Você acredita em magia? (terminei de ler…)

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As vezes a gente ouve uma música que diz tudo aquilo que a gente está sentindo. Ficamos impressionados de como alguém pode ter escrito as palavras que estavam em nossa cabeça, a gente só não sabia até ouvir. Ou isso nunca aconteceu com você ouvindo uma música do Chico Buarque? A verdade é que mesmo que quiséssemos, não poderíamos escrever a música. Mas que dava vontade de ter escrito, dava.

As vezes isso acontece comigo também quando leio um livro. E foi assim com ‘Do you believe in magic? The sense and non sense of alternative medicine’ (você acredita em magia? O sentido e o sem sentido da medicina alternativa) de Paul Offit.

Eu, que desde 2011 tenho rascunhos de textos no blog para falar sobre o fiasco do artigo da memória da água, publicado na prestigiosa revista ‘Nature’ em 1988 pelo francês Jacques Benveniste, só para depois ser retratado pelos editores (que não conseguiram reproduzir os resultados e terminaram acusando os autores de fraude), ou sobre a descoberta da via de ação do efeito placebo; quando li o livro de Offit, fiquei maravilhado: deletei os rascunhos velhos porque tudo que eu gostaria de ter dito, ele escreveu. Não sei se melhor do que eu escreveria ;-), mas muito bem escrito.

E ainda mais, ele traz TODOS os fatos relacionados ao crescimento descontrolado, desregulado e perigoso da industria de vitaminas: datas, montantes, leis, atos; nomes de lobistas, congressistas, CEOs de empresas, pseudo xamãs e celebridades que, equivocadas ou mal intencionadas, promovem o que não só não ajuda a saúde (soluções de água pura ou pílulas de açúcar) como o que pode fazer mal e até matar (excesso de antioxidantes).

Os resultados científicos compilados por Offit ao longo de mais de 100 anos da história da medicina científica colocam por terra as falsas promessas das milenares das ‘medicinas’ ayurvédica e chinesas. Assim como a acupuntura, quiropraxia, Roff, etc, etc, etc. Como ele diz no livro: “Não existe medicina e medicina alternativa. Existe medicina que funciona, de maneira reprodutível e comprovada cientificamente, e medicina que não funciona”.

Além disso, mostra como a atenção do médico e o efeito placebo podem, realmente, ajudar em algumas situações, mas quase exclusivamente situações onde a ‘dor’ (que tem um forte componente psicológico) está envolvida. E não… não se cura AIDS ou Cancer com o efeito placebo. Ou com ativação do sistema imune.

Diferente do classico programa dos anos 80 ‘Acredite, se quiser’ (Ripley’s Believe It or Not!), onde Jack Palace apresentava historias verdadeiras, mas quase inacreditáveis, Offit nos mostra como historias falsas, foram contadas de maneira muito acreditável por servir aos interesses de uma industria de vitaminas e suplementos alimentares que fatura tanto quanto a industria farmacêutica criticada pelos adeptos dessas práticas, mas sem gastar nenhum tostão em controle de qualidade, prova de eficácia ou eficiência.

Acredite somente se quiser, porque não há nenhuma outra razão para isso.

