Sem meio termo

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Ao longo dos primeiros meses desse ano, acompanhei muitos artigos que, de maneira contundente, urgem a comunidade científica brasileira a assumir um verdadeiro compromisso com a qualidade da ciência produzida no país. Não podemos considerar nosso critério adequado com os indicadores que temos hoje. Eu sou daqueles que concorda, em grau, número e gênero, com o texto do artigo “Produção científica e lixo acadêmico no Brasil” do professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite publicado na Folha de São Paulo em 06/01/15.

No artigo É hora de rever o sistema de pós-graduação brasileiro de 26/01/15, o professor emérito da Unicamp Lewis Joel Greene aponta o problema: “Em meados da década de 1970, houve muitas discussões sobre o fato de que o Brasil precisava produzir milhares de doutores para chegar a níveis de primeiro mundo em número de doutores/100.000 habitantes. Reconhecia-se que a maioria dos primeiros formados teriam uma formação menos que ideal, porém entendia-se e esperava-se que o sistema se tornasse mais rigoroso com o tempo. Infelizmente, isso não ocorreu e, para piorar a situação, os doutores mal treinados estão agora formando a próxima geração de doutores.”

O artigo me fez lembrar do que li no livro ‘Aprendiz da ciência’ de Carlos Chagas Filho. Ele fala da importância da “criação de um conceito fundamental para o nosso país: o emprego de modelos nacionais estudados pelas técnicas as mais avançadas, o que, de um modo geral, significam técnicas internacionais. Esse conceito define e determina o que se deve chamar ‘a ciência nacional’. Isto não significa nenhum tipo de xenofobismo ou de estreito nacionalismo, mas é o melhor caminho para o desenvolvimento natural e social de nosso país.”

Para mim, e acredito que para ele também, não eram apenas as técnicas internacionais, mas também os critérios internacionais de qualidade. A ciência é um conjunto de ferramentas para entender como o mundo funciona. Seus critérios não podem ser flexíveis, porque as leis da natureza não são. Não há como discutir e chegar a um ‘consenso’ do que é o melhor. Não há ‘negociação’ com as evidências. Não há meio termo.

Ainda que eu admire o discurso do professor Domenico de Masi que diz que “as universidades do Brasil só não são consideradas as melhores do mundo porque os critérios para a escolha das melhores são determinados pelas mesmas universidades que publicam o ranking“, tendo tido a oportunidade e o privilégio de visitar Harvard e Stanford, não posso dizer que sejam critérios ruins.

Ainda assim, para mim, existe um critério melhor do que qualquer ranking. Um critério absoluto. O critério do que funciona e do que resolve problemas no mundo real. Quando Ioannidis publicou Why most published research findings are false‘ em 2005, era exatamente disso que ele estava falando: basta de coisas que não são replicáveis, não são confiáveis, coisas que não funcionam!

Nós precisamos fazer coisas que funcionem. Sejam elas teorias ou patentes, precisamos de ciência que ajude a resolver problemas no mundo real.

Precisamos do padrão Richard Feynman: “O que eu não posso criar, eu não posso entender.”

Ou do critério Ayn Rand em ‘A Revolta de Atlas’: “Não há nada de importante na vida exceto sua competência no seu trabalho. Nada. Só isso. Tudo o mais que você for, vem disso. É a única medida do valor humano. Todos os códigos de ética que vão tentar enfiar na sua cabeça não passam de dinheiro falso impresso por vigaristas para despojar as pessoas de suas virtudes. O código de competência é o único sistema moral baseado no padrão ouro.”

A comunidade científica acredita hoje que os artigos científicos são o propósito. O ‘fim’. Entendi, recentemente, ainda que só tenha consolidado essa compreensão agora, neste exato momento, que os artigos científicos são apenas o começo. Se um artigo científico se encerra em si, ele não fez jus aos recursos que foram empenhados nele. Estou falando de transformar dados em informação e informação em conhecimento. E sim, conhecimento em coisas que funcionem.

