Cerveja e Medicina II

Neste post, continuaremos a visitar a saga de pesquisadores ligados à fabricação de cerveja que contribuiram de forma importante para a prática médica contemporânea.

Doenças graves afetam o organismo como um todo. Quadro sistêmicos podem levar à morte por meio de mudanças no meio interno no qual as células vivem. Um dos mais importantes mecanismos é o aumento (ou diminuição) da concentração hidrogeniônica no espaço extracelular. Os íons hidrogênio têm o poder de interferir em muitas reações biológicas, apesar de ter uma concentração 3,5 milhões de vezes menor que a do Sódio nos fluidos orgânicos. Sua concentração no soro é de 0,000 000 040 M/L ou 40 nM/L, da mesma ordem de grandeza do Molibdênio (20 nM/L) e menor que as concentrações de elementos como Zinco (15 μM/L), Cobre (20 μM/L) e Selênio (1 μM/L). A concentração hidrogeniônica é importante em qualquer reação química na qual enzimas participem. Sua interferência em processos vitais no organismo é, hoje, óbvia. Mas, os médicos demoraram-se um pouco a perceber isso. Os cervejeiros, não.

A Cervejaria Carlsberg foi fundada em 1847 por Jacob Christen Jacobsen. Tendo herdado uma pequena fábrica de seu pai em 1835, quando tinha 24 anos, experimentou certa vez, uma lager bávara e ficou obcecado pela ideia de fabricar uma em terras dinamarquesas. Quando explosões para uma estrada-de-ferro encontraram água num subúrbio de Copenhagen, ele encontrou o local ideal para por em prática seu plano. Quase três décadas mais tarde, já tendo sido vencedor de vários prêmios e com a Carlsberg conquistando o mercado europeu, Jacobsen inovou mais uma vez. Fundou em 1876, junto à cervejaria, um laboratório para pesquisas que pudessem “auxiliar o processo de fermentação, malteamento e produção de cerveja em larga escala”. O laboratório tinha dois departamentos: Fisiologia e Química. O segundo chefe do laboratório de Química foi Sören Peter Lauritz Sörensen (1868-1939).

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Em 1909, Sörensen (figura ao lado) publicou dois artigos, totalizando 170 páginas, intitulados Études Enzymatiques I e II, em alemão e francês  na revista do Laboratório Carlsberg (Comptes-Rendus des Travaux du Laboratoire de Carlsberg). Neste trabalho, Sörensen esclarece um dos pontos mais obscuros da bioquímica (ops, ainda não existia esse termo!) da época: a relação entre a atividade das enzimas e a acidez do meio.  Não se poderia prever a concentração hidrogeniônica imposta à solução pela adição de ácido porque as preparações enzimáticas funcionavam como um tampão e essas substâncias tinham sua concentração variável conforme o modo de preparação. Ele imaginou que, se segundo Arrhenius, sendo a ação de um ácido caracterizada pela emissão do H+, seria possível que o agente modificador da atividade enzimática fosse o íon hidrogênio, em outras palavras, que o fator determinante fosse a concentração hidrogeniônica. Trabalhando com sua hipótese, Sörensen pôde comparar a atividade das enzimas com a concentração hidrogeniônica de várias misturas, demonstrando que a concentração de íons hidrogênio mais favorável à ação de uma determinada enzima era sempre a mesma, não importando o tipo de preparação, nem a quantidade de ácido adicionada e – o que causou enorme espanto – nem do tipo de ácido (sulfúrico, fosfórico ou cítrico)!

Como se não bastasse, no mesmo trabalho, Sörensen inventou a escala do pH. A figura acima, do trabalho original, talvez tenha sido a inspiração última depois de desenhar tantos gráficos e colocar potências negativas de base 10 nas abscissas, optou por utilizar o cologaritmo, que se traduzia em números mais palatáveis. A grandeza foi representada pelo símbolo pH•, o p proveniente de potenz ou puissance significando potência, ou mais precisamente, o expoente negativo. Com o tempo, o ponto representando o íon hidrogênio foi suprimido por razões tipográficas e ficamos com o familiar pH.

Hoje, nenhum médico intensivista, nefrologista ou pneumologista pode cuidar de um paciente grave sem uma dosagem do pH e de seus correlatos no sangue, como o CO2, sódio, cloreto e a quantidade de bicarbonato dissolvido. Em 2009, completou-se 70 anos do falecimento de Sörensen e 100 anos da invenção do pH, mais uma grande ferramenta que devemos a um mestre cervejeiro! Mais um motivo para comemorar. Prost, Sr. Sörensen!