Divulgação Científica, um delírio!
No mês passado estive na UNICAMP para um evento internacional de divulgação científica: o 2o Seminário Internacional Empirika, vinculado a à Empirika 2012, a mega feira Ibero-americana de ciências.
O evento se propôs a discutir ‘Comunicação, divulgação e percepção de ciência e tecnologia’ mas o que vi lá não foi bem isso. O programa foi todo concentrado em torno dos organizadores – praticamente todos, senão todos, os palestrantes tinham ou tiveram algum vínculo com o laboratório de jornalismo da UNICAMP ou o curso de mestrado em divulgação científica e cultural – e a meu ver refletiu apenas o que deve ser a visão dos organizadores sobre o tema. Por exemplo não havia ninguém da enorme comunidade de blogueiros de ciência, nem mesmo Leandro Tesler, professor do Instituto de Física da Unicamp e autor do excelente blog ‘Cultura Científica’. Como gerar debate se todo mundo se conhece e é da mesma turma?
Talvez por isso não tenham percebido, ou tenham e não viam problema nisso, o conflito que se criou entre os dois principais temas discutidos: a percepação do público sobre a ciência e a arte e a cultura como alternativa para comunicar ciência.
As excelentes apresentações de Yurij Castelfranchi da UFMG e Sandra Daza do Observatório Colombiano de C&T deixaram claro que todas as metodologias utilizadas (até) HOJE para avaliar a percepção do pulbico sobre C&T são imprecisas e ineficientes, e produzem percepções equivocadas. Ao mesmo tempo p-r-a-t-i-c-a-m-e-n-t-e TODAS as outras palestras foram sobre COMO comunicar ciência para população ‘dada’ a percepção que eles tem da ciência. Ops! Mas se os instrumentos que temos não tem como avaliar corretamente esse percepção… Isso mesmo! O que tivemos foram horas de apresentações de pesquisadores bem intencionados mas embasados por premissas que eram, na melhor das hiposteses, controversas.
Com relação ao uso da arte para comunicar ciência, acho que foi ainda pior. Descobri ainda que os descolados das ciências sociais (eram quase todos das ciências sociais) são ainda mais elitistas do que os NERDs das ciências exatas. Claro que usar a arte e a cultura para transmitir e comunicar ciência é ótimo. Agora… se a arte que você quer usar para isso é tão distante da população como a ciência que você quer divulgar… então não adianta muito, não é mesmo?
Vocês acham que eles chamaram a Regina Casé para falar de produção cultural na periferia (veja abaixo) e como podemos embutir ciência nisso?
Não, chamaram chamaram um professor da UNICAMP, Laymert Garcia, para falar sobre ‘Dispositivos de visão – Ressonâncias entre o audiovisual xamânico e o audiovisual digital’. Não se preocupe se você não entendeu nada do título: ninguém entendeu. Ele é uma simpatia, um ótimo contador de histórias, mas faz produção cultural para uma parcela limitadíssima da população. Uma parcela que JÁ tem uma enorme cultura geral a ponto de se poder permitir assistir um filme como: ‘Xapirí’, que fala sobre as experiências transcendentais dos xamãs Yanomamis depois de inalarem o pó mágico yãkõana.
Hoje começo a entender melhor meus amigos inteligentes e bem sucedidos que são radicalmente contra os professores universitários e os acadêmicos em geral: a falta de objetividade dos deles (nossa) pode ser terrificante!
Eu entendo tentar fugir do método científico para validar o conhecimento obtido empiricamente, não registrado a não ser pela tradição oral, especialmente de comunidades marginais e isoladas. Mas isso não significa, jamais, de forma alguma, que o empirismo seja um mecanismo melhor de se obter conhecimento, ou que ‘todo’ conhecimento de comunidades marginais e sem educação científica tenha valor. A medicina Ayuervédica tem mais de 7000 anos e nem por isso está menos equivocada.
