Ao mestre, com carinho

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No mês passado, depois de 15 anos, voltei à Rio Grande, à FURG, à universidade onde fiz o mestrado em Oceanografia Biológica. Meu orientador, Euclydes Santos, estava para se aposentar (por motivos alheios a sua vontade) e seus ex-alunos prepararam uma pequena cerimônia de despedida, onde seria entregue uma placa e proferidas algumas palavras (e como tudo no RS, terminaria em churrasco). Uma pequena homenagem para um grande professor.
Então, quando um dos seus ex-alunos, o hoje prof. Luis Eduardo (ou o Carioca como é conhecido em Rio Grande), me perguntou se eu gostaria de ter meu nome na placa de homenagem, eu não hesitei. Mas quando ele perguntou se eu gostaria de mandar algumas palavras para serem lidas na homenagem, eu disse:
“Não, eu mesmo vou até ai para lê-las”.
Na prática a decisão foi facilitada por eu participar de um programa da CAPES chamado PROCAD que permite o intercâmbio de alunos e docentes entre as duas universidades. Eu teria que ir mesmo até lá em algum momento, e nenhum outro me pareceu mais oportuno do que esse. Mas ir até Rio Grande nunca é simples. Meus sentimentos com relação aquele lugar são muito ambíguos e por vezes, contraditórios.
Quem já me ouviu falar de Rio Grande, principalmente depois de duas cervejas, sabe que sobra veneno para destilar. Afinal, como diz meu amigo, dono de bar e filósofo Fernando Goldenberg: “a história verdadeira é sempre aquela que for a mais engraçada”. E como disse Nick Hornsby no livro ’31 canções’: “a crítica e a ironia sempre são mais divertidas que o temperança e a tolerância.” (bem, na verdade ele falou isso do preconceito, mas a idéia se aplica).
Mas quando penso de novo, vejo que foi um período de grande e intenso crescimento, pessoal e profissional. Talvez o maior que já experimentei. E quando penso mais ainda, me vêm tantas lembranças, e tão boas, das pessoas que lá conheci.
Mas outro motivo me motivou (Ugh! Essa até doeu) a despencar daqui pra lá. Eu tenho pensado muito na tarefa de orientar. Para mim, orientar é o maior desafio da vida acadêmica e provavelmente aquele para o qual somos menos preparados ao longo da nossa formação de cientistas. Nenhum curso de RH. Nenhum curso de psicologia. Nenhuma dica de sociologia e antropologia. Nenhuma aula de Judô ou Caratê.
E ao pensar nisso, cada vez mais pensava no meu antigo orientador, porque cada vez mais me vejo como ele. Euclydes se tornou meu principal modelo. E como disse uma vez minha querida amiga Celina, que trocou o Rio pelo Planalto Central mas esteve nos visitando no final de semana anterior a minha viagem: “Nós escolhemos uma coisa para fazer diferente dos nossos pais. O resto, todo o resto, fazemos igualzinho.”
Eu hoje sou orientador, já participei de muitas defesas de tese, várias de alunos meus, e hoje tenho 4 alunos de doutorado, 2 de mestrado e 1 de iniciação científica. E tenho me visto um orientador cada vez mais parecido com o Euclydes: serio, durão, inteligente e brilhante. Nós também compartilhávamos a modéstia 😉
Então, as coincidências não são realmente coincidências: Minha disciplina na pós, hoje, ‘Relações entre genes ambiente’ é parecida com a que fiz com ele no mestrado “Adaptações fisiológicas de animais estuarinos’. Uso até alguns dos mesmos artigos, como Gould e Lewontin (1979). Eu comecei a beber café em caneca de congresso que nem ele, porque, para mim, nada, nem mesmo os cabelos despenteados e a língua para fora de Einstein, era mais representativo da imagem do cientista, do que beber café no laboratório na caneca que você trouxe de um congresso internacional que participou, enquanto reflete sobre alguma questão fundamental da ciência. Também apliquei, com algum sucesso, uma estratégia de ação no ambiente profissional que aprendi com ele, que era “aumente o seu grupo além da sua capacidade de suporte, para que você se torne sempre uma prioridade nas disputas por recursos.”
Coincidência talvez seja que hoje tenho até a idade que Euclydes tinha quando eu fui seu aluno.
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Foi, mais uma vez, tão bom conversar com ele, com sua mente ágil e desperta, com sua inteligência privilegiada. Descobri que meu orientador não divide comigo o gosto pela biologia molecular, mas gosta de cozinhar e tem um blog de cozinha; que fez direito e publicou um livro sobre a ética no uso de animais em pesquisa. E que mesmo sendo durão, foi o coração, que ele tanto desvendou em sala de aula, e não o cansaço, que o obrigou a se afastar prematuramente da universidade. Descobri um amigo e fiquei tão feliz com isso.
Acabei descobrindo que os desafios que com os quais me debato hoje são os mesmos com os quais ele se debatia antes: “Nenhum aluno é igual ao outro. O que funciona pra um, simplesmente não funciona pra outro. E não tem uma fórmula. As vezes você está, ao mesmo tempo, acertando com um e errando com outro. Não tem como acertar com todos.”
E finalmente, descobri que como professor e orientador não poderei ser querido por todos os meus alunos. E tenho que me preparar psicologicamente para isso.
Eu já disse aqui que a ciência é democrática mas não é uma democracia. Acredito que o que me aproxima do meu antigo orientador, é que assim como ele, acredito que a ciência não pode flexibilizar seus requisitos. E nem nós podemos. E assim como ele, eu posso lidar com as conseqüências disso para mim. E espero que assim como eu, meus alunos possam lidar com as conseqüências disso para eles.

Espreguiçado

Detrítos ou partículas de neve marinha em torno das tubulações próximas a um recife de coral.