Patentes ou teorias, artigos tem que se transformar em coisas que funcionem. 

Lembrei da metáfora da fábrica de tijolos. Em 1963 Bernard K. Forscher enviou uma carta a Science na qual usava a metafora de uma fábrica de tijolos para fazer exatamente essa crítica a ciência que estava sendo produzida no mundo (Caos na Fábrica de TijolosChaos in the brickyeard).

Sou um cientista que entende que o modelo de financiamento de ciência no mundo está esgotado. Também sei que a percepção do cientista sobre seu papel no desenvolvimento social e econômico do país é uma, a percepção da sociedade sobre esse mesmo papel é outra e o seu real papel, outro ainda. Espero contribuir com inovações que ajudem a chegarmos a um novo modelo, onde todas essas variáveis se reconciliem em um equilíbrio sustentável. Porque voltar ao que era (“nós pesquisamos o que quisermos e vocês pagam a conta”) simplesmente não é mais uma opção.

Há 4 anos atrás o artigo ‘Fabrica de doutores’ (PhD Factory) publicado na Nature chamava a atenção para o excesso de doutores sendo produzidos no mundo. Na semana passada, outro artigo na Nature, ‘O futuro do Postdoc’ (The future of postdoc), mostra como o problema aumentou.

No mundo inteiro, em qualquer área, as únicas pessoas com trabalho garantido são aquelas que aprenderam a se tornar indispensáveis. A maior parte das pessoas quer fazer o que quer fazer e ser paga, com benefícios, por isso. Temo que não seja possível.

Precisamos de muitas pessoas fazendo muita ciência, mas não qualquer pessoa e não qualquer ciência.

Foi o Google quem disse…

Essa eu tenho que dividir com vocês, principalmente com aqueles que consideram o ‘Google’ não mais uma ferramenta de acesso ao conteúdo e sim a ‘fonte’ do conteúdo em si. Não é! Mas o mais importante é ter clareza de que a frequência com que uma informação aparece no Google também não é um critério de veracidade dessa informação, como eu já falei aqui.

Estou escrevendo um capítulo sobre escrita criativa para o livro organizado pelo prof Eduardo Bessa e quis falar sobre a famosa citação: “Me perdôe a carta longa, não tive tempo de escrever uma curta”, que eu tenho escutado com cada vez mais freqüência. Hoje em dia a quantidade é cada vez mais um critério de qualidade, mas com uma relação inversamente proporcional: quanto menor você conseguir fazer o seu texto, melhor.

“A César o que é de Cesar”. Como eu sou um cara correto, quis dar ao autor da frase a celebridade que ele merece, e para isso fui consultar o ‘oráculo’.

Uma pesquisa no google usando os termos: “desculpe” “longa” “carta” “tempo” “escrever” “curta” traz as mais diversas referências, indicando as mais diversas personalidades como autores da célebre frase:
“Foi o escritor Mark Twain, que ao responder a um correspondente seu que reclamou do tamanho enorme de uma carta sua, disse: ‘Me desculpe, não tive tempo de escrever uma carta curta, por isso ela foi longa mesmo’.
‘Desculpe a longa carta, escreveria outra, menor, se tivesse mais tempo’ disse Descartes a um amigo.”
“Para eliminar o desnecessário, é preciso coragem e também mais trabalho. (Blaise) Pascal terminou uma carta de 4 páginas a um amigo dizendo: ‘desculpe-me tê-lo cansado com uma carta tão longa, mas não tinha tempo para escrever-lhe uma carta breve’.

“Por serem minhas postagens muito longas. Lembrei-me de imediato de uma frase de Voltaire: ‘Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta’.
“…pois como disse um escritor respondendo uma carta ao amigo (acho que foi Fernando Pessoa) ‘desculpe minha resposta longa, mas não tive tempo para fazê-la mais curta’.

