Como saber quando alguma coisa se quebrou?
Já com relações é mais difícil. Como podemos determinar que um vinculo, uma relação se quebrou? Qual o ponto onde sua estrutura é modificada a ponto de perder a sua função?
Acho que a dificuldade para definir o ponto de quebra é que relações não são estáticas. Parecem mais com organismos vivos do que com copos. Um copo, depois de formado e até que se quebre, é, e continuará sendo sempre, um copo. Relações são mais complexas.
Complexas, essa é uma ótima palavra e provavelmente a mais adequada.
Do ponto de vista biológico, complexidade significa 3 coisas: Mecanismos de retroalimentação, redundância e diversidade. Mecanismos de retroalimentação permitem que nos adaptemos a situações. Principalmente as novas situações. Redundância gera alternativas e diversidade gera informação. Mais, gera conhecimento. Fico numa grande dúvida pra dizer qual dos 3 é o mais importante, mas vou arriscar que para as relações, são os mecanismos de retroalimentação.
Imagino que quanto mais diversas nossas relações, melhor é cada relação individualmente. Também imagino que se temos redundância nas nossas relações, como dois melhores amigos, temos menos risco de ficar na mão. Mas sem retroalimentação, vivemos isolados. A gente faz o que quer, achando que está fazendo o que o outro quer. Sem retroalimentação, a relação é de mão única.
A complexidade permite a evolução. A própria relação entre complexidade e evolução tem um aspecto curioso: a estabilidade. Ela é ao mesmo tempo causa e conseqüência da evolução. Sem estabilidade, um sistema não pode evoluir. E ainda que não seja uma determinação, evolução tende a gerar estabilidade.
Por que isso tudo é importante? Vejam, estávamos falando de quebra. Uma relação jovem, como todo sistema jovem, possui muita energia e pouca diversidade. Sem estabilidade, um evento aleatório (pra não dizer ‘qualquer coisa’ ou ‘sei lá’, vamos supor ‘o dia amanhecer chuvoso no dia que você combina de ir a praia’ ou ‘chegada da sogra para o final de semana’) pode desencadear mudanças bruscas no fluxo de energia do sistema. Como os papéis dos personagens não estão totalmente definidos em uma relação jovem, é difícil essa energia se dissipar por diferentes canais e fácil, muito fácil, gerar agressão. E ruptura.
Claro, nem sempre agressão leva a ruptura. Mas e quando leva? É ai que se quebra? É.
Mas felizmente uma relação não é um copo e tem uma outra característica dos sistemas complexos que eu quase ia esquecendo de mencionar: resiliência.
A capacidade de se recuperar rapidamente depois que o sistema é desequilibrado por uma perturbação é fundamental para que os sistemas possam evoluir, simplesmente porque o sistema SERÁ perturbado e PERDERÁ seu equilíbrio. As coisas mudam no mundo e isso é imutável. E por isso a perturbação e o desequilíbrio são inevitáveis.
A resiliência é possível por duas razões, que ao mesmo tempo são duas condições sin ne qua non: O princípio da incerteza diz que nada volta exatamente para o mesmo lugar. Então depois que um sistema é abalado, ele não pode voltar também para o mesmo lugar. A resiliência é possível porque todo sistema possui, na verdade, mais de um equilíbrio possível. Talvez você não saiba, mas que tem, tem. A outra causa e condição é a conservação de informação. Um sistema pode ser reduzido a sua menor parte que possua todo o conhecimento para recuperar o sistema por completo. No fim das contas, se é inevitável que seu copo se quebre, não esqueça como se faz um novo.
Todos buscamos a estabilidade. O objetivo da mais simples das células, desde o início dos tempos, é manter estabilidade do seu meio interno independente das variações do meio externo, na tentativa de manter intactas as valiosas informações que possui. Mas também queremos mais informações. Queremos NOVAS informações. O dilema entre o novo e o estável é apenas um dos muitos com os quais temos de conviver, encontrando um ponto de equilíbrio.
O que melhora com o tempo, com a evolução, é que acabamos por descobrir nossos múltiplos pontos de equilíbrio e a resiliência. E ai perdemos o medo.
II EWCLiPo – Encontro de Weblogs Científicos em Língua Portuguesa
Mas por que fazer um encontro de blogs científicos?