Nós, intelectuais brasileiros, temos que parar de querer intelectualizar todo mundo. Principalmente, de uma hora para outra. Precisamos dar educação, o que inclui educação científica, para que as pessoas possam exercer sua cidadania de forma plena, nas relações sociais, comerciais e com o estado, mas sem querer transformar todo mundo em intelectual. E com isso, o que nós precisamos é que nossos intelectuais se coloquem a serviço de produzir mais coisas como ‘The Big Bang Theory’ do que ‘Xapurí’.
Ou vocês conhecem algo que consiga ensinar mais ciência, de forma mais correta, divertida, dinâmica e criativa do que o clip de abertura do seriado americano? Eu não conheço.
Jesus e a ciência da arte da restauração de Afrescos
“A maior parte das pessoas, quando vê uma representação qualquer pintada em uma parede, chama de ‘Affresco‘. Uma pintura na parede, a óleo, tempera, acrílica ou cera, é somente um mural. ‘Affresco‘ é oooooutra coisa”
Minha querida amiga Francesca Radiciotti é restauradora. A visita que fiz ao canteiro de obras de uma igreja na pequena vila de Sermoneta na Lazio em 2010, além de uma tarde agradabilíssima (me dá água na boca só de lembrar do Carpaccio de Buffalla com Azeite de Oliva de primeira prensada) foi uma aula de história da arte.
“A técnica dos afrescos é antiquíssima, nascendo na Itália com os afrescos romanos, e terminando (a não ser por um episódio nostálgico do facismo) no séc XIX. Os afrescos são encontrados quase exclusivamente na Itália (também no oriente médio, mas apenas afrescos bizantinos). Mesmo aqueles encontrados em outros lugares, foram feitos por um italiano ou por um bizantino. A particularidade está na execução de uma técnica genial, responsável pela sua conservação até os dias de hoje: é o único caso onde a cor é aplicada na parede sem o uso de um fixador (protéico, oleoso, acrílico etc..), mas aproveitando a reação química da carbonatação do cimento para fixar, para sempre, o pigmento simplesmente diluído em água”.
Até então, tinha para mim que restauradores eram artistas. E artistas, como sabemos, são a antítese dos cientistas. Será que são mesmo? Ou um artista também é um cientista? Veja a explicação, sempre da Radiciotti, que se segue:
“O processo químico é idêntico àquele da formação dos mármores coloridos, onde o óxido de ferro e vários outros metais de cores variadas são englobados no material carbonato durante a sua formação. Sobre o reboco úmido, formado de areia e cimento (hidróxido de cálcio) e água, são espalhados os pigmentos (mas só aqueles adequados, ou seja, que resistem ao ambiente fortemente alcalino) diluídos em água. Durante de secagem, ou seja, da evaporação do H2O, o hidróxido de cálcio reage com o oxigênio do ar e forma CaCO2, englobando dentre de si o pigmento, fixando ele para sempre sempre. É o único caso onde o pigmento não está aderido a superfície (a parede) por um fixador aderente, mas sim ‘dentro’ da própria superfície (de novo, a parede), formando com ela uma unidade, da mesma forma que uma pedra colorida”
Eu estou lendo o interessantíssimo ‘Proust foi um neurocientista‘, presente da minha amiga neurocientista Silvana Allodi, que fala de como alguns artistas, mesmo sem conhecimento científico, apenas (sic) da natureza humana, anteciparam a ciência e algumas das mais modernas e atuais teorias científicas. Será que a antitese não é verdadeira? Ou será que os artistas, mais que os alquimistas, foram os primeiros químicos, antecipando a ciência que estava por nascer?