Quando contei pelo menos 5 autores completamente diferentes pela sua origem, período de vida, atividade etc, desisti. O critério de frequência (número de vezes que um autor aparece) me colocaria entre Mark Twain e Blaise Pascal, o de antiguidade me remeteria a Descartes, mas dado que Pascal viveu na mesma época, poderia ter sido ele também.

Dessa vez, não deu. Nem com minhas habilidades arqueólogo-internauticas eu consegui identificar o autor. Daqui pra frente, acho que vou fizer que fui eu quem disse.

Quem me dera todos os congressos de ciências fossem assim

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Voltei da Feira de Literatura Internacional de Parati, a FLIP, desse ano, com uma certeza: o modelo de congresso de ciências está falido. Ninguém mais tem paciência para longos corredores com uma infinidade de posters, mal preparados as vésperas sem que os orientadores tenham sequer visto os arquivos, com resumos copiados e gráficos com letras minúsculas. Ninguém tem mais paciência para palestrantes que começam suas falas com longas introduções que repetem o óbvio, o domínio público, e deixam a análise dos seus dados, quando muito, para os últimos 2 minutos, invariavelmente ultrapassando o tempo, atrasando a sessão e esgotando a nossa paciência. Ninguém aguenta mais pagar as altas taxas de inscrição para beber o vinho de baixa qualidade e aprender uma ou duas coisas novas.
O TED e a FLIP são modelos mujo mais eficientes de transmissão da informação.
No TED, o evento que acontece anualmente na California (pelo menos em princípio, mas que agora já contagiou o mundo), as palestras são para audiências inteligentes mas variádas. O conteúdo tem que ser transmitido em até 18 min, mas algumas palestras, mesmo de um vencedor do Nobel com Kary Mullis, tem apenas 5 min. É o conteúdo e o tempo disponível da audiência, e não a vaidade do apresentador, que determinam o tempo da apresentação. Todas as apresentações são revisadas por uma equipe de produção e todas as são gravadas em video e disponibilizadas na internet, onde um exército de pessoas bem intencionadas coloca legendas no texto em dezenas de idiomas.
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Na FLIP, autores renomados conversam entre si com ou sem a mediação de um jornalista ou outro escritor. A conversa é sobre trechos de livros ou sobre a tarefa, ou as vezes arte, de escrever. Como ambos escritores são importantes, assim como o mediador, os egos estão sob controle e um extrai o melhor do outro. Quase sempre pelo menos (as vezes não há muito o que extrair, por timidez ou loucura mesmo).
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O mais interessante, e impressionante, talvez, é que as pessoas pagam e fazem fila para ver os autores falarem. Mesmo aqueles que não conhecem, mesmo que o tema não seja de seu interesse especial. Porque?
O que mais diferencia esse novo modelo de congresso dos anteriores é o critério de seleção. Não o critério e a seleção em si, mas o fato que haja um e que haja uma. Os comitês científicos dos congressos não tem feito o seu dever de casa e encontramos uma infinidade de coisas chatas e desimportantes. Em um mundo saturado de informação, a primeira coisa que devemos ensinar a nossos estudantes é a ter critério de seleção.
O comitê de seleção desses eventos é rigoroso e gera um senso de credenciamento que contagia a platéia: “Se esse cara escreveu um livro e foi selecionado para estar aqui, então deve valer a pena escutar o que ele tem a dizer”. Como eu disse, há exceções, mas que só servem pra confirmar a regra.
Não é a preparação de um poster para um congresso internacional, ou uma aula chata de um Nobel brilhante, que vão iniciar nossos estudantes na vida acadêmica e científica. Isso no máximo inicia eles na arte de ‘participar de congressos chatos’. O que eles precisam é aprender a ter critério. E o primeiro critério que tem que aprender é que boas idéias só são boas se funcionarem. Que boas idéias não podem renegar os fundamentos básicos das coisas. Para isso nossos congressos precisam retomar o conceito de ‘feira de ciências’. Mais importante do que montar um poster chato sobre um assunto específico é montar algo, um experimento, que funcione, mostrar pros outros como montou e mostrar funcionar. É ter chance de ver como flui o papo entre dois Nobeis ou entre dois grandes pesquisadores da sua área.
A academia tem tradição em resistir a mudanças. Mas eu sei que ainda vou participar de muitos congressos na minha vida e espero que essa mudança não demore muito.