A WEB 2.0 mudou a forma de fazer jornalismo, negócios e política, e está ganhando agora a academia. A redução das redações de ciência nos grande jornais e o aumento dos escritórios de relações públicas em instituições científicas é o cenário onde emergem os próprios cientistas se comunicando diretamente com o grande público através de blogs e se firmando como uma importante fonte de informação científica confiável para a população, com conseqüências diretas no ensino e na aprendizagem de ciências e não só. O encontro promete, em sua reedição, discutir essas temáticas e oferecer aos participantes opções de caminhos para a blogsfera científica em língua portuguesa.
O site BlogPulse que monitora a dinâmica e o conteúdo de blogs na internet recorda 106,612,056 blogs monitorados; tendo sido 55,010 novos blogs nas últimas 24 h com 265.000 novos posts nas últimas 24 h. E a ciência é uma tema mais postado que outros concorrentes de peso como política e religião. Segundo o levantamento do “Anel de Blogs Científicos” da USP de Ribeirão Preto, existem em torno de 120 blogs de ciência no Brasil. A Revista ciência hoje publicou reportagem recentemente sobre o crescimento dos blogs científicos no Brasil.
E ainda há muito espaço para crescer. A Recente pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT – mostra que ainda é incipiente a comunicação de ciência pela Internet. A população se informa mais sobre ciência primeiro pela televisão, com jornais e revistas em segundo, e conversas com amigos em terceiro. A Internet vem apenas em 4º lugar. Além disso, 77% dos entrevistados nunca leram nada na Internet. A tendência é que esses números se revertam nos próximos anos, com a inclusão digital, o avanço da educação à distância e a disponibilização de Internet em banda larga para a população.
Um artigo publicado na revista Nature (vol 458, Março de 2009) mostra que muitos jornais estão fechando suas seções de ciência enquanto jornalistas científicos ficam sobrecarregados e cada vez mais dependentes dos press releases de RPs. Ao mesmo tempo, os cientistas estão partindo diretamente para o grande público através da internet, não só para publicar seus trabalhos, mas também para ‘traduzir’ os temas científicos para o público leigo. Em um país de tantos excluídos, essa ‘Exclusão Científica'” é uma das mais graves, mas as pessoas estão ouvindo falar de genoma, vacina gênica, transgênicos, mutantes, clones, células tronco… sem ter noção de como avaliar o quanto as informações que chegam até elas são verdadeiras. Os blogueiros se consideram uma fonte de informação científica confiável para o grande público.
Mas escrever nesse meio não é trivial. Vivemos em um mundo saturado de informação e precisamos aprender a selecionar melhor a informação. A Internet facilita o armazenamento, acesso e divulgação do conteúdo, mas não a seleção do que deve ser publicado. Os conteúdos são ‘depositados’ ao invés de ‘publicados’. O presidente da Apple, Steve Jobs, diz que na internet “a maioria de nós continua apenas consumidores, ao invés de autores”. Um dos principais desafios para o aumento da qualidade dos conteúdos é a seleção da informação.
Aprender a selecionar o que divulgar é também aprender a selecionar o que investigar e o que produzir! Uma divulgação científica de melhor qualidade leva a uma melhor produção científica e acadêmica, que leva a uma divulgação científica ainda melhor, para combater a exclusão científica, digital e social.
Mais informações sobre o(s) encontro(s) na página do II EWCLiPo.
O cientista Pop das células tronco
Foram 3 dias com a participação de grandes personalidades da ciência como a presidente da FeSBE, Dora Fix Ventura; o presidente da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz; o diretor do instituto de Biofísica, Antônio Carlos Campos de Carvalho; o prof emérito, Darcy Fontoura de Almeida; e ainda Roberto Lent, Leopoldo de Meis entre outros. O então governador do Rio Anthony Garotinho faltou na última hora, mas na presença do secretário de ciência e tecnologia Wanderley de Souza, os organizadores sugeriram idéias que hoje são programas consolidados da FAPERJ como o “Jovens cientistas do nosso estado” e o “Bolsa nota 10”.
Hoje todos aqueles jovens estudantes são professores entusiasmados e batalhadores. Eu, Marcelo Einicker e Jennifer Lowe no Instituto de Biofísica da UFRJ; Marília Zaluar Guimarães no ICB/UFRJ, Milton Moraes no IOC/Fiocruz e Rodrigo Bisaggio no CEFET/RJ.
