O Lado Anti-Phronético da Medicina

I

As relações entre Medicina e Ética remontam aos primórdios da civilização. Reconhece-se que a prática médica seja mais antiga que a própria ciência que hoje a embasa, mas é provável que ela seja ainda mais originária. De fato, se concedermos que nossos ancestrais ao perceber semelhantes em sofrimento, em especial sob estados dolorosos, puderam utilizar e selecionar circuitarias neuronais só recentemente identificadas (1) e consideradas fundamentais para nosso desenvolvimento social (2) por serem capazes de gerar comportamentos empáticos e que, por meio de técnicas primitivas, tais antepassados puseram em marcha uma proto-medicina “lambe-feridas”, poderemos, então, aceitar que a percepção do sofrimento alheio transformada em ações com intenção de alívio seria mesmo mais antiga do que a antevisão da própria morte. A empatia parece ter raiz evolutiva no cuidado maternal da prole, mas disseminou-se como importante fator de união de grupos humanos (2). Se uma Proto-Medicina emerge desse comportamento, ela já nasce intimamente relacionada a uma ética intragrupal que intensifica-se após a Revolução Agrícola, há cerca de 12.000 anos, com a fixação do homem à terra.

Dos babilônios e egípcios, os gregos herdaram conhecimentos matemáticos, astronômicos e médicos. Mas na Grécia Antiga, em especial na região da Jônia, um tipo de pensamento natural materialista começou a se desvencilhar dos conceitos teológico-míticos de então. Há cerca de 2600 anos, Thales de Mileto propôs a primeira explicação para ocorrências naturais que não era ligada ao “humor” divino. Aristóteles chamava esses pensadores, agrupados sob a expressão “pré-socráticos”, de physiologói,  designando-os como aqueles que tinham um conhecimento da physis (φύσις) e sobre ela produziam um discurso. Esse termo grego arcaico é frequentemente traduzido por natureza, mas queria dizer muitas outras coisas. Segundo Jaeger, “[n]o conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente (ou seja, uma ontologia)”(3). Em Homero, onde o termo foi escrito pela primeira vez, significava “crescimento”, o manifestar-se de um ser vivo como o crescimento de uma lavoura. Os sofistas utilizavam physis em oposição a nómos, regra, lei. A “natureza” de alguém em oposição às regras da pólis. Para os pré-socráticos, physis era a força criadora que rege todo o universo. De onde provém o kósmos e para onde tudo tende a voltar. Parece-me então justo supor que, juntamente com o questionamento materialista da natureza e do mundo, tenha surgido também o questionamento materialista dos padecimentos humanos e a Medicina na forma como a entendemos hoje. De fato, chama a atenção o dado de que todo o Corpus Hyppocraticum, em que pese a ilha de Cós ter língua e cultura dóricas, ter sido escrito em grego jônico, como se os médicos antigos quisessem publicar suas obras na linguagem “científica” da época.