Formando curadores

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Depois de escrever sobre a importância do critério na inovação no texto anterior, não parei de pensar sobre a importância das estratégias evolutivamente estáveis (EEE) e sobre a importância de ter a habilidade (ou a flexibilidade) para poder optar por uma ou outra estratégia em função do contexto.
Ando obcecado por critério, porque é ele que permite a você decidir quando mudar de estratégia, é ele que te permite ver a importância que a tomada de decisão pode ter na sua vida, que te estimulará a buscar opções e a desenvolver os seus critérios.
Ao longo da nossa vida, vamos testando limites e estabelecendo critérios. Ao longo da evolução, em nível de espécie e população, vamos adquirindo variabilidade gênica e adaptações que nos permitem nos adequarmos a diferentes ambientes e situações.
Critério é tudo para a vida. E critério é tudo na vida.
Atualmente, as escolas nos ensinam mais a imitar (“Como passar no vestibular em 12 lições”), mas as empresas e os empregadores querem pessoas com critério, porque só elas são capazes de inovar. Porque isso, o ‘cérebro eletrônico’ ainda não pode fazer.
Ai em cima vocês vem meus alunos da “Oficina de Escrita Criativa em Ciência” que terminou na 6a feira, fazendo um dos muitos exercícios sobre seleção de informação e redação.
Cada vez mais tomo consciência que a escrita não é uma questão de inspiração, mas sim de prática. E o que mais se pratica, quando se escreve, é o critério.
Acredito que a escrita é um poderoso instrumento para adquirir e exercitar critério. Para “formar curadores” como disse o Luli Radfher. Por isso temos que colocar todo mundo pra escrever e transformar todos em ‘autores’.
Sem critério, pode ser que você se torne deputado.

Espreguiçado

Detrítos ou partículas de neve marinha em torno das tubulações próximas a um recife de coral.

