Mineiros do Chile, Tebas e o Mito
Eu vi as imagens do resgate dos mineiros do Chile aliás, quem não viu, né? Prestei uma especial atenção ao nacionalismo que elas despertaram. Bandeiras, gritos de guerra (Chi-chi-chi, le-le-le, Chile, Chile…), presidentes. Por que tudo isso? Parece que homens brotando do chão costumam despertar esse tipo de sentimento desde que a espécie humana começou a lavrar a terra em busca de seu próprio sustento. A alegoria de se ter nascido do chão de determinado lugar foi inevitável para quem se estabeleceu no local e necessitava de uma legitimação da posse.
Isso lembra o mito da fundação de Tebas, a arcaica cidade grega. JP Vernant em seu fantástico livro “O Universo, os Deuses e os Homens”, narra esse mito no capítulo referente a Dioniso e me permito resumi-lo (perigosamente).
Cadmo era filho de Teléfassa e Agenor, o casal real de Tiro. Tinha uma irmã chamada Europa (que deu nome ao continente) beeem gata. Zeus, que era taradaço e não podia ver uma ninfetinha, a viu tomando banho de mar, meio nua (sempre melhor que totalmente nua!), e tomou a forma de um touro branco magnífico para seduzi-la (magina!). Raptou a menina e a levou para Creta onde teve dois filhos – Radamanto e Minos – com ela. Agenor mobilizou toda a família para procurar sua filha. Cadmo foi com a mãe, Teléfassa, para a planície da Trácia, onde ela morre. Após uma passagem rápida pelo oráculo de Delfos, Cadmo chega a conclusão que precisa seguir uma vaca (predomínio de vacuns na história!) até onde ela se deitar para fundar uma cidade. Ao chegar ao local indicado pelo animal, ele solicita a seus soldados água de uma fonte para fazer um sacrifício à deusa Atena. A fonte de água, entretanto, era guardada por um dragão que mata todos os soldados. Cadmo vai até lá e mata o dragão. Atena então, aparece a ele pedindo que termine o sacrifício e que semeie os dentes da besta num terreno plano, como para um colheita (ver figura – clique para ampliar e ver a origem). Mal ele termina o serviço, surgem da terra guerreiros plenamente vestidos para batalha. Cadmo temeroso de ser atacado, os ilude e faz com que eles comecem a brigar entre si. Matam-se uns aos outros sobrando apenas cinco. Estes são os chamados Spartói, que significa, os Semeados, mesma raiz de sperma, semente. São guerreiros autóctones. Um deles, Equíon, casa com uma filha de Cadmo chamada Ágave, com quem terá um filho chamado Penteu e que será rei de Tebas.
O início do reino de Tebas representa o equilíbrio tenso entre duas estirpes. De um lado Cadmo, o estrangeiro, feito rei por vontade e obra divina e, de outro, os spartói, nascidos da terra, autóctones. As tragédias se sucedem e essa linhagem ainda dará origem a Édipo, veja só. O conflito entre o estrangeiro e o autóctone está enraizado em nossas entranhas e é fonte inesgotável de conflitos. Olgária Matos descreve a fisiopatologia do estranhamento: “A crítica à identidade significa dissolver todo o essencialismo filosófico, teológico-político ou ético-religioso. (…) Todas as formas de dogmatismo – que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade – provém da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da comunicação uma ruptura na compreensão recíproca que a perturba, resultando em desconfiança universal.”
O salvamento dos mineiros do Chile foi um alívio geral. A vida de 33 pessoas tragicamente aprisionadas a centenas de metros de profundidade foi acompanhada por pessoas ao redor de todo mundo. Era de se esperar reações efusivas e a extensa cobertura por parte da mídia. Mas, meu ponto é que uma parte da força dessas imagens vem de um mito: o “brotamento” de homens do seio da terra.