II

Para Aristóteles, a Medicina era uma techné (τεχνή)¹, um tipo muito específico de acesso à verdade cuja principal preocupação é com aquilo que é produzido (poiésis) ao fim e ao cabo de um processo de deliberação e que, afinal, poderia ter ocorrido de forma diferente. O que a Medicina produz? A Saúde, claro. A Medicina, no entendimento do Liceu tinha, portanto, a mesma constituição gnosiológica das Artes Plásticas e também da arte dos construtores navais, orgulho ateniense, para ficar apenas nesses dois exemplos. Tanto para Aristóteles quanto para seu mestre, Platão, a Medicina era um exemplo de atividade filosófica com o télos (τέλος – finalidade) do Bem (agathon – άγαθον). Para Platão, ainda preso às concepções filosóficas socráticas, toda e qualquer forma de conhecimento, a filosofia inclusa, tem como objetivo primordial o conhecimento do Bem, tal como a Medicina teria por objetivo o conhecimento da Saúde. Esse Bem é a “ideia de Bem”, o mais alto ser, o supremo objeto. Já em Aristóteles, o Bem a quem a filosofia persegue é o Bem do Homem, o Homem Bom. Para Jaeger (4), em que pese o próprio pai de Aristóteles, Nicomachus de Stagira, ter sido um médico famoso e ter morrido quando ele era ainda menino, Aristóteles utiliza um dos exemplos preferidos de Platão exatamente para argumentar contra ele sobre a “necessidade de um tipo diferente de conhecimento que seja capaz de rastrear o ‘bem’ nos casos individuais ao invés de transcender [para o mundo das ideias] diferenças apresentadas na experiência prática”. No famoso Livro VI da Ética a Nicômaco, Aristóteles propõe que a verdade (aletheia) pode ser atingida de cinco modos: sophia, epistémé, phronésis, noûs e techné e as divide em dois grupos. O primeiro grupo, chamado epistemonikon, é reservado para a contemplação dos seres cujos archai – as causas extremas e últimas de cada coisa – não admitem ser de forma diferente. Nesse grupo, ele inclui a epistémé e sua forma mais completa a sophia, e as classifica como teoréticas (de theoria, contemplação, apreensão do pensamento pelo próprio pensamento). No segundo grupo, logistikon, são colocadas as formas de verdade que poderiam ser de outro modo e não necessariamente como são: a techné e a phronésis. São as ciências de cunho eminentemente prático. O noûs, cujo significado se aproxima do nosso termo intuição – como apreensão imediata do que é -, foi excluído dessa classificação por já ser ele mesmo dividido nas duas formas de compreensão da verdade: prática e teórica (5, p.174). Na techné, algumas vezes traduzida como técnica, outras como arte, o arché está na coisa produzida (poiésis), seja ela um barco, uma escultura ou a saúde de alguém. Já no caso da phronésis, muitas vezes traduzida como prudência, o arché está no próprio ser humano em sua busca pela verdade e pela sophrosyne (σωφροσύνη – temperança), sabedoria prática que possibilita a vida plena de realizações e felicidade. Sim, porque a deliberação em se tomar uma determinada decisão (um cálculo, e é por essa razão que Aristóteles a chama de logistikon) terá como pano de fundo toda a escala de valores e modo de inserção do tomador da decisão em seu mundo. E como exemplo preferido dessa atividade, Aristóteles escolhe a Medicina. O médico é o exemplo de phrônimos (φρόνιμος), o agente moral por excelência, portador dessa nova ética, abrigada no próprio Homem. Heidegger, milênios depois, elevou a phronésis aristotélica a um nível ontológico ao atribuir-lhe a constituição mesma do ente que cada vez somos – o Dasein. Só a phronésis com sua capacidade de absorver a facticidade da vida, suas possibilidades e escolhas, seus modos de ser que poderiam, afinal, não ser da forma que foram, seria capaz de dar conta da riqueza contingencial que cerca a existência humana. É factível aprender a construir um barco, mas não é possível aprender a existir.

III

Ainda hoje se discute se a Medicina como atividade humana é uma phronésis, uma techné ou uma epistémé. Há quem defenda que a Medicina ocupa uma área de fronteira entre as razões aristotélicas. Ora, o caráter ontológico da Medicina é basicamente metafórico. Ninguém vê “uma medicina” andando por aí. Vemos médicos que a praticam. O que realmente importa em toda essa discussão, e aqui começamos a arranhar o título do texto, é distinguir, no âmbito da Medicina, a práxis autêntica, o ato ético, da poiesis, o fazer que é resultado de um saber, neste caso, uma techné que é, já o sabemos, o conhecimento das coisas que precisam ser feitas. Tal conhecimento não é, e não pode ser confundido de forma alguma, com o conhecimento dos propósitos ou das razões pelas quais aquilo necessita ser feito (6). Por ter sempre em suas decisões o horizonte da finitude humana, a grande maioria, para não dizer todas, as decisões médicas são decisões éticas, ao menos no sentido aristotélico ou, após Heidegger e Gadamer, hermenêutico, do processo. A questão que urge então é saber se o bom médico deve necessariamente ser boa pessoa ou se (a exemplo dos craques de futebol), queremos um médico que resolva nossos problemas e não alguém para genro ou nora. Cito Dottori