Quando eu estava no mestrado, em uma cidade fria a longínqua, fiz uma disciplina excelente de microbiologia marinha. Até hoje uso o que eu aprendi nas várias aulas de ecologia e biologia marinha que eu eventualmente ministro por ai.
Mas tive um problema com o professor que, até hoje (na minha cabeça) não resolvi direito. O problema é que ele meu deu B em um curso que eu (achava que) merecia A (bom, houve outros problemas também, mas isso fica pra outra vez – ou não). Como eu disse, eu gostava e entendia do tema. Também lia os artigos e participava das aulas. Mas isso não era suficiente para ele. Ele queria superação! E ao invés disso eu optei por ir passar o final de semana em Santa Maria na véspera do prova dele. Fui lendo os artigos pra prova na viagem de ônibus, mas era de noite e eu acabei optando por dormir. Acabei deixando os artigos na poltrona do ônibus e não estudei nada o final de semana todo. Peguei o ônibus de volta no domingo a noite e cheguei de volta em Rio Grande na hora da prova. Fiz uma boa prova mesmo sem ter estudado (afinal, eu assistia atentamente todas as aulas) e quando recebi o B no final do curso, fui falar com ele pra tentar entender o porquê. A resposta foi frustrante:
“Mauro, você é muito bom e você sabe que é bom. E por isso você é preguiçoso. E é por isso que eu te dei B.”
Talvez seja importante acrescentar que o mané da oceanografia física que fez uma bosta de prova tirou A, porque ele se ‘superou’.
Hoje eu reconheço que eu era (e em parte ainda sou) meio preguiçoso mesmo. Mas também hoje, que dou meus próprios cursos e tenho meus próprios alunos de pós-graduação, discordo, veementemente, da estratégia de avaliação dele.
Ele quis me dar uma lição, que eu provavelmente precisava, enquanto me avaliava com relação a disciplina que ele ministrou. Mas nem sempre dois coelhos podem ser mortos com uma cajadada só. É que a preguiça é um critério difícil de avaliar de forma acadêmica. Acredito que um professor pode usar o critério que lhe convier para avaliar os alunos. A justiça não está no critério em si, mas no conhecimento dos critérios a priori. Se eu soubesse que o critério era superação, talvez tivesse me comportado de maneira diferente. Ou, mais provavelmente, não teria feito a disciplina.
O resultado é que ele perdeu meu respeito como professor (como eu disse, houve outros motivos) e pra me dar meia lição, eu nunca mais aprendi nada com ele.
Porque lembrei disso hoje? Porque eu tenho um aluno que também é brilhante e preguiçoso. E ainda teimoso (como eu também era/sou). E como meu professor 15 anos atrás, me debato em como lidar com a preguiça dos alunos brilhantes.
A preguiça não é um problema quando você tem critério. Eu acho que já tinha critério, por isso acho que minha preguiça nunca me impediu de progredir. Mas o problema da preguiça é que ela pode corroer os seus critérios, e ai você afunda.
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Envolvi meus alunos de doutorado em um projeto interessantíssimo chamado TRIVIA, coordenado pela Sonia Rodrigues, que envolve preparação para o vestibular (ou ENEM), inclusão digital e inclusão científica. O trabalho parecia simples: formular questões de biologia que preparassem os alunos para as provas que tem de enfrentar ao final do ensino médio. Mas como as questões seriam oferecidas na internet, o formato e a linguagem tinham especificidades. E para um aluno de doutorado que almeja um futuro na academia, uma oportunidade dessas é, mais do que a chance de conseguir uns trocados, é a chance de aprender algo novo que poderá ser útil no futuro. E nesse caso, não é a ‘biologia’ das questões que eles vão aprender, mas a linguagem e o formato da WEB, que estarão cada vez mais presentes no presente de professores e alunos.
As questões deveriam ser curtas, objetivas e o mais importante, deveriam, no enunciado e no gabarito, SEMPRE, ensinar alguma coisa. É simples e deveria ser fácil. E é, mas fazer direito, dá trabalho.
Os alunos foram aprendendo e incorporando o formato a medida que preparavam as questões. Mas ainda assim, um deles continuou cometendo os mesmos erros de forma desde o início. E hoje, quando estou para entregar a última fornada, vejo que é por uma dificuldade de incorporar o modelo. Como eu disse, o cara é brilhante. O problema é preguiça.
Existe alguma outra explicação para um cara brilhante fazer a seguinte pergunta:
Pergunta: As espécies que se alimentam de plâncton são chamadas de:

a) Planctívoras
b) Herbívoras
c) Carnívoras

Gabarito:

a) Correto. Espécies planctívoras se alimentam de plâncton.
b) Incorreto. Herbívoras se alimentam de vegetais e o plâncton também é composto por animais.
c) Incorreto. Carnívoros se alimentam de carne e o plâncton também é composto por vegetais.

Isso me frustra, como orientador, de diferentes maneiras (que eu ainda vou discutir no próximo post), porque mostra que eu não estou sendo orientador o suficiente (e não é por preguiça). Mas me estimula também a buscar novas maneiras de dizer as principais coisas que alunos de pós-graduação precisam aprender:

  • Que a seleção natural não dorme nunca! Que enquanto eles deixam de aprender uma coisa, outro aprende, essa e mais algumas outras.
  • Que no mundo de hoje, mais importante que acumular conhecimento, é ter critério para selecionar conhecimento que realmente importa.
  • Que se não dá pra fazer tudo, e se é importante namorar, dormir, fazer festa e ir a praia, use a sua preguiça para não aceitar todos os desafios. É mais honesto e menos arriscado do que tentar fazer mais do que você consegue de forma preguiçosa.

