Metafísica Médica III


ResearchBlogging.orgHume: Pense na seguinte afirmação: “O evento A causa o evento B”. Exemplo, toda vez que dou uma pequena martelada no seu tendão patelar, um arco reflexo faz com que você dê um chute para frente. Podemos indicar isso da seguinte forma: martelada -> chute. Ou, genericamente, A -> B que podemos ler “por extenso” assim: eventos do tipo A (marteladas no tendão patelar) são sempre seguidos de eventos do tipo B (chute). Mais, permite-se uma intervenção na cadeia de eventos pois, se tenho controle sobre os eventos do tipo A (força, local, etc), terei também sobre os de tipo B (força, ou se o evento acontecerá mesmo ou não).

Mill: Mas a coisa não ficou por aí. Numa tentativa de aproximar este raciocínio cada vez mais da prática, pensou-se o seguinte: na verdade, o que temos não é simplesmente A -> B, mas uma conjunção de eventos em uma situação bem mais complexa (chamemo-la de Ci). Para dizermos que existe uma relação causal do tipo A -> B, os possíveis fatores confundidores de Ci devem ser determinados [1]. Isso implica em determinarmos os efeitos de Ci sem A, por um lado, e de A sem Ci, por outro. Stuart Mill, que pensou essas mirabolâncias, chamava isso de “métodos de concordância e diferença”. Esses métodos formaram a base de nossa ideia moderna de experimentação controlada.

No século XX, começaram experiências de maior fôlego na medicina, coincidindo com o surgimento da Estatística na Inglaterra. O problema é que, em medicina, raramente se encontram generalizações universais do tipo A -> B. No exemplo acima, temos vários fatores que podem fazer com que o chute reflexo não saia sempre da mesma forma. O reflexo em si, é esgotável e altamente influenciado pela atenção do paciente. Assim, as generalizações que podemos fazer em medicina são normalmente do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”. O problema é obviamente o “um certo número de vezes”. Hume chamou a atenção para a inferência indutiva que as generalizações universais permitem sem nenhuma garantia em troca, por exemplo, “o fato de o dia ter nascido ontem e sempre, me garante que o dia nascerá amanhã”. Pensamos assim o tempo todo. Mas, no caso de uma afirmação do tipo “A é seguido por B em um certo número de vezes”, a inferência indutiva fica estranha assim: “Existe uma certa chance de o próximo A ser seguido por um B”. Agora esculachou tudo!! Colocamos o termo “chance” no raciocínio e para abordar isso formalmente necessitamos de uma Teoria de Inferência Estatística [1].

Uma teoria de inferência estatística é um arcabouço teórico que permite que “dados observacionais (por exemplo, porcentagens de imunização após vacina para malária) modelados como variáveis aleatórias forneçam uma base para conclusões indutivas sobre os mecanismos que geraram os dados” (por exemplo, taxa de imunização baixa, logo, essa vacina é uma porcaria!). Fisher dizia que essas conclusões eram incertas, mas que esse “incerto” não quer dizer que não exista uma matemática rigorosa por trás das conclusões! Em medicina, existem duas teorias de inferência estatística principais. A diferença entre as duas é o “jeito” de olhar os dados. Uma, objetiva, deu origem aos ensaios clínicos randomizados de que tanto falamos, a toda a base teórica da Medicina Baseada em Evidências e, porque não dizer, da prática médica atual (olha eu generalizando, hehe). A outra, tem cada vez mais adeptos, dá conta de estudar alguns eventos que a primeira não dá, mas é tachada de subjetiva. É sobre elas que vamos falar nos próximos posts.


ResearchBlogging.org [1] Derek Bolton, . (2009). The Epistemology of Randomized, Controlled Trials and Application in Psychiatry Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 15 (2), 159-165 DOI: 10.1353/ppp.0.0171