A Intuição e o Método

Venus de Milo com Gavetas, de Salvador Dalí

Venus de Milo com Gavetas, de Salvador Dalí

Tenho pensado tanto sobre isso. Como cientista, o ‘método’ é o meu principal instrumento de trabalho. Isso não significa que eu seja metódico no que faço. Significa que eu recorro a evidência, a hipótese, a experimentação e a análise para tecer conclusões e tomar (ou questionar) decisões. Não há como ter dúvida do poder do método para alterar a nossa realidade. Mas ainda assim, grande parte dos desafios profissionais que eu encontro são sobre como convencer as pessoas, mesmo (principalmente) cientistas, a abraçar o método em áreas que não sejam o seu objeto de estudo.
Ainda que possamos nos apoiar na obra de Galileu, Bacon e Descartes para uma explicação do que é o ‘método’; explicar a intuição é muito mais complicado. E o fato de todos nós experimentarmos a intuição independente de compreende-la, torna ainda mais difícil explicá-la cientificamente, porque a explicação esbarra na nossa compreensão ‘intuitiva’ da intuição.
Mas e se quisermos entender o que é a intuição de forma não intuitiva?
Vamos ter que começar entendendo o que é a consciência. Uma tarefa nada fácil já que não existe um consenso científico sobre o que é a consciência. Mas tendo incluído ‘consciência’ no programa da minha disciplina de Biofísica para o curso de biologia da UFRJ, eu estudei bastante o assunto ao longo desse ano e vou arriscar uma explicação para vocês (para quem quiser mais informações eu sugiro fortemente o  documentário da BBC ‘O Eu secreto’).
De maneira bem resumida, quando o seu cérebro é requisitado a dar uma resposta, inicia-se  um processo mental onde são ativadas diferentes regiões do seu cérebro, dependendo de cada processo. A ativação dessas áreas gera sinais elétricos que se propagam por nervos, indo e vindo através dos troncos do tálamo, e disparando, ou ‘acendendo’, diferentes áreas do cortéx no caminho. Dessa atividade elétrica em diferentes áreas do seu cérebro, emerge uma ’sensação’ subjetiva: a auto-consciência. Quando bloqueamos o tráfego dos sinais impedindo a comunicação entre as diferentes regiões, seja pela administração de anestésicos ou naturalmente durante o sono, a nossa auto-consciência desaparece.
A idéia não poderia ser mais assustadora: em nenhum lugar do seu cérebro existe um repositório de quem é você. Não existe nenhuma ‘gaveta’ com a etiqueta ‘quem sou eu’. Ao contrário, a cada vez que o seu cérebro inconsciente decide que um evento é digno da sua atenção, o disparo coordenado de milhões de neurônios, bilhões na verdade, recreia, do zero, a noção de quem é você. 
Se tivesse descoberto que a cada momento eu era um novo ‘eu’, como descobriu Virginia Woolf no século XIV, assim como descrito no maravilhoso livro de Jonah Lehrer ‘Proust foi um neurocientista’, sem ter os instrumentos para compreender como isso era possível, talvez também tivesse me suicidado.
Curiosamente, ou contra-intuitivamente, é o nosso corpo físico, e não uma termodinamicamente improvável alma, que guarda a chave para o segredo da integridade da nossa auto-consciência. Com as nossas experiências anteriores armazenadas na nossa memória de longo prazo e com os limites físicos do nosso corpo identificados por neurônios na mesma posição, os disparos consecutivos que geram a auto-consciência são capazes de replicar com grande fidelidade o nosso ‘eu’.
Mas não com fidelidade total.
As áreas que acendem não são E-X-A-T-A-M-E-N-T-E as mesmas. Nunca!
Inquietante… para dizer o mínimo. Mesmo quando pensamos sobre a mesma coisa, mesmo se essa coisa for a nossa própria identidade, nunca pensamos sobre ela da mesma maneira.
E de fato é com essa assustadora, porém muito esclarecedora constatação que se inicia o livro de Daniel Willingham ‘Porque os alunos não gostam da escola’: Porque pensar é difícil e nós, ainda que sejamos capazes de pensar, não somos bons nisso.
Uma grande parte do nosso cérebro é dedicada ao processamento inconsciente de imagens visuais e, se tem alguma coisa na qual somos bons, é em ‘ver’. Já em pensar… como vocês podem bem imaginar pensando em grande parte das pessoas que conhecem… não é algo todos fazem da mesma maneira, com a mesma eficiência e na qual possamos todos dizer que somos… bons.
O mundo tem uma realidade complexa que procuramos recriar dentro do nosso cérebro para que possamos decidir como reagir a esse mundo real. Como nosso pensamento não é linear, não temos muito controle sobre quais memórias acessamos ou sobre quais áreas do cérebro serão ativadas pelos sinais iniciados com a atenção a um pensamento, não temos como repetir uma mesma análise da realidade duas vezes.
Para piorar a situação, como eu já descrevi aqui, as nossas decisões começam como uma resposta instintiva baseada em processamento ‘inconsciente’ do cérebro, só depois sendo reconsiderada em um processo consciente que, como vimos, é falho.
Por exemplo, no excelente livro ‘Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas’ de Michael Shermer, fica claro que as nossas escolhas, mesmo aquelas conscientes, não são fruto da nossa capacidade intelectual e sim dirigidas por 3 fatores principais: as alternativas oferecidas pelas circunstâncias, o medo e a expectativa da opinião dos nossos pares. Nossa… isso também explica tanta coisa!
A conclusão no poderia ser mais difícil de aceitar: por mais que você se considere um grande pensador, há um limite para o quanto você pode confiar nas suas idéias. Suas intuições… falham!
E é por isso que nós precisamos do método. Ele é a única maneira de escapar das armadilhas que nossos processos mentais nos impõe.
Mas se o método é o que pode nos salvar das nossas falhas mentais, porque será que, na minha experiência e em muitas outras ilustradas na história da psicologia, as pessoas resistem tanto ao uso do método?
Ainda não tenho uma resposta. Mas é possível que a insegurança gerada pela dificuldade de pensar conscientemente e a falsa segurança gerada pela natureza inconsciente da intuição estejam envolvidas nessa resistência.
Além da preguiça, é claro.

Terminei de ler: 'Uncertainty'

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Sim, fiquei um tempão sem escrever aqui. Mas não sem ler.

Entre os livros incríveis que já li esse ano, um chama atenção porque a história poderia ser um blockbuster de hollywood, poderia virar série do Netflix, poderia virar combate como o UFC. Só que um combate de cérebros! A história da descoberta da mecânica quântica e do princípio da incerteza de Heisenberg.

“Desde que Marie-Curie se perguntou sobre a espontaneidade do decaimento radioativo, desde que Rutherford perguntou a Bohr o que fazia o elétron pular de um lugar para outro nos átomos, cresceu o entendimento que eventos quânticos acontecem, em ultima instância, sem nenhuma razão.

O que nos leva a um impasse. A física clássica não pode dizer que o universo ‘aconteceu’, porque nada pode ter acontecido sem que um evento anterior tenha causado o acontecimento. A física quântica não pode dizer ‘porque’ o universo aconteceu, exceto dizer que ele simplesmente aconteceu, espontaneamente, como uma questão de probabilidade mais do que de certeza.

Em outras palavras, Einstein estava certo quando reclamava que a mecânica quântica não poderia dar uma visão do mundo físico que não fosse ‘incompleta’. Mas talvez Bohr estivesse ainda mais certo em dizer que essa ‘incompletude’ era não só inevitável, como talvez até necessária’. Chegamos então a um paradoxo que Bohr teria adorado: somente através de um ato inexplicável de incerteza da mecânica quântica que o nosso universo pode ter chegado a sua existência, disparando uma cadeia de eventos que levou ao nosso aparecimento em cena, nos perguntando que ‘ímpeto’ original nos trouxe a existência”

O que esse belíssimo trecho final do livro de David Lindley ‘Incerteza: Einstein, Heisenber, Bohr e a luta pela alma da ciência’ (que poderia muito bem dar origem a um roteiro de filme) não diz, é que o livro é um destruidor de mitos.