É isso. Todos precisamos nos superar.

Bob Marley, Abrahan Lincoln e a credibilidade da Internet

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Não dá pra confiar em tudo que aparece na internet.
Tudo bem, isso a gente já sabe. Mas quando o acaso me levou a uma informação em princípio banal, mas que avaliada com um pouco de profundidade mostrou o quão levianas podem ser as publicações e atribuições na grande rede, eu me assustei.
Outro dia, escrevendo uma carta, disse que a melhor forma de evitar a decepção com relação a uma pessoa, era conviver com ela em público. Por que, continuava, fazendo referência ao grande Bob Marley, “nós podemos enganar algumas pessoas por algum tempo, mas não podemos enganar todo mundo, o tempo todo”.
Fiquei pensando um minuto sobre a profundidade da frase e, sem querer desmerecer o guru do movimento Rastafari, pensei: mas será que foi mesmo o Bob Marley que falou isso? Ou ele já estava citando alguém?
A citação está na canção “Get up, Stand up” de Bob Marley e Peter Tosh, que apareceu no álbum Burmin’ de 1973: “You can fool some people some time, but you can’t fool all the people all the time”. Mas como canções não trazem referências bibliográficas, eu fui perguntar pro oráculo: o google.
Descobri então vários sites de citações que atribuiam a célebre frase ao célebre 16o presidente americano Abrahan Lincoln (1809 – 1865). Lincoln teria dito a célebre frase em um discurso na cidade de Clinton, no estado americano de Illinois, no dia 2 de Setembro de 1858, durante uma série de debates com o também candidato ao senado Stephen Douglas.
A frase original seria “You can fool some of the people all of the time, and all of the people some of the time, but you can not fool all of the people all of the time”.
Porém, uma pesquisa ainda um pouco mais profunda mostrou que não, não foi Lincoln. Nenhum jornal da época confirma que ele tenha dito isso durante esse discurso. Os sites sobre a série de debates nem mesmo relacionam a cidade de Clinton (o discurso teria sido em Quincy em 27 de Setembro de 1858). Em uma pesquisa do professor de história americana David B. Parker, a primeira atribuição formal, por escrito, da frase a Lincoln está em uma edição do The New York Times de 1887. Antes disso não há nenhum registro da citação por escrito, seja para Lincoln ou qualquer outra pessoa. Ainsworth Spofford, que foi o diretor da Biblioteca do Congresso americano por muitos anos, por indicação do próprio Lincoln, e que disse que ele nunca havia dito aquilo.
Finalmente a frase é atribuida a Phineas T. Barnum, diretor do famoso Ringling Bros. Barnum and Bailey Circus, e que era amigo pessoal de Lincoln. Barnum era um homem do espetáculo, e vivia em um ambiente onde a frase já seria mais apropriada. Mas ele também era autor de livros e político amador. Muitas referências apontam para ele. Mas ainda há quem diga que foi o escritor Mark Twain ou um jornalista qualquer que criou a frase e colocou nos lábios de Lincoln.
Eu já escrevi aqui sobre a credibilidade na internet. Mas o mais importante é a questão do critério do leitor, que eu já discuti aqui e aqui. A importância de formar um público leitor capaz de avaliar a credibilidade da informação na internet é determinante para a inclusão digital e é um trabalho da escola, mas também uma responsabilidade da comunidade científica. Sem educação científica não há inclusão digital!
Numa série muito bacana de artigos sobre os professores do futuro no blog Inclusão Digital da escritora Sonia Rodrigues, ela cita uma entrevista com o escritor e filósofo italiano Umberto Eco, que disse: “Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a consulta. Sou capaz de distinguir os sites confiáveis de filosofia, mas não os de física. Imagine então um estudante fazendo uma pesquisa sobre a 2.ª Guerra Mundial: será ele capaz de escolher o site correto? É trágico, um problema para o futuro, pois não existe ainda uma ciência para resolver isso. Depende apenas da vivência pessoal. Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos.”
E um desafio para nós!