Mas a idéia do simpósio partiu daquele que é hoje o cientista mais badalado do país. Stevens Rehen, o Bitty (ele não conseguia pronunciar o próprio nome quando era pequeno e inventou o próprio apelido), professor do ICB/UFRJ e chefe do Laboratório Nacional de Células Tronco do Ministério da Saúde. Foi o grupo dele o primeiro no país a conseguir transformar células tronco não embrionárias em pluripotentes (aquelas que podem se transformar em qualquer outro tipo de célula).
Mas para quem já conhece ele de longa data (estudamos juntos no São José – apesar de que naquela época eles não gostavam de mim) sabe que os seus sucessos científicos são consequência inevitável da sua inteligência e trabalho duro. Mas os outros sucessos que a gente não contava é que eu quero falar aqui.
O Bitty sempre defendeu a desqualificação da imagem formal do cientista, taciturno, autista. Hoje ele é um simbolo pop. Tá toda hora nos jornais (ainda que meio desequilibrado em cima do skate – que ele não deve andar já tem uns 10 anos) e no ano passado, no auge do debate das células tronco (devido a pendenga no STF), foi convidado para o Debate MTV, mediado pelo Lobão, onde apareceu usando uma camiseta da banda de reggae do seu irmão (Ponto de Equilíbrio). Gente… um cientista na MTV! O máximo.
Ele é um exemplo a ser seguido. E quando penso nisso, me faz rir ver alguns cientistas seniores, os Sarneys da ciência, os Coronéis do saber, bradarem em reuniões de departamento que são a ‘Vanguarda’ de suas instituições.
Minha única crítica ao Bitty é que ele está trabalhando demais e não tem ido nos ensaios da própria banda onde toca percussão. Mas pelo menos agora ele entrou no Twitter a podemos sempre saber os passos dele.
As aventuras de um carbono viajante
Eu vivia tranquilo em um berçário estelar até que o alarme de incêndio tocou e a professora disse que nossa estrela tinha se transformado em um a supernova e iria explodir. Fiquei assustadíssimo, mas se você acha que os fogos de artifício no Ano Novo em Copacabana são legais, não tem nem idéia do que pode ser a explosão de uma estrela. Fomos, eu e meus primos de hidrogênio, ferro, nitrogênio, todos lançados no espaço sideral no maior fogo de artifício de todos os tempos.
Quando a força da explosão foi diminuindo, nós decidimos passar umas férias nesse novo planeta que estava se formando, a Terra. Era uma pechincha comparado ao que as agências estavam cobrando para as viagens nas caudas de cometas. Além disso, essa coisa de ficar dando voltinhas em torno do sistema solar parecia mais coisa de parquinho de diversão. Coisa para crianças e eu já era um rapazinho, com mais de 5 bilhões de anos.
Eu estava super bronzeado depois de uma temporada no mar de magma. Mas ai chegou o inverno (ou pelo menos começou a esfriar) e as coisas foram engrossando. Se não fosse aquele vulcão, eu poderia ter ficado preso por toda a minha adolescência em alguma rocha basáltica. Achei que não sobreviveria ao grande dilúvio que se sucedeu, mas descobri que era um ótimo nadador e me transformei no primeiro carbono dissolvido da história.
Foi nessa época também que tive meu primeiro caso com uma hidrogênio. Eu era bonitão e elas me perseguiam em grupo. Acabei me juntando com 4 delas, uma era a mais bonita, outra a mais simpática, tinha também a mais inteligente e uma aproveitadora (que só queria meus elétrons). Juntos formávamos uma bela molécula: o metano. Mas sustentar essa mulherada não era fácil e precisei arrumar um emprego. Fui logo convocado para participar do ‘efeito estufa‘, um movimento que, prometiam, mudaria o mundo.
Mais, depois, não se sabe bem como, tudo mudou… de verdade. Um grupo de moléculas revolucionárias, mas muito bem organizadas, começou um movimento chamado ‘vida’. Eles começaram devagar, se reunindo em cristais de argila e depois começaram a se multiplicar. Eles fundaram uma empresa chamada Biotech, construíram o primeiro DNA e a partir dai, nada nunca mais seria o mesmo. Eram tempos muito empolgantes. Pela primeira vez a Gaia teve de reconhecer que não era a única a comandar as coisas no planeta. Os revolucionários da vida começaram devagar, mas já estavam conseguindo modificar algumas coisas. Eu estava saindo de uma festa em uma fonte termal quando fui assediado por membros do movimento. Eu queria sim ser parte de algo maior e acabei me unindo a eles. Os organismos vivos estavam agindo 3 principais frentes de mudança: a oxigenação dos oceanos, a remoção de CO2 da atmosfera e a formação de reservas de combustíveis fósseis.