Quando li pela primeira vez que “Max Planck, ao passar em revista a sua carreira no seu Scientific Autobiography, observou tristemente que ‘uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem [sic] e uma nova geração cresce familiarizada com ela’” (citado por Thomas S. Kuhn em ‘A Estrutura das Revoluções Científicas’, 1962) nunca poderia imaginar que ele estava falando… de si mesmo. E de Einstein e de Schrödinger. 

Como eu já sabia que Einstein tinha encrencado com o princípio da Incerteza, não veio como uma completa surpresa para mim a resistência que ele criou. Mas a intensidade da resistência e a dedicação a provar que Heisenberg estava errado, chegando a negar os próprios princípios da sua relatividade geral… me surpreenderam. Mas talvez a maior decepção tenha sido Schrödinger, que também não acreditava no que o mundo pudesse existir sem causa e consequência, ação e reação: qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o famoso experimento teórico do gato ‘quântico’ que estaria 50% vivo, 50% morto dentro da caixa foi pensado (originalmente por Einstein) não para ajudar a explicar melhor a mecânica quântica, mas sim para provar que se um gato quântico é impossível (ridículo talvez fosse a palavra mais adequada), então o era toda a mecânica quântica. O cara que eu considerava o ‘pai’ da biofísica, era um bundão!

A triste verdade, é que a história (mesmo o presente) mostra que os cientistas, mesmo os mais honráveis e brilhantes cientistas, quando tem suas filosofias desafiadas, são capazes de dedicar todo o seu intelecto e grande parte do seu tempo a combater as idéias que desafiam suas descobertas ainda que elas contribuam para o avanço da ciência e para a explicação de fenômenos observados quotidianamente.

Michael Shermer no também interessantíssimo livro ‘Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas’ dá a explicação: “Não fazemos escolhas utilizando a inteligência; fazemos escolhas em função das circunstâncias, por medo, para ter aceitação dos pares. Fazemos escolhas até ao acaso. Mas depois de feita uma escolha, utilizamos todo o nosso intelecto, todo o nosso arsenal cognitivo e toda a nossa criatividade para justificá-las, por mais estranhas que elas pareçam”.

Dan Ariely, outro grande autor que conheci recentemente, chama atenção na sua palestra no TED para o ‘conflito de interesses’ que criamos, inevitavelmente, todas as vezes que falamos para defender uma posição. Lidar com esse conflito é um desafio para qualquer pessoa, em qualquer situação, mas acredito que é um desafio especialmente grande para os cientistas, que buscam a verdade real e não consensual.

Sorte do Heinsenberg que nunca precisou se preocupar com isso. A descoberta dele foi tão incrível e tão definitiva, que ele nunca precisou defender sua descoberta de si mesmo. Heisenberg seria ‘o’ cara se não tivesse se juntado aos nazistas para fazer a bomba atômica alemã.

Como falei, o livro é um destruidor de mitos.

Sobre Beagles e Exoesqueletos

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Hesitei em entrar nessa discussão por duas razões: primeiro porque não sou um especialista em ética ou em uso de animais em pesquisa; segundo, porque não acho que exista qualquer coisa que possa ser dita que vá aplacar a motivação daqueles que acreditam que os testes científicos em animais sejam um problema.

A triste verdade é que, com 50% da nossa população beirando o analfabetismo funcional, é extremamente difícil conseguir convencer as pessoas com argumentos técnicos e lógicos. E é por isso que eu acredito que as tentativas dos meus colegas cientistas que entendem muito mais do assunto do que eu para explicar a importância e o cuidado dos cientistas no uso dos animais, tem sido infrutíferas: seus argumentos técnicos funcionam apenas na legião de convertidos capaz de entendê-los e não conseguem alcançar para além deles, a grande massa de excluídos científicos que, sem noção do que é o método científico ou como as coisas que eles usufruem no dia a dia são possíveis, vivem a margem da compreensão das coisas, baseando suas decisões apenas em emoções e percepções superficiais dos problemas.

Quando alguns alunos viram esse vídeo de personalidades falando em defesa dos ‘pobres animais indefesos’, vieram me pedir para fazer um vídeo legal, bem produzido, numa linguagem acessível, sobre a importância do uso de animais em pesquisa.

Mas a verdade é que seria inútil.

, cito Dobzhansky, quando ele diz algo como “quando as conclusões forem desagradáveis, não importa o quão boa seja a explicação ou os fatos: as pessoas irão recusá-las”

Ainda assim, fiquei irritadíssimo ao assistir o tal vídeo: É lamentável que personalidades como essas se disponham a falar de um tema o qual não entendem minimamente, para o qual não apresentam qualquer argumento técnico ou evidência objetiva. Carl Sagan (que eu imagino eles não saibam que foi) disse muito bem: “As pessoas aceitam os produtos da ciência, mas recusam os seus métodos”. Eu gostaria de chamar de hipocrisia, mas é só uma triste falta de conhecimento mesmo.

Conhecimento que textos como esse da neurocientista Lygia Veiga ( A Escolha de Sofia: Os Beagles ou eu, mostra. Nós sabemos o quanto é difícil desenvolver modelos alternativos porque é justamente isso que estamos fazendo no laboratório: Nosso grupo de pesquisa é um dos que não trabalha com animais de sangue quente e sistema nervoso complexo em laboratório, e que se esforça para desenvolver modelos alternativos, que permitam, quando for possível (e é isso que estamos tentando determinar) usar invertebrados como ostras, mexilhões, caranguejos e camarões, em pesquisa biomédica. Bivalves produzem heparina e um monte de outras substâncias úteis para humanos. O primeiro passo para usar esses animais com um sistema nervoso bem primitivo em pesquisa, é conhecer seus genes. É isso que nosso grupo vem fazendo há mais de 3 anos, mas que só agora conseguimos publicar. Ainda assim, com dados preliminares.