T.S.N. Totalmente Sem Noção

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“Ele é mó TSN!”
Assim nos referíamos durante a faculdade aquelas pessoas que, mas do que nós (já que todos somos um pouco, ou eventualmente muito, TSN), tinham enorme falta de critério.
É verdade que o problema as vezes não é a falta de critério para avaliar uma informação, mas a falta de ferramentas para aplicar esse critério, mas isso é uma história para outro dia. Vou me ater agora a discussão da falta de critério mesmo.
O problema começa quando tentamos definir critério. Quando penso nele, me lembro da máxima que uma vez ouvi sobre o ‘bom senso’:
“Bom senso é a única coisa que todo mundo acha que já tem o suficiente e que não precisa de mais”.
Seria um mundo melhor se fosse verdade, não é mesmo?!
No livro “Cinco mentes para o futuro” de Howard Gardner, (presente da Soninha que eu terminei de ler no ano passado), ele sugere que precisamos de 5 ‘mentes’ para podermos viver bem no mundo contemporâneo:
“Com (…) elas, uma pessoa estará bem equipada para lidar com aquilo que se espera, bem como com o que não se pode prever. Sem elas, estará à mercê de forças que não consegue entender, muito menos controlar.”
Na descrição da primeira mente, a disciplinada, ele apresenta um mecanismo, ou uma atitude, que é aquela através da qual eu acredito que consigamos adquirir ‘critério’:
“A mente disciplinada é aquela que dominou pelo menos uma forma de pensar – um modo distintivo de cognição que caracteriza uma determinada disciplina acadêmica, um ofício ou uma prodissão. Muitas pesquisas confirmam que leva até 10 anos para se dominar uma disciplina. A mente disciplinada também sabe como trabalhar de forma permanente, ao longo do tempo, para melhorar a habilidade e o conhecimento (…). Sem pelo menos uma disciplina em sua bagagem, um indivíduo estará fadado a dançar conforme a música dos outros”
E sem ela, não terá chance de alcançar duas das outras ‘mentes’ importantes: a sintetizadora e a criativa (justamente porque lhe faltará… critério).
Vejamos um exemplo* da falta que o critério faz. Você sentou no buteco com os seus amigos que começaram a contar histórias.
1 – Milton conta impressionado que um amigo de um amigo seu, especialista em história da música, afirma que pode identificar se uma página de partitura é da autoria de Haydn ou Mozart. E que quando é submetido a um teste, em 10 tentativas, ele acerta todas.
2 – Barbosa conta que quando morou na Inglaterra, ouviu o zelador falar da Mrs. Surewater, que só tomava chá com leite, e que afirmava que podia identificar numa xícara que lhe fosse servida, se o leite ou o chá foram despejados primeiro. E que quando foi submetida ao teste, em 10 tentativas, ela acertou todas.
3 – Por fim Fernandinho contou que o seu amigo Richard, bêbado em fim de festa, afirmava ter a capacidade para predizer o resultado do lançamento de uma moeda honesta. E que quando foi submetido ao teste, em 10 tentativas, ele acertou todas.
Em qual dessas histórias você acredita? E em qual delas pode acreditar?
A explicação necessitaria de um outro post (ou de uma série de posts). Mas vou tentar resumir a duas respostas.
A estatística clássica diz que você pode confiar em todas, que não há razão para duvidar de nenhuma das 3. Porque ela é o que chamamos de ‘frequentista’ e trata esses eventos como ‘estatísticos’, ou, melhor ainda, ‘repetitivos’. Assim, basta confrontar os resultados com a hipótese de que eles acertaram por pura sorte (h0: p=0,5) e verificar que, com base nesses resultados, eles são capazes de fazer o que dizem (e assim rejeitamos h0). Mas você fica tranquilo com essa conclusão? Você apostaria dinheiro que seu amigo acertará na próxima moeda lançada? Ou que poderá enganar Mrs. Surewater na proxima xicará de chá que lhe oferecer?