É verdade, então, que logos e hexis, virtude [ou disposição] e razão não são a mesma coisa; virtude não é simples conhecimento, como Sócrates errôneamente supôs. Virtude não é um comportamento kata ton logon, seguindo a razão, mas meta ton orthon logon, caminhando junto-com a razão. […] O conhecimento prático é esse fenômeno unitário de razão e comportamento: a escolha da ação ou decisão seguem o propósito de um vislumbre dirigido ao bem. Tal escolha, proairesis, é tanto razão, dianóia, quanto desejo, orexis: conhecimento prático concreto, a phronésis é tanto conhecer o que é bom para mim e me motiva a agir, como também a prática da virtude. Quando amor e paixão dominam a escolha e a decisão, a reflexão do conhecimento prático falha e nós escapamos dos trilhos de nosso comportamento moral: a phronésis, a razoabilidade – Gadamer conclui – é apenas possível como sophrósyne, sabedoria. De fato, o ethos não é fundamentalmente determinado pelo conhecimento mas pelo constante e contínuo exercício da virtude, é um hábito mental que quase se torna um costume (6, pág. 308).

 IV

Ao praticar atos éticos por força de ofício, deveria o médico agir eticamente sempre, quase que como por costume? Acredito até que deveria sim, ao menos na grande maioria das vezes. Outras pessoas devem me acompanhar nesse raciocínio tendo em vista o horror causado pelos acontecimentos recentes na Faculdade de Medicina da USP. Mas abordar o problema por meio desta lógica trivial é ainda dizer muito pouco. Melhor seria darmos a devida importância ao fato de que os atos dos médicos durante o exercício de sua profissão estejam cada vez mais distantes de um processo hermenêutico (aquele que tem como horizonte a finitude humana, leva em consideração sua situação no mundo e para quem, por fim, compreender é compreender-se) e phronético e, consequentemente, mais próximos a um modelo de racionalidade epistêmico e frio cujo clímax é o julgamento moral destes mesmos atos tendo a ciência como imperativo ético. À ciência descorporificada não se pode exigir uma ética sobre a “tecnologia dos corpos”, o lado anti-phronético da Medicina.

E se não existem corpos, tudo é permitido.

 

Notas

1. Τεχνή ιατρική (techné iatriké) era o nome da arte médica na Grécia Clássica.

Referências Bibliográficas

ResearchBlogging.org1. Bernhardt, B., & Singer, T. (2012). The Neural Basis of Empathy. Annual Review of Neuroscience, 35 (1), 1-23 DOI: 10.1146/annurev-neuro-062111-150536

ResearchBlogging.org2. de Waal FB (2012). The antiquity of empathy. Science (New York, N.Y.), 336 (6083), 874-6 PMID: 22605767

3. Jaeger, Werner (2001). Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 4ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes.

ResearchBlogging.org 4. Jaeger, Werner. (1957). Aristotle’s Use of Medicine as Model of Method in His Ethics The Journal of Hellenic Studies, 77 (Cambridge University Press): 54–61 http://dx.doi.org/10.2307/628634 DOI: 10.2307/628634

5. Brogan, Walter (2005). Heidegger and Aristotle: the twofoldness of being. (SUNY series in contemporary continental philosophy. Ed. Dennis Schmidt). State University of New York Press.

ResearchBlogging.org6. Dottori, Riccardo (2009). The Concept of Phronesis by Aristotle and the Beginning of Hermeneutic Philosophy Ética & Politica / Ethics & Politics, XI (1), 301-310.