Mas nada parece aplacar a ira dos ‘black ALF blocks’, que estão ameaçando pesquisadores e institutos de pesquisa nas redes sociais. E até mesmo meus amigos com grande treinamento em ciência tem postado comentários revoltados nos textos que compartilho na funpage do VQEB no Facebook.

Sob pena de ser julgado pela minha contundência, tenho de afirmar que eles estão equivocados e que nenhuma argumentação ética ou filosófica sobre esse argumento pode se sustentar.

A natureza é Amoral. Tente aplicar ética e moral a natureza e… vamos gerar conflitos irreconciliáveis.

Nos damos ao luxo de discutir o bem estar animal hoje, quando a competição por recursos DENTRO da nossa espécie foi minimizada pela agricultura e… a criação de animais. Por que se acabarmos com os supermercados e restaurantes, não nos preocuparemos nem mesmo com o próximo. Será cada um por si, como está ‘escrito’ nos nossos genes.

Todas, eu disse TODAS, as espécies animais e vegetais exploram o seu ambiente, o que inclui outros animais e vegetais.

Da mesma forma que não podemos acabar com a poluição, porque a segunda lei da termodinâmica dita que não há uso de energia sem produção de resíduo, não creio que seja possível acabar com a exploração animal e vegetal.

Isso não é um argumento para um ponto de vista ou outro: é uma constatação! A natureza é Amoral e não existe certo ou errado, bom ou ruim… o que existe são ‘Estratégias Evolutivamente Estáveis’: o que funciona, evolutivamente, em curto, médio e longo prazo.

Meu chute é que uma estratégia de ‘não exploração de recursos animais ou vegetais’ está fadada a não permanência no pool gênico das gerações futuras. Da mesma forma, não acredito que estratégias de exploração exaustiva fiquem para contar história.

Mas será que seremos nós a decidir? Eu acho que não. Acho que nos extinguiremos como espécie antes disso. É preciso ser mais inteligente do que nós somos, ou menos sensível aos nossos instintos, para criar uma estratégia evolutivamente estável no que tange a exploração de recursos, sejam eles animais, vegetais ou minerais.

Até lá, vamos fazer o melhor que podemos, o que inclui implantar cirurgicamente eletrodos na cabeça (no cérebro) de uma criança tetraplégica para que ela consiga operar uma roupa experimental com o pensamento e dar o ponta pé inicial da copa do mundo do Brasil.

Sarau científico?

Essa é a proposta da EURAXESS – Researchers in Motion uma iniciativa da União Europeia para dar acesso, apoio e informação a pesquisadores brasileiros que queiram trabalhar ou se envolver em pesquisas científicas (e sociais) na Europa.
Mas mais do que isso, é uma oportunidade incrível para fazer algo diferente: expor sua pesquisa e suas idéias, com rigor científico, mas sem o formalismo dos congressos e seminários.
Eu estou triste de não poder participar 🙁
Mas se você é aluno de doutorado ou Pos-doc, não perca essa chance!
Veja o vídeo que é super bacana e o cartaz com as informações abaixo. Até 1o de setembro, é tempo mais que suficiente para preparar seu vídeo.
 
EURAXESS_Science_Slam
 

Deixe o texto descansar

Há alguns dias escrevi sobre porque devemos escrever um blog. Na verdade estava escrevendo sobre porque devemos praticar a escrita, principalmente no meio acadêmico onde escrever dissertações, teses e artigos é mais do que uma obrigação, é uma questão de sobrevivência.

Hoje, corrigindo um texto de uma tese, tive uma epifania: descobri o que significa ‘deixar o texto descansar’.

Obviamente é uma metáfora e nunca ninguém que escreve, principalmente teses e artigos, duvidou da importância desse procedimento, por mais obscuro que sejam suas razões e significados. Porque um texto tem que descansar?

Na verdade, somos nós que temos que descansar do texto. Mas isso também não ajuda a esclarecer porque o processo é importante. Ainda que muitas pessoas consigam executar um procedimento apenas com base na instrução para vê-lo funcionar; outras precisam de explicação para compreender o processo e assim aplicá-lo. Nem sempre é possível. Inúmeras vezes, na FLIP, vi escritores experientes descreverem de maneira completamente hermética, como decidiam quando um texto estava bom: “Eu lia e relia, escrevia e rescrevia, até que achava que estava bom”.

Hoje, discutindo a tese de um aluno, percebi porque é importante. Quando estamos escrevendo, a leitura que fazemos do nosso texto é influenciada pela idéia que temos em nossa mente. Escrevemos achando que estamos conseguindo colocar no papel tudo que está na cachola.

Paramos para ler o que escrevemos, para ver se está tudo claro, e olhamos mas não vemos: a nossa visão não repete o que está no papel, mas o que está na cabeça.

Vocês já viram aquele texto escrito apenas com partes das palavras, mas que não impede que tenhamos a compreensão total da idéia? Que nos deixa até nervosos com o quanto é automática a leitura, apesar de tantas letras estarem fora do lugar? Não?! Copio ele aqui então antes da minha conclusão:

“De aorcdo com uma peqsiusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lteras de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lteras etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma bçguana ttaol, que vcoê anida pdoe ler sem pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa ltera isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. Sohw de bloa!”

Você precisa deixar um texto na gaveta até que sua mente se esqueça do que você queria dizer na hora que estava escrevendo e você possa finalmente ler o que escreveu, ao invés de ‘ler’ o que queria ter dito. Quanto tempo de descanso? Acho que um mês de férias 🙂

Porque é importante para um cientista ir a uma festa literária?

Para mim, a principal atividade do cientista é estudar.

Produzir dados no laboratório (ou no campo) é uma das coisas que o cientista faz, mas transformar esses dados em informação e conhecimento é (ou deveria ser) a sua principal atividade. E para isso o domínio da linguagem escrita, da habilidade de se comunicar por escrito, de ler de maneira critica desvendando um texto e de criticar o próprio texto são fundamentais.

Por isso, vir para Paraty ouvir Roberto da Matta dizer que “quanto mais velhos fixamos, mais temos opiniões sobre tudo” ouvir Stephen Greenblatt dizer que Shakespeare “rescrevia incansavelmente seus textos”, ouvir James Shapiro falar sobre como “os autores tinha pavor de serem ‘rescritos’ por Shakespeare“, ver a empatia infinita de Gabeira, ou como uma boa idéia (“E se Renè Descartes tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau?”) ser destruída por Cao Guimarães no chatíssimo filme Ex-isto; é tão importante.

Nos ajuda a criar valores e parâmetros que são importantes para o nosso senso crítico na atividade de ler e escrever, que é uma atividade fundamental e complexa para o cientista. E que não se aprende e não se desenvolve a não ser pela prática.

A tese sobre a escrita da tese

Em um mundo saturado de informação, não basta mais o aluno ‘saber’. Ele precisa saber aprender e saber mostrar o que aprendeu também. Se não souber selecionar informação, se não souber ser preciso, conciso, coeso e coerente, não vai conseguir identificar o que importa do que não importa no mar de informação. E não vai conseguir responder uma pergunta de prova, montar uma apresentação para um processo de seleção, nem sobreviver a uma entrevista de emprego.

Para todos os alunos, a experiência mais comum de produção de conteúdo é a resposta de prova. Por mais namoradas que um cara tenha na vida, ele responderá muito mais questões de prova do que escreverá cartas de amor. Ainda assim, na escola ninguém ensina a gente a ‘responder’ o que o professor está perguntando, o que é uma habilidade tão importante quanto ‘saber’ o que o professor quer saber se a gente sabem ou não. Para alguns alunos, aqueles que chegaram na pós-graduação, as angústias da resposta da prova se multiplicam e se amplificam na hora de escrever a tese. Sim, porque não conheço nenhum curso de pós-graduação que ensine seus alunos a escreverem suas teses (da mesma forma que não ensinam os professores a avaliarem essas teses). É como se escrever fosse uma habilidade natural, com a qual a gente já nasce. Ou um talento, que quem tem está feito e quem não tem… está… perdido.

Com a ‘Oficina de Escrita Criativa em Ciência‘ nós temos tentado mostrar que escrever não é uma questão de talento, é uma questão de prática, porque envolve uma coisa que não se ensina mas se pratica, que é critério. Então pra melhorar a sua escrita você precisa primeiro querer escrever melhor e depois… escrever!

Mas ainda assim as pessoas tem dificuldade. Escrever, como disse a Bruna Surfistinha, ‘É uma questão de coragem’, coragem de se expor, coragem de errar. E muita gente não tem essa coragem. Mas ainda assim temos que escrever. Então nós criamos o ‘roteiro do bioletim‘ que deveria ajudar as pessoas a selecionar informação de uma maneira amigável. Com a experiência, descobrimos que nem com o roteiro do Bioletim as pessoas escrevem. Por mais que ele te ajude a organizar as idéias, ele não ajuda a diminuir o medo e ele não pratica por você: você ainda tem que buscar fontes, identificar seu público alvo, escrever, rescrever… dá trabalho.

A segunda constatação é que quem tenta escapar do trabalho… não escreve. Ou não escreve bem, o que, em um mundo saturado de informação, acaba dando no mesmo (porque ninguém vai ler). Essas pessoas não vêem valor no roteiro do Bioletim porque ele é um roteiro sem ser um guia. Ele te diz ‘o que’ tem de ser feito, mas não diz ‘como’. Ele estabelece limites (de seções, de tópicos, de número de parágrafos, de palavras por parágrafo), te ajuda a escrever um primeiro rascunho (que é a parte mais complicada para a maioria das pessoas) mas não há garantias de que você selecionou a informação corretamente e nem que o artigo produzido seja interessante. Ou que alguém vá querer ler. Nunca há garantia de que o resultado tenha sido bom.

As angustias vão se acumulando e quando você vê, está na hora de escrever a tal da tese e você não tem idéia do que fazer. Ou melhor, tem sim: quer escrever a tese da mesma forma que você ‘lê’ a tese. Você quer começar pela introdução, depois os objetivos… e terminar na discussão e nas conclusões. Na verdade, você senta no computador e quer escrever o título, fazer a folha de rosto e escrever os agradecimentos. E quer deixar as referências por último. TUDO ERRADO! Não é assim que se escreve uma tese. Quer dizer, pode até ser, mas é bem mais difícil, ainda que dê menos trabalho.

Ops, como é que pode ser mais difícil e dar menos trabalho?! Bom, leia aqui o texto “Foi o Google quem disse…’ pra saber porque um texto mais curto dá mais trabalho pra ser escrito. Quanto menos trabalho você coloca no texto, pior ele fica e mais tempo leva para ele ficar bom. De novo, não tem como fugir do trabalho para produzir um bom texto. Mas se você quer seguir a sua ‘intuição’ ou se quer ‘esperar a inspiração’ então boa sorte. Você vai precisar.