Eu era jovem e estava na flor da idade quando tomei uma decisão que mudaria a minha vida para sempre: me separei das meninas para fazer parte de uma macromolécula biológica. Eu era bom em matemática e informática e me deixaram entrar em uma molécula de DNA. Eu era o carbono 4 da guanina e segurava as pontas com meu brother carbono 5. Era uma boa posição, mas não tão privilegiada, já que eram os meus chefes, os nitrogênios, que faziam todas as ligações com as hidrogênios.
Eu não reclamava porque de vez em quando, dávamos a sorte de cair em um gameta e experimentávamos a maior de todas as invenções desses seres vivos: a reprodução sexuada! Vivi em vários organismos e com eles aprendi muito. Posso dizer que hoje sou um ser evoluído!
Nessa época os seres vivos estavam terminando um projeto ambicioso: o primeiro ser vivo inteligente. Eu era parte de um genoma duplicado, que tinha acumulado bastante redundância e era capaz de produzir muitas proteínas. Mas ainda assim, era necessário mais gente pra trabalhar. Eu estava meio cansado de toda aquela atividade intelectual e decidi pegar um pouco no batente. Pedi para ser transferido para uma proteína e me mandaram para trabalhar no heme, com meu primo ferro. Fazia alguns bilhões de anos que a gente não se via e eu mal acreditei na coincidência. Afinal, grande parte do Ferro tinha sido enviado para o centro da Terra, para trabalhar no núcleo. Ninguém sabia se aquilo era uma honra ou um castigo, mas o primo estava feliz na sua hemoglobina. Nossa molécula, o heme, era bastante estável. Um grupo de bons camaradas. E como trabalhávamos bem juntos, nunca nos separavam completamente, ainda que nos mudassem de um organismo para outro, de uma proteína para outra. Vocês sabem né, quantas proteínas possuem o grupamento heme. Um dia fomos trabalhar para um tal de citocromo p450. Era um trabalho bastante especializado.
Eu estava orgulhoso de participar do trabalho que os humanos estavam fazendo. Não chegamos a trabalhar em Adão e Eva, mas pude viver em Cleópatra (por pura sorte saímos de lá antes dela ser mordida pela serpente), em Gengis khan (que bebia horrores), Michelangelo, Darwin e Andy Wahroll (que dava um monte de trabalho com todos os alucinógenos que tomava). Eu estava feliz e jamais havia sentido tristeza ou inveja na vida até que ouvi falar de um primo distante que havia encontrado emprego em uma prótese de silicone. Aquilo deveria ser maravilhoso!
Eu estava vivendo no pulmão de Fidel Castro quando nossa tranqüilidade acabou. Fomos atacados por uma mistura tóxica de um ‘puro’ (os charutos cubanos) que o comandante tinha decidido fumar. Não sei se era porque já tinha fumado tantos, ou se porque nós estávamos mesmo já exaustos. Fomos atacados por espécies reativas de oxigênio por todos os lados e após alguns dias na UTI, ‘El comandante’ tinha se recuperado mas nosso heme tinha sido destruído. E com uma escarrada revolucionária, eu estava na rua, sem direito a indenização mesmo depois de milhões de anos de serviços prestados a vida, sendo os últimos milhares dedicados a humanidade. Eu estava apavorado, mas aquilo ainda era pouco para o que me esperava. O mundo não era mais o mesmo.
Parece que a tal da inteligência que os seres vivos tinham dado aos humanos ainda não estava completa e começou a apresentar sérios problemas de fabricação. Isso que dá ficar soltando versão beta no mercado. A essa altura já estava tarde para fazer um recall e foi inevitável o aparecimento do primeiro sintoma do câncer: a poluição. As manchas negras estavam em todos os cantos. Os humanos tinham descoberto as reservas de petróleo, onde meus tios trabalharam milhões de anos atrás e, como se tivessem sido feitas para eles, decidiram que poderiam queimar tudo a seu bel prazer. Não havia mais um ar que pudesse ser respirado, uma água que estivesse limpa e uma terra pra plantar. Tudo estava contaminado.