“É por isso que o pintor tinha tão pouco tempo para pintar. (…) A pintura tinha que ser feita velozmente (…) ou a obra poderia se tornar apenas pó. É uma técnica que não admite erros e hesitação. O traço deve ser conciso e decidido. Não é possível apagar nada (a não ser colocando todo o reboco a baixo e recomeçando do zero). A grandeza do artista pode ser vista ainda na medida das porções de reboco pintado: quanto maior o afresco, mais rápido foi o artista (o da capela Sistina de Michelangelo é enorme!) O artista que pintava ‘a fresco’ era o melhor de todos (o mais capaz e o mais bem pago), porque deveria saber quando o reboco estava pronto para ser pintado e quando deveria suspender a pintura: eram inúmeras variáveis com a massa, a espessura do reboco (os romanos chegavam a fazer 9 camadas de reboco), o microclima do ambiente etc…. Mais que arte, era uma ciência!”
E ela continua “Você pode se perguntar para que tanto trabalho: porque não simplesmente aderir a tinta na superfície? Não era só porque a técnica aumentava em muito a durabilidade das pinturas, mas principalmente porque um reboco pintado dessa maneira, refletia e refratava a luz em uma maneira impressionante. Talvez somente subindo nos balcões próximos ao teto da Capela Sistina para compreender verdadeiramente: Michelangelo trabalhava os afrescos de uma maneira tal que ao final a matéria parecia se desmaterializar e transformar-se em luz pura. E portanto, espírito puro, qualquer coisa de sobrenatural”.
Sobrenatural, para mim, era o talento desses homens. A dificuldade era enorme. Eram montados andaimes e o artista passava muitas e muitas horas deitado próximo ao teto, desenhando e pintando.
Quando chegaram a Sermoneta, os restauradores começaram os testes para fazer a restauração. Pequenas áreas da pintura são tratadas com diferentes substâncias químicas para identificar qual pode ter a melhor resposta (veja a foto abaixo). Foi ai que tiveram uma surpresa: riscos que sugeriam uma figura que não era a figura aparente. Enquanto o desenho mostrava a manga da vestimenta de nossa senhora, mas as incisões sugeriam a presença de uma mão.
Haveria alguém riscado o sagrado afresco? Muito pior.
“Uma das formas de se transportar para a parede o desenho preparado antecipademente, era riscar no reboco fresco as formas que seriam pintadas. Nem sempre foi assim. Essa prática é usada desde o renascimento, mas antes disso, os romanos e os bizantinos desenhavam diretamente as figuras com pincel. Não é preciso que haja riscos para que seja um afresco. Mas se os riscos estão lá… com certeza é um”.
Nesse caso, os riscos eram uma evidência mais marcante da presença de um afresco do que a pintura aparente. Alguém, ainda muito tempo atrás, resolvera pintar um mural em cima do afresco verdadeiro e original. O espírito humano é tão poderoso quando as intempéries mais duras e, com certeza, muito mais rápido. Mas apenas as incisões não bastavam como evidência e era preciso mais para ter certeza de qual era o desenho original.
” É quando entram em cena os cientistas da restauração: os químicos, físicos e biólogos que determinam as causas da degradação da obra de arte. Nesse caso coletamos uma amostra do reboco para análise estratigráfica no microscópio óptico de polarização, de camadas finas e opacas, para determinar a composição mineralógica dos extratos de cores (e descobrir se o que havia sob a pintura era verdadeiramente um afresco) e a posição estratigráfica relativa (para verificar se o que havia sobre era uma pintura a óleo). Outra opção seria fazer uma FTIR (espectrofotogrametria) para analisar a composição dos fixadores orgânicos que mostram que você não está em frente a um afresco, mas simplesmente a frente de um mural”.
As análises mostraram que realmente havia um afresco sob a pintura a óleo e começou então o trabalho artístico de restauração. Minha amiga é uma artista! Aos poucos as mãos de Maria Madalena aos pés de um Jesus crucificado foram aparecendo, como na figura abaixo.
O resultado desse belíssimo trabalho de investigação científica e habilidade artística, vocês viram na imagem que abre esse texto. Lindo, avassalador!
Tudo fica mais bonito quando se sabe a ciência que está por trás.