Mas se quer escrever uma boa tese, é assim que se faz:

  • Escreva um rascunho respondendo os ‘sete lugares do pensamento’ pra sua tese. Se você já fez a ‘Oficina de Escrita Criativa em Ciência’ vai ser fácil. Se não fez, você pode estudar alguns textos sobre o assunto que estão compilados no livro digital que nós produzimos para a oficina e tentar. Esse rascunho será o seu ‘mapa’ para escrever a tese mais rápido e melhor.  Vai te dar direção e permitir que você corrija desvios no caminho. Responda cada pergunta com uma frase de no máximo duas linhas. Você pode imprimir essa 1 página e colar na parede atrás do monitor do computador. Esse mapa será seu companheiro pelas próximas semanas.
  • DEPOIS (e só depois) de responder as sete perguntas dos lugares do pensamento, escreva uma versão reduzida, de 3 a 5 páginas, da sua tese. Essa versão é pra você contar a história da tese e não pra fazer um resumo dela. Conte como começou, qual foi o primeiro experimento, como você progrediu, o que aconteceu depois, quais foram os experimentos que se seguiram, o que você aprendeu, o que precisou estudar, o que descobriu… O mais importante nessa versão é que ela tenha começo meio e fim, ao invés de Introdução, M&M, Resultados e Discussão. Essa versão não servirá de base para a tese, mas vai te ajudar a criar um fio condutor para suas idéias que te ajudará enormemente durante a produção do manuscrito
  • Isso tudo você pode fazer mesmo antes de ter terminado todos os resultados. Mas para começar a escrever a tese mesmo, é importante ter todos os seus resultados (ou quase todos) prontos. Isso porque a tese, se começa a escrever pelos resultados.
    • Organize seus dados em tabelas e gráficos. Pode organizar os mesmos dados em tabelas e em gráficos para depois decidir qual deles permite uma compreensão melhor dos resultados. Nesse caso a primeira etapa é escolher qual gráfico é mais adequado para os seus dados.
    • Gráficos de barras são adequados para variáveis que ‘saem’ do zero e ‘chegam’ a um valor. Crescem ou decrescem. Valores pontuais, obtidos de replicas técnicas e biológicas, que são muito comuns em experimentos na área biomédica, devem ser representados por gráficos do tipo box-plot.
    • Não, nem tudo na vida é normal. Muito menos nos seus experimentos em laboratório. Se você não sabe muito bem o que está fazendo, então use boxes com mediana e quartis. Visualmente você já vai ter uma idéia a distribuição (normal ou não) de cada grupo de dados. E é justamente ai que, nesse grupo de dados, que deve ser testada distribuição a priori e não nos conjuntos de todos os dados para uma variável. Abre parênteses: Um erro comum é ‘agrupar’ todos os dados de uma variável (controle, tratado, tempos, réplicas) e avaliar a normalidade desse conjunto de dados. Isso está errado! Você tem que avaliar a normalidade em cada grupo de dados que será utilizado para calcular a média e o desvio padrão que serão utilizados para comparação entre esses grupos em um teste de hipótese. Como a maior parte das pessoas usa um n=3 para suas réplicas biológicas, são esses 3 míseros dados que devem ter a normalidade testada. Como você verá muitas vezes o software nem consegue fazer isso e se ele te diz que os dados são normais… não confie. Fecha parênteses
    • Se você não tem muita certeza do que está fazendo, use o teste não paramétrico U de Mann-Whitney para comparar qualquer dois grupos que te interessem e regressão de Sperman-Karber para ver a dependência entre duas variáveis contínuas. Se houver diferença mesmo, ela vai aparecer do mesmo jeito que na análise paramétrica usando média e desvio padrão, só que você não corre o risco de criar diferenças quando elas não existem, e nem de passar vergonha na hora que a banca te perguntar porque você usou uma coisa ou outra.
  • Depois dos resultados, escreva as conclusões. Em tópicos numerados, com base nos resultados como foram descritos acima.
  • Depois das conclusões, os Objetivos. Também em tópicos identificados por letras.
  • Associe os objetivos (letras) e as conclusões (números). Não pode ter objetivo sem conclusão ou conclusão sem objetivo. Todo objetivo deve ser respondido por (pelo menos) uma conclusão. Toda conclusão deve estar associada a pelo menos um objetivo.
    Volte ao mapa da tese e confira se objetivos e conclusões estão dentro dos sete lugares do pensamento. Faca ajustes no ‘mapa’ se necessário (mas se o seu mapa foi bem feito, é mais provável que você tenha que fazer ajustes nos seus objetivos e conclusões).
  • Faça um mapa conceitual da sua introdução. Mapas conceituais são uma técnica que ainda não tratamos na oficina de escrita, mas que você pode estudar um pouco sobre ela aqui. Ela ajuda a identificar os os núcleos conceituais que devem estar na introdução, e que são aqueles necessários para que o leitor entenda os objetivos, os métodos e os resultados do seu trabalho. Abre parênteses: Você não precisa dizer tudo para o leitor: defina quais as ‘ lacunas’ você espera que o leitor preencha e quais você vai preencher pra ele. Não trate o leitor como burro: se ele já deve saber alguma coisa, ou se é de domínio publico, você não precisa dizer. Lembre-se também que seu público, na tese, é limitado e especializado. Fecha parênteses.
  • Faça outro mapa conceitual para a discussão. O mapa conceitual ajuda a estabelecer relações, filtrar informação e sair da confusão geral da cabeça. Te permite também corrigir depois o texto corrido.
  • Na discussão, seus resultados vem SEMPRE primeiro. Levantamento bibliográfico é pra ser feito na introdução. Na discussão, discutimos o SEU dado, e não tudo que já foi feito no mundo.
    Abre parênteses: a discussão é um delicado equilíbrio entre o que os seus dados deixam e o que eles não deixam você dizer. Até onde a evidencia permite que você vá e até onde você e eu permitiremos que a especulação vá. Além dos resultados, isso será avaliado na tese.dizer menos do que os dados permitem, não extraindo conclusões, é ruim, talvez até pior, do que expectar e inferir sem lastro experimental e estatístico. Fecha parênteses.
  • E os dados mais importantes vêm sempre antes dos dados menos importantes.
  • Pronto. Agora você pode fazer todo o resto, que é escrever sumário, resumo, referências, título.

Fazer desse jeito vai te dar trabalho, mas te garanto que você não ficará nenhum dia olhando para o computador perdido sem saber que fazer. As correções serão menores também. Se você ainda tiver alguma dúvida, dê uma olhada no post ‘check-list‘, onde eu já discuti quais os critérios que um aluno deve usar para saber se a tese dele está ‘pronta’ para a defesa.

Diálogo

Meus amigos inteligentes, e eu tenho muitos, são uma constante fonte de inspiração para mim. Mas  também de inquietação. Uma inquietação produtiva, como eu já descrevi aqui.

Nesse feriado prolongado chuvoso que termina hoje com a previsão de sol para amanhã, eu tive que defender a ciência em roda de samba e mesa de bar (só faltou estádio de futebol, mas eu estava na mesa de bar vendo o jogo – sim, porque se o Vasco perdeu, então a taça Rio não era final, porque não é campeonato pra ter campeão e vice – e não é mesmo!) de amigos brilhantes mas que não são tão nerds quanto eu.

A questão é simples: quanto tenho um argumento ‘científico’ para uma discussão qualquer (como a que eu estava tendo domingo com o matemático Fernando Goldenberg na praça São Salvador, no Rio, sobre a formação de comportamentos sociais a partir de instintos biológicos, enquanto as garrafas de Bohemia se empilhavam na mesa na mesma velocidade dos contra-ataques do Botafogo) me encho da força, da convicção e até mesmo da contundência que um argumento científico proporciona (muitas vezes pelo menos). Bom, as vezes um pouco da arrogância também.

E foi com essa convicção que eu estava afirmando que, por mais que eu adore e seja fã da psicanálise, não posso considerá-la uma ciência. O conhecimento e o sucesso obtidos por essa prática não obedecem os requisitos para serem considerados ‘científicos’ (basicamente, serem obtidos pelo ‘método científico’). E por isso, essa prática não pode ser considerada ‘ciência’.

“Mas o que é ciência então?” perguntou o Fernando

“Ciência é o que você obtém por um processo que, quando repetido ou replicado, alcança o mesmo resultado” eu respondi.

“Mas isso então exclui todas as ciências sociais como ciência” ele retrucou

“Exatamente” eu conclui, para desespero da minha amiga Alba Zaluar, caso ela venha a ler isto.

Mas o Fernando, além de matemático, foi dono de bar (do Estephanio’s Bar na Tijuca, o melhor bar do mundo), o que o torna mestre, doutor PhD e pos-doc em sociologia, sociopatia, antropologia, antropofagia, antropomorfia e o que mais você quiser. E não se entrega fácil.

“Mas a verdade científica muda. Sempre mudou. O que é verdade hoje não é mais amanhã” ele constatou.

“Sim, porque o método científico aceita a incerteza.” disse enquanto abria mais uma garrafa de Bohemia.

“Então meu amigo, se o que você chama de ciência aceita a incerteza, porque não podemos aceitar que as ciências sociais, que são cheias de incerteza, também sejam ciência?”

Touche! Nunca tinha pensado nisso. Ou melhor, tinha sim, lendo, no ano passado, um livro que peguei emprestado do próprio Fernando, e que já resenhei aqui: O último teorema de Fermat. Nesse livro incrível, que, além dde contar a epopéia do inglês Andrew Wiles na resolução do maior problema do mundo, conta também uma excelente história da matemática, o autor discute logo no início do livro a questão da prova absoluta.

“Em matemática, o conceito de prova é muito mais rigoroso e poderoso do que o que usamos em nosso dia-a-dia e até mesmo mais preciso do que o conceito de prova como entendido pelos físicos e químicos. (…) Os teoremas matemáticos dependem deste processo lógico, e uma vez demonstrados eles serão considerados verdade até o final dos tempos. A prova matemática é absoluta.”

Como cientista, eu me treino, e treino os outros, para reconhecer, compreender, aceitar e finalmente lidar com a incerteza. E sei, portanto, que por causa dela, a prova científica nunca será definitiva como a prova matemática.

“Aceite Mauro, só a Matemática pode ser chamada de ciência!” Um pavor tenebroso percorreu todo o meu corpo. Era o terceiro gol do Botafogo e sob o efeito do álcool, que eu sou capaz de explicar ao nível bioquímico e molecular, um pilar das minhas certezas estava para ser demolido: teria eu de parar de chamar a biologia de ciência? Também não me entregaria facilmente.

O que mais me incomodava no argumento do Fernando era o fato da matemática em si não ser uma ‘ciência’. Quer dizer, é, mas há controvérsias. Pelo menos na minha cabeça. A matemática é um sistema lógico criado pelo homem. Ela também fornece um conjunto de ferramentas que são utilizadas pelas outras ciências para explicar o mundo. O estudo desse sistema lógico em si (a matemática) pode ser considerado uma ciência (a única capaz de dar provas absolutas) mas ela também é a única ciência que usa as próprias ferramentas que constituem esse sistema lógico para estudá-lo e explicá-lo. A matemática é, até certo ponto, no meu entender, um argumento circular. Isso era um argumento para contrapor qualquer afirmativa do Fernando, mas ainda assim, isso não retrucava o argumento dele, que nesse momento se deliciava com a cerveja gelada e com a minha angustia.