Os tais dos humanos escravizaram vários elementos em compostos estranhos chamados apolares. Eram drogas sintéticas, pesticidas, plástico, tudo com um objetivo apenas: criar mais humanos. Eu estava vivendo em um coco de gaivota (ou guano) na costa do pacífico do Peru quando fui escravizado por uma industria de PCB. Tentei fugir mas antes que pudesse escapar fui preso pelos guardas da prisão de Ascarel e enviado para um transformador de energia, na esquina de duas ruas do subúrbio. Tomávamos choques elétricos continuamente até que fomos anistiados por uma lei que proibiu o uso de PCBs. Sem saber o que fazer com os ex-prisioneiros, simplesmente nos deixaram ali, vazando. Foi quando aconteceu algo estranhíssimo, mesmo para mim, um carbono tão viajado. Bateu uma corrente de ar mais quente e nosso composto… começou a voar. Mais que um vôo, era um salto, porque quando chegávamos no alto da atmosfera e a temperatura diminuía, descíamos novamente. Fomos assim, subindo e descendo, até o pólo norte.
Vi minha primeira aurora boreal no mesmo dia em que o peixe onde nosso composto persistente tinha bioacumulado foi comido por um urso polar. Era uma situação insólita. Eu vivia morrendo de frio e todo engordurado. O nosso hospedeiro sofria por causa do efeito do PCB e também com o degelo. Acontece que meu antigo empregador, o efeito estufa, continuava atuando, com novos incentivos dados pelo governo mundial, que vivia uma neurose chamada desenvolvimento econômico. Tudo estava derretendo.
Eu estava muito deprimido e achava que era o fim de tudo. Ai encontrei Gaia em uma geleira. Ela estava tirando umas férias pra esquiar um pouco. Queria aprender Snowboarding antes da próxima era glacial. Perguntei como ela podia estar tão tranqüila com toda aquela bagunça instalada na casa dela. Ela riu. Disse que eu estava ficando velho e perdendo a memória. A Terra já tinha passado por outros maus momentos e tinha sempre se recuperado (ou eu já tinha me esquecido do impacto daquele meteoro 65 milhões de anos atrás?). Enquanto ela dava uma relaxada, tinha pedido a sobrinha dela, evolução, para continuar trabalhando. Esses humanos não durariam muito mais tempo. Talvez mais uma centena de milhares de anos. Mas, afinal, o que era isso para ela, uma respeitável senhora de 4,5 bilhões de anos? O melhor era sentar e esperar essa moda de humano passar.
Ela me lembrou que eu tinha sorte de ser uma elemento ciclável. Mas a energia continuava fluindo e por isso, tudo, mais dia menos dia, passa.
Resolvi dar um tempo com ela ali no ártico. A previsão do tempo era de degelo e disseram que ia ser a maior onda. E eu nunca tinha surfado.
Dawkins, uma desilusão.
Por isso, quando a programação da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) desse ano trouxe o nome de Richard Dawkins, sabia que não podia perder a chance de ver de perto um dos meus ídolos vivos.
Dawkins é o autor de “O gene egoísta” que foi um um livro determinante para mim quando o li pela primeira vez em 1990, então estudante dos primeiros anos de Biologia na UFRJ. Com riqueza de exemplos e grande criatividade, Dawkins sugere uma razão, na verdade uma justificativa, para a evolução das espécies (o egoísmo dos nossos genes, que nos usam como máquinas de procriação) usando nada mais que a seleção natural proposta por Darwin 150 anos atrás.
Nessa mesma época, eu tinha meus primeiros sérios embates com a religião. Eu fui criado em um ambiente politeísta, estudava em um colégio católico mas frequentava também a Umbanda com minha mãe, que sempre gostou de ‘bater tambor’. Eu já não acreditava mais em um ‘Deus tradicional’, mas ainda tinha dificuldade de abandonar a idéia do “sentido da vida”. O livro de Dawkins me ajudou a ver a beleza de uma ‘vida sem sentido’.
O livro ainda foi importante para me ajudar em outro embate (o primeiro de muitos que se seguiriam), dessa vez com um rapaz evangélico que estagiava comigo na carcinocultura (cultivo de camarões) da Fazenda Santa Helena. O rapaz (que o nome eu sinceramente não me lembro) era um abastado estudante de uma escola agropecuária e, como não tinha formação científica, nós debatíamos questões técnicas e pessoais, armados com nossos livros de cabeceira: eu com o ‘Gene egoísta’ e ele com a ‘Bíblia sagrada’. A fé do garoto era de uma irracionalidade tão forte, que ajudou a fortalecer a minha razão.
