Inception

– TOLOS! – gritou o velho – vocês são crianças idiotas.
Perplexos, eles entreolharam-se em meio à roda que se formara com as carteiras. O tempo parecia ter parado e a atmosfera podia ser fatiada à faca.
– Qual a razão de alguém querer tornar-se cientista? Hein? Me digam. Vocês se acham superiores às pessoas comuns? Vocês acham que seus cérebros treinados em pensamento formal, lógica, relações de causa e efeito e o cacete é melhor para entender as coisas do mundo da vida do que o de um cão vagabundo que sobrevive às custas de seu próprio instinto? Pois lhes digo. Conhecimento é instinto! Não é possível conhecer sem sentir. Conhecer é
sentir. Saber é sentir…
Parou de falar subitamente, olhou para baixo e rodopiou sobre seu silêncio no círculo de carteiras. O barulho de um grafite se fez ouvir e o velho pareceu ter levantado as orelhas como um animal a pressentir uma presa, caminhou lenta e pesadamente e reiniciou, dirigindo sua fúria para a menina que anotava seu desabafo. Desta vez, falava baixo, com um leve sorriso de escárnio.
– Eu tenho asco da figura monástica do cientista em sua busca ascética pela Verdade – e continuou, virando-se para o teto – Ah, o mongezinho em sua sala fria, cheia de vidrinhos e livros, estudando, estudando, esperando a benção da Verdade. PÁRA! – o grito ecoou pela sala. A menina soltou o pequeno bastão – que fez um ponto no caderno e caiu no chão -, vidrada. Os olhos do velho faíscavam. Sua fisionomia quase sempre cansada e com ar enfastiado parecia ter perdido o peso dos anos e ganhado vigor e excitação. Os cabelos poucos e brancos em desalinho emolduravam um rosto vincado de rugas, mas que transmitia força. Que força tinha o velho!
– Esse foi um dos Grandes Erros. Você existe porque
sente que existe, nada além disso. E sentir é muita coisa. Sentir é a coisa. Sentir que sabemos é o mais potente dos afetos.

***
Marília dobrou quase que amassando as páginas copiadas e soprou a franja da testa. Por que deram um texto desse para ler no curso de história da música? Jogou os papéis em cima do piano e tomou o violoncelo (Incidental. Aparece a frase: “sentir é a coisa” na página no piano). A sala estava parcialmente escura e a janela permitia que uma claridade diáfana lhe contornasse a figura (aproximando). O instrumento entre as pernas, a saia puxada até as coxas (foco), a cabeça levemente pendida para esquerda, os cabelos longos jogados para frente. O pé esquerdo na ponta fazia o joelho abraçar a cintura do violoncelo, delicadamente. Ela “desceu” uma escala maior só para aquecer os dedos finos (close). Logo surgiram as primeiras notas, roucas e quentes, do Preludio-Fantasia de Cassadó (corta). Délio entrava com o professor de violão e estacou na porta do estúdio com o braço esquerdo na barriga do amigo, a mão direita na boca em sinal de silêncio. (Shhhhh)

***

– Cara! Esse gibi é foda! Eu não tô entendendo porra nenhuma! Você falou quer era mó bom! – disse isso e jogou a revista no colo do amigo.
– Calma, meu! Esse é o primeiro. Espera pra ler o resto!
– Eu ainda gosto mais do Sandeman. Sei lá, o desenho. Menos texto, mais ação…
– O desenhista é alemão. O roteirista um hindu que mora na Nova Zelândia. Você queria o que?
– Pelo menos a mina é gostosa, hehe.
 

***

Arnaldo fechou o notebook sem desligar. Twitosfera. Blogosfera. Redes Sociais. Esses nomes, pessoas e lugares lhe deram, pela primeira vez, uma estranha sensação. Uma sensação de dissolução e irrealidade. “Esses lugares não existem e eu estou só” – pensou. Sentiu um tipo de náusea entranhando-se. Uma náusea metafísica, quase um suicídio. “É. O corpo manda.” – resmungou. Tomou um sal de frutas, um remédio para dormir (com o divino efeito colateral de provocar amnésia anterógrada) e foi, sem a certeza de que tinha mesmo ido.