“Fernando, a diferença é que a incerteza do que eu me permito chamar de ‘ciência’ está na ‘medição’. São nossos sentidos e instrumentos que são imperfeitos e sujeitos a imprecisões, não os objetos dos nossos estudos ou o sistema lógico do método científico. Já nas ciências sociais, a incerteza está justamente nesses objetos de estudo. Eu posso não saber a posição e a velocidade de um elétron, como diz o ‘principio da incerteza’, porque não tenho como usar nada menor do que um outro elétron para fazer essa medição e a interação entre eles impede o registro perfeito ou completo das variáveis. Já nas ciências sociais e humanas, além da incerteza na medição (causada pelo fato da observação influenciar no comportamento do observado) nós temos a incerteza no objeto: você nunca sabe o que um homem vai fazer. Pior, o próprio homem nunca sabe o que vai fazer até que a situação apareça e um processo complexo e nem sempre racional, leve a decisão. Nas ciências naturais eu posso conhecer a incerteza (e eventualmente lidar com ela), nas ciências sociais, não. Por isso os processos nunca levam ao mesmo resultado, por isso não são reprodutíveis e replicáveis e por isso não são ciência.”

O argumento foi bom o suficiente para que os dois parassem a discussão (ou foi a menina de shortinho curto e camiseta apertada do botafogo que atravessou o bar que distraiu nossa atenção?!). Brindamos com a saideira e mudamos de assunto. Voltei pra casa triste com a derrota, mas não derrotado. O pilar continua firme, posso continuar implicando com o pessoal das ciências sociais, e como meu time não está ‘de férias’, posso pensar no próximo jogo que é da Libertadores. E na próxima discussão. Dessa vez, 4a feira, no bar do Macarrão, em São Januário.

 

"Conclusões extraordinárias necessitam de evidências extraordinárias"

ResearchBlogging.orgO Mono Lake, na Califórnia, onde encontraram a GFAJ-1

Não poderia ter vindo em um momento melhor. Depois de passar uma manhã frustante na avaliação de alunos em um processo de seleção, vejo a matéria que saiu hoje na Scientific American sobre a refutação do artigo da Science onde um grupo de pesquisadores americanos da NASA e da USGS haviam apresentado uma bactéria que pode crescer na ausência de fósforo (um dos pilares da química da vida, presente no DNA, no ATP e em tudo mais que você puder imaginar) usando como substituto Arsênico (que é altamente tóxico).

“Uma nova química da vida”, “bactérias extra-terrestres”… foi dito de tudo sobre esse artigo, que foi até capa de jornais importantes no mundo todo. Mas a única coisa certa no texto (que você pode acessar no link abaixo) é que a única razão plausível para a Science aceitar publicar essa pesquisa era o sensacionalismo associado a ela.

“Extraordinary claims require extraordinary evidence” disse o astrônomo Carl Sagan numa de suas mais famosas citações na série Cosmos. E foi justamente isso que chamou minha atenção hoje no processo de seleção em que participei como examinador: Nenhum, eu disse NENHUM dos candidatos usou sequer um segundo do seu tempo para apresentar um desenho experimental (ou amostral) que mostrasse conhecimento (ou preocupação) com a comprovação das importantes e interessantes propostas que estavam fazendo. É por isso que o artigo de Ioannidis de 2005, “Porque a maior parte das descobertas científicas publicadas é falsa” continua sendo um campeão de downloads da revista PLoS Medicine: ele mostra como o desconhecimento de estatística (a busca por associações significativas e a confusão com relações de causalidade) além de interpretações tendenciosas de dados, levam a falsas conclusões em grande parte dos estudos médicos publicados nos últimos 15 anos. É por isso também que meu pai fica perdido quando lê nos jornais, a cada semana, uma notícia diferente sobre os benefícios disso ou daquilo. O problema não é da ciência, é da política científica. Mas os cientistas, jovens ou não tão jovens, estão embarcando nessa politicagem por medo de não conseguirem um lugar ao sol da acadêmia.

E para mostrar que existem alternativas a politicagem, a própria responsável pelo estudo que refutou o artigo da Science, a microbiologista Rosie Redfield da Universidade de British Columbia no Canadá, não seguiu o mainstream e ao invés de esperar a finalização dos seus estudos para submetê-los ao subvertido crivo de uma revista indexada de alto impacto, publicou seus resultados (na verdade todo o seu caderno de protocolo), dia a dia, em um blog aberto a todo mundo. Vejam que ela não deixou de submeter seus achados a comunidade acadêmica: ela só desmereceu o supervalorizado e tendencioso crivo das revistas científicas de alto impacto (como o da própria Science onde o artigo inicial foi publicado). Uma reportagem da prestigiosa Nature disse . O blog é sensacional, mas não seria se a PESQUISA não fosse sensacional!

Não é a primeira que os blogs são utilizados para divulgar pesquisa científica de qualidade: no surto de infecção da bactéria #EAEC (entero-aggregative E. coli) que matou milhares de pessoas na Alemanha no ano passado, cientistas chineses publicavam dia a dia novas sequencias do genoma da bactéria conforme elas iam sendo produzidas em sequenciadores de bancada de última geração. A reportagem na Nature traz outros exemplos.

Mas pesquisa de qualidade, que possa ser publicada em blogs de acesso livre para toda a comunidade científica, começam com um exame criterioso da sua plausabilidade, com a formulação cuidadosa de uma hipótese e com um mais cuidadoso ainda desenho experimental (ou amostral).

Wolfe-Simon, F., Blum, J., Kulp, T., Gordon, G., Hoeft, S., Pett-Ridge, J., Stolz, J., Webb, S., Weber, P., Davies, P., Anbar, A., & Oremland, R. (2010). A Bacterium That Can Grow by Using Arsenic Instead of Phosphorus Science, 332 (6034), 1163-1166 DOI: 10.1126/science.1197258

 Ioannidis, J. (2005). Why Most Published Research Findings Are False PLoS Medicine, 2 (8) DOI: 10.1371/journal.pmed.0020124

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