Talvez por isso, quando Dawkins lançou o livro “Deus, um delírio”, não me interessou. Sabia que o livro não era para mim, que já havia me convertido ao ateísmo com o “gene egoísta”. Sabia que o livro era para os não cientistas que, como eu, precisavam de uma boa argumentação para encontrar a beleza na vida sem razão de ser.
Mas ainda assim, como ateu, cientista, leitor e fã (não necessariamente nessa ordem), eu não poderia perder a palestra de Dawkins na FLIP. E, provavelmente, pelas mesmas razões, fiquei tão desiludido com ela.
Mesmo com o Edu avisando dos perígos da FLIP, eu tinha convicção que seria um evento imperdível. A mediação do respeitado jornalista Silio Boccanera, correspondente internacional da Globo por mais de 30 anos, parecia perfeita para introduzir a personalidade internacional ao público e a FLIP o evento mais aproximar um cientista ao público leigo.
Mas não foi.
Dawkins parecia ter pressa. Começaram a entrevista avisando que ele apenas ‘assinaria o nome’ nos livros durante a sessão de autógrafos que se seguiria (nenhuma outra fila da FLIP andou tão rápido). Assim como parecia temeroso da reação da plateia, provavelmente tão católica quanto o resto do nosso país, que é reconhecidamente um dos países mais católicos do mundo (tanto que estava circulando por Paraty com guarda-costas!). Mal sabia ele que o público de ‘descolados’ da FLIP aplaude, entusiasticamente, qualquer coisa que seus autores falem.
Silio foi conivente com esse Dawkins apressado e apreensivo. Colaborou para que ele pudesse se expressar superficialmente, no que mais parecia um FAQ (aquela lista de ‘perguntas mais frequentes’) das críticas mais comuns a ciência, ao ateísmo e as suas idéias. Só que era uma FAQ para um público de radicais de Oklahoma e ele mostrou um total desconhecimento do público brasileiro. Um daqueles ‘bonecos do posto’ faria uma mediação tão boa quanto Silio, que pra completar, resumiu e distorceu minha pergunta que, como vocês podem ver abaixo, era sobre o fim da seleção natural e não da evolução.
Abre parenteses: A pergunta, que por escrito era “A medicina cura deficiências genéticas ou causadas pelo ambiente, humanos em posições hierárquicas mais altas na sociedade estão reproduzindo menos que aqueles em posições mais baixas, porque têm menos tempo. Será o fim da seleção natural do mais adaptado como Darwin concebeu?” foi resumida como “Será que ainda estamos evoluindo?”. Essa resposta eu mesmo já sabia. Fecha parenteses.
Os aplausos entusiasmados da platéia ao final não me comoveram, nem me consolaram (eu cheguei a comentar a ba-ta-lha que foi para conseguir o ingresso?).
Para mim, Dawkins continua sendo um gênio, mas a serviço da divulgação científica, não chega aos pés de Carl Sagan. E a serviço do mercado editorial internacional, não é mais digno da cátedra de “Compreensão Pública da Ciência”, criada para ele em Oxford em 1995 e que ele deixou em 2008.
Da próxima vez que ver o nome dele em uma palestra, seguirei o conselho do próprio Dawkins na dedicatório do livro “A grande história da evolução” (que eu comprei para depois ele acabar autografando com um rabisco) ao grande biólogo John Maynard-Smith (veja abaixo), e se o velho Maynard-Smith não estiver na platéia (o que é infelizmente impossível desde 2004) nem me disporei a assisti-la.
Se você não acredita em mim, ouça você mesmo como foi.
Dawkins na FLIP 2009. Início (25 min)
Dawkins na FLIP 2009. Meio (25 min)
Dawkins na FLIP 2009. Fim (21 min)
PS; Dawkins escreve na dedicatória: “Não ligue para as conferências e seminários, deixe para lá as excursões guiadas aos pontos turísticos, esqueça os recursos audiovisuais sofisticados, os radiomicrofones. A única coisa quer realmente importa em uma conferência é que John Maynard Smith esteja presente e que haja um bar espaçoso e acolhedor. Se ele não puder comparecer nas datas que você tem em mente, trate de remarcar a conferência […]. Ele vai cativar e divertir os jovens pesquisadores, ouvir as histórias deles, inspirá-los, reacender entusiasmos que talvez estejam arrefecendo e os mandará animados e revigorados de volta a seus laboratórios ou lamacentos campos de pesquisa, ansiosos para experimentar as novas idéias que ele generosamente compartilhou”.