Schopenhauer, Rogozov e Apêndices

ResearchBlogging.orgFrequentemente me perguntam se eu me trato ou trato meus parentes mais próximos. Digo sempre que não gosto e evito ao máximo, mas que se alguma emergência surgir, estarei lá, de prontidão. Sempre. É preciso, como já comentamos, um certo distanciamento para “objetivar” um indivíduo e considerá-lo um paciente. No caso de parentes próximos, esse distanciamento fica mais difícil.

Que dizer de si mesmo? Quanto de distanciamento é possível conseguir de si mesmo? Schopenhauer considerava o corpo uma encruzilhada. Na impossibilidade de conhecer a “coisa-em-si”, tudo que conhecemos é mediado pelo nosso corpo e se torna uma representação em nossa consciência. Mas como conhecemos nosso próprio organismo? Se por um lado, não podemos conhecer a realidade dele em si, por outro, o sentimos e vivemos nele como nenhum outro ser pensante no universo. Isso nos permite uma “visão” privilegiada do nosso corpo: percebemo-lo de forma imediata. Dessa forma, segundo Schopenhauer, ele se torna o ponto de partida do conhecimento. Mas, e quando esse corpo, ponto de partida, é, ele mesmo, objetivado, numa reviravolta metafísica, e submetido ao escrutínio da razão e da técnica que ele proporciona?

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Esse rapaz bonitão da foto é Leonid Ivanovitch Rogozov. Em 5 de Novembro de 1960, ele embarcou em Leningrado na sexta expedição soviética para Antártica. Tinha 27 anos e interrompeu sua carreira acadêmica (uma dissertação sobre câncer de esôfago) para se alistar numa aventura. Depois de 36 dias, chegaram ao local programado. Iniciaram então, a construção de uma base militar chamada Novolazarevskaya que ficou pronta 9 semanas depois. O navio deixou então 12 tripulantes que deveriam passar o inverno na base antártica. Rogozov era o único médico do grupo (não havia enfermeiras, nem mesmo técnicos de qualquer espécie).

No dia 29 de Abril de 1961, Rogozov sentiu-se mal. Náuseas, vômitos, febre baixa e dor abdominal que logo localizou-se no quadrante inferior direito do abdome. Rogozov diagnosticou-se uma apendicite aguda. Tomou antibióticos, analgésicos e antitérmicos sem resultado. Compressas produziam alívio fugaz. Ele sabia: “não há tratamento clínico para doenças cirúrgicas”. Todas as tentativas nesse sentido só conduzem à catástrofes. Na impossibilidade de retornar e/ou de obter qualquer tipo de auxílio (hoje temos robôs que operam à distância), ele treinou 3 de seus colegas (um metereologista, um mecânico e o chefe da base) em procedimentos básicos como aplicar medicamentos e o que fazer em determinadas situações, esterilizou instrumentos e se preparou para operar-se.

Ele realizou uma anestesia local e após 15 min, fez uma incisão (me pareceu, pela descrição, uma incisão clássica no ponto de McBurney) de 10-12 cm e começou a procurar o apêndice. Ele operava sem luvas porque tinha que trabalhar basicamente dependendo de seu tato. Depois de 30-40 min, seus assistentes notaram respirações rápidas, palidez cutânea e sudorese, indicando que Rogozov estaria com vertigens. Como a visão era muito prejudicada, ele frequentemente tinha que levantar a cabeça para tentar ver o que estava fazendo, o que foi ficando cada vez mais difícil. A cirurgia durou 1 h e 45 min. Ele mesmo terminou toda a sutura. O apêndice estava necrótico. Ao final, ensinou seus assistentes a lavar a ferida e a realizar os curativos, tomou pílulas para dormir e descansou. No dia seguinte, teve febre 38,1 C, continuou a tomar antibióticos e foi melhorando lenta mas progressivamente. Ao cabo de 2 semanas, ele estava apto a trabalhar normalmente. Voltou à Rússia e ainda teve tempo de casar e ter um filho médico que escreveu sua história.

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O que nos ensina a experiência radical de Leonid Rogozov? Quão poderosa é a capacidade de abstrairmos nossa realidade? Mais que a realidade, o próprio instrumento sensitivo que a proporciona, o corpo que somos? Abstrair nosso corpo é como abstrair a própria essência do humano. Ou nossa essência é nossa própria capacidade de abstração?

Rogozov, V., & Bermel, N. (2009). Auto-appendectomy in the Antarctic: case report BMJ, 339 (dec15 1) DOI: 10.1136/bmj.b4965
Fotos modificadas do artigo original. Sem permissão (por enquanto).