Quando eu estava no mestrado, em uma cidade fria a longínqua, fiz uma disciplina excelente de microbiologia marinha. Até hoje uso o que eu aprendi nas várias aulas de ecologia e biologia marinha que eu eventualmente ministro por ai.
Mas tive um problema com o professor que, até hoje (na minha cabeça) não resolvi direito. O problema é que ele meu deu B em um curso que eu (achava que) merecia A (bom, houve outros problemas também, mas isso fica pra outra vez – ou não). Como eu disse, eu gostava e entendia do tema. Também lia os artigos e participava das aulas. Mas isso não era suficiente para ele. Ele queria superação! E ao invés disso eu optei por ir passar o final de semana em Santa Maria na véspera do prova dele. Fui lendo os artigos pra prova na viagem de ônibus, mas era de noite e eu acabei optando por dormir. Acabei deixando os artigos na poltrona do ônibus e não estudei nada o final de semana todo. Peguei o ônibus de volta no domingo a noite e cheguei de volta em Rio Grande na hora da prova. Fiz uma boa prova mesmo sem ter estudado (afinal, eu assistia atentamente todas as aulas) e quando recebi o B no final do curso, fui falar com ele pra tentar entender o porquê. A resposta foi frustrante:
“Mauro, você é muito bom e você sabe que é bom. E por isso você é preguiçoso. E é por isso que eu te dei B.”
Talvez seja importante acrescentar que o mané da oceanografia física que fez uma bosta de prova tirou A, porque ele se ‘superou’.
Hoje eu reconheço que eu era (e em parte ainda sou) meio preguiçoso mesmo. Mas também hoje, que dou meus próprios cursos e tenho meus próprios alunos de pós-graduação, discordo, veementemente, da estratégia de avaliação dele.
Ele quis me dar uma lição, que eu provavelmente precisava, enquanto me avaliava com relação a disciplina que ele ministrou. Mas nem sempre dois coelhos podem ser mortos com uma cajadada só. É que a preguiça é um critério difícil de avaliar de forma acadêmica. Acredito que um professor pode usar o critério que lhe convier para avaliar os alunos. A justiça não está no critério em si, mas no conhecimento dos critérios a priori. Se eu soubesse que o critério era superação, talvez tivesse me comportado de maneira diferente. Ou, mais provavelmente, não teria feito a disciplina.
O resultado é que ele perdeu meu respeito como professor (como eu disse, houve outros motivos) e pra me dar meia lição, eu nunca mais aprendi nada com ele.
Porque lembrei disso hoje? Porque eu tenho um aluno que também é brilhante e preguiçoso. E ainda teimoso (como eu também era/sou). E como meu professor 15 anos atrás, me debato em como lidar com a preguiça dos alunos brilhantes.
A preguiça não é um problema quando você tem critério. Eu acho que já tinha critério, por isso acho que minha preguiça nunca me impediu de progredir. Mas o problema da preguiça é que ela pode corroer os seus critérios, e ai você afunda.
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Envolvi meus alunos de doutorado em um projeto interessantíssimo chamado TRIVIA, coordenado pela Sonia Rodrigues, que envolve preparação para o vestibular (ou ENEM), inclusão digital e inclusão científica. O trabalho parecia simples: formular questões de biologia que preparassem os alunos para as provas que tem de enfrentar ao final do ensino médio. Mas como as questões seriam oferecidas na internet, o formato e a linguagem tinham especificidades. E para um aluno de doutorado que almeja um futuro na academia, uma oportunidade dessas é, mais do que a chance de conseguir uns trocados, é a chance de aprender algo novo que poderá ser útil no futuro. E nesse caso, não é a ‘biologia’ das questões que eles vão aprender, mas a linguagem e o formato da WEB, que estarão cada vez mais presentes no presente de professores e alunos.
As questões deveriam ser curtas, objetivas e o mais importante, deveriam, no enunciado e no gabarito, SEMPRE, ensinar alguma coisa. É simples e deveria ser fácil. E é, mas fazer direito, dá trabalho.
Os alunos foram aprendendo e incorporando o formato a medida que preparavam as questões. Mas ainda assim, um deles continuou cometendo os mesmos erros de forma desde o início. E hoje, quando estou para entregar a última fornada, vejo que é por uma dificuldade de incorporar o modelo. Como eu disse, o cara é brilhante. O problema é preguiça.
Existe alguma outra explicação para um cara brilhante fazer a seguinte pergunta:
Pergunta: As espécies que se alimentam de plâncton são chamadas de:

a) Planctívoras
b) Herbívoras
c) Carnívoras

Gabarito:

a) Correto. Espécies planctívoras se alimentam de plâncton.
b) Incorreto. Herbívoras se alimentam de vegetais e o plâncton também é composto por animais.
c) Incorreto. Carnívoros se alimentam de carne e o plâncton também é composto por vegetais.

Isso me frustra, como orientador, de diferentes maneiras (que eu ainda vou discutir no próximo post), porque mostra que eu não estou sendo orientador o suficiente (e não é por preguiça). Mas me estimula também a buscar novas maneiras de dizer as principais coisas que alunos de pós-graduação precisam aprender:

  • Que a seleção natural não dorme nunca! Que enquanto eles deixam de aprender uma coisa, outro aprende, essa e mais algumas outras.
  • Que no mundo de hoje, mais importante que acumular conhecimento, é ter critério para selecionar conhecimento que realmente importa.
  • Que se não dá pra fazer tudo, e se é importante namorar, dormir, fazer festa e ir a praia, use a sua preguiça para não aceitar todos os desafios. É mais honesto e menos arriscado do que tentar fazer mais do que você consegue de forma preguiçosa.

É isso. Todos precisamos nos superar.

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