Minha experiência prévia, que construiu o meu critério, me diz para apostar apenas na habilidade do amigo do Milton, especialista em história da música, em identificar corretamente a próxima partitura. Ainda que eu não saiba história da música a ponto avaliar se ele é realmente um bom especialista, capaz de acertar sempre, minha experiência com a minha disciplina, me diz que se você estudar bastante um assunto, é capaz de acertar (quase) sempre. Os meus parcos conhecimentos de teoria do Caos e mecânica de fluidos me dizem que é impossível que Mrs. Surewater saiba o que está fazendo, assim como os conhecimentos de estatística que o cotidiano nos dá já são suficientes para saber que o Richard não tem a capacidade de adivinhar a moeda, não importa o que diga o resultado do teste t.
O dilema aqui está relacionado com a diferença entre lógica indutiva e lógica dedutiva. Não podemos propor essa questão a estatística clássica, por isso a resposta dela não é válida. Como são problemas de lógica indutiva, como os são as hipóteses científicas e a maioria das nossas situações do cotidiano, não há como a conclusão ser obrigatoriamente verdadeira a partir das premissas, ainda que, verdadeiras. E isso já é problema demais para resolver. Não avaliar corretamente nossas premissas, as informações para chegar a uma decisão, é desperdiçar todo esse esforço.
Algumas decisões são simples: ‘sim’ ou ‘não’, (o que não quer dizer que elas sejam fáceis, dados o alcance e a magnitude das consequencias) e você não precisa de mecanismos sofisticados de decisão. Por isso (e mesmo quando as opções de escolha são mais complexas), vale muito mais a pena investir em informação para eliminar incertezas.
No texto anterior eu falei do mundo saturado de informação em que vivemos, e que a Internet facilita o acesso a ela, mas não nos ajuda a seleciona-la. Isso significa que sem você na interface, o Google tem muito pouca utilidade.
O Google não é uma referência! É preciso investir em você, e no seu critério.
Só que agora você está pensando: “Que saco!”, ou “Socorro!” ou simplesmente que tudo isso dá muito trabalho. E dá mesmo. Ainda conseguimos sobreviver sem ter de aplicar métodos estatísticos para as decisões do nosso dia-a-dia. Mas cada vez mais precisaremos avaliar informação para tomar decisões importantes. Aquelas que afetam a nós e as pessoas a nossa volta.
Por isso, exercite sempre o seu critério. Ou você pode virar o próximo TSN.
*Adaptado do exemplo no livro de “Introdução a estatística Bayesiana” do professor Paul Kinas (FURG).

Antena de celular e hierarquia na internet

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No início do ano recebi um e-mail do meu querido amigo Edu perguntando o que eu achava sobre os riscos da instalação de antes celulares no alto de edifícios. Caramba… era pergunta de prova! Eu prego que os cientistas sabem resolver qualquer problema, então não pude me furtar de tentar resolver o problema dele também. Fiquei meses querendo postar a resposta, mas sempre aparecia um tema mais interessante, porque no final das contas, resolver o problema dele foi simples: era uma questão de critério.
Mas será que meu amigo advogado não tem critério? Claro que tem, mas certamente não os mesmos que eu. Por isso, quando tenho um problema legal ligo pra ele e quando ele se defronta com um problema técnico liga pra mim.
Eu não entendo de emissões eletromagnéticas de telefones antenas de celular, mas confiei que o que eu sabia sobre energia eletromagