fora sentenciada sido interpretada através dos milênios como uma decisão moral – tipicamente mentalista – na página 107, escreve-se:
“A perspectiva fisicalista contesta a versão mentalista do comportamento de Sócrates e oferece uma explicação alternativa. Os três componentes da ação do filósofo de não fugir mas aceitar a pena que lhe foi imposta precisam ser melhor analisados e devidamente entendidos. (…) E, por fim, como o juízo de valor e a vontade consciente – dois estados mentais – são capazes de acionar e pôr em movimento (neste caso em repouso) os músculos e tendões do filósofo – estados do corpo?”
E arremata:
“O homem moral socrático, argumenta a filosofia fisicalista, não passa de um subproduto fantasioso – e com forte componente narcísico – do homem natural atomista. Um arco-íris pré-newtoniano.”
Bonito, né? Mas isso joga a discussão para o lado mais profundo e escuro do lago: o elo causal entre o pensar e o agir. Há uma diferença entre pensar/querer e ter consciência de que se está pensando/querendo. O narrador cita então estudos de Benjamin Libet em “que a escalada de atividade neural – o evento físico no cérebro – precede no tempo não apenas a ação muscular, mas também o evento mental, ou seja, a própria consciência da decisão de agir” por uns parcos três décimos de segundo. Mas, precede. O resto é argumentação em cima disso e uma sensação de estarmos folheando uma revista, tantas as citações e cores com que se pintam o quadro.
“Um estado mental (“preciso almoçar”) nunca é realmente produzido por outro estado mental (“estou com fome”); todos são produzidos por estados do cérebro. Quando um pensamento parece suscitar outro por associação, não é na verdade um pensamento que puxa ou atrai outro pensamento – a associação não se dá entre os dois pensamentos, mas sim entre os dois estados do cérebro ou dos nervos subjacentes a esses pensamentos”.
Trocando “nervos subjacentes a esses pensamentos” por “núcleos neuronais” ou coisa parecida, fica um pouco melhor. Segue-se um exercício inapelável de lógica:
“A ideia é tremenda, mas basta um silogismo para resumi-la. As leis e regularidades que regem o mundo são independentes da minha vontade (premissa maior); a minha vontade é fruto das mesmas leis e regularidades que regem o mundo (premissa menor); logo, a minha vontade é independente da minha vontade (conclusão).”
Isso nos torna algo como autômatos, ensopados de serotonina e dopamina, cujas concentrações determinam minha vontade de transar com minha mulher hoje ou comer um pizza de calabresa. O narrador se apavora com isso e também com o fato de que o médico que o operou, não está nem aí para essa vãs filosofias. O livro melhora substancialmente. Algumas tiradas geniais e citações bem colocadas, trazem o leitor de volta à vida do personagem que fica, pasmem, bem mais interessante, no papel de robozão. Talvez uma contradição mesma do livro.
Numa mistura de “O Mundo de Sofia” com “Trem Noturno para Lisboa” e pitadas de insanidade de “Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas“, o livro tem um final interessante e uma provocação: após mostrar que “lutar” contra o fisicalismo é entrar em uma luta imaginária, o narrador instiga o leitor a refutá-lo. Tentarei discutir um pouco mais sobre isso nos próximos posts e talvez se mostre o bom e o ruim, a dor e a delícia, de discutir filosofia da mente.
Para um resumo de uma palestra de Giannetti sobre o livro ver aqui.
Atualização
Veja o excelente post no Amigo de Montaigne, sobre o “Erro de Giannetti”.