Romances e Pacientes


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Em artigo interessantíssimo na Piauí desse mês, Mário Vargas Llosa sai “Em defesa do romance”. Explica que não apenas nossa linguagem, mas também nossa imaginação e raciocínio são feitos de palavras. Em determinada passagem, afirma: “Os conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros conceituais de que são detentores.” Isso para dizer que o romance é a única peça cultural que pode, mais que qualquer gramática, mais que a TV ou a internet, ensinar o uso preciso de palavras conhecidas e nos apresentar novas. Eu acrescentaria, não só palavras mas também conceitos. Rorty concordaria. Para ele, a filosofia contemporânea deve explicar os romances. A tessitura do real é caricaturada nos romances. Os romances são como ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, placebo controlados do mundo da vida. Os “pacientes” reais não estão lá, mas como nos ensinam!

Li o longo artigo e me deparei com a seguinte frase: “A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.” O vocabulário específico nos isola numa armadilha solipsista. Quanto mais somos específicos, mais nos tornamos incapazes de avançar em outras arenas. Tive então, a certeza de que Vargas Llosa falava dos médicos. Se a dificuldade em se comunicar com um leigo é aceitável para qualquer profissional que utiliza conhecimentos científicos, no caso dos médicos, esse é o tipo de deficiência catastrófica. Sem essa habilidade, o médico não conseguirá persuadir o paciente de que seu tratamento é importante, não conseguirá aderência ao que for prescrito, nem a confiança do paciente, caso algo não corra bem.

Somente a literatura, conclui Vargas Llosa, conserva esse denominador comum à humanidade de todos nós. Sempre aprendi que os escritores descrevem as doenças melhor que os médicos. Me parece óbvio agora que isso é incorreto. Eles descrevem melhor os pacientes, e só o fazem porque os apoiam nessa base afetivo-sócio-patológico-cultural a que chamamos vulgarmente de vida. Esta última, parece não morar nos livros de medicina, é preciso incomodá-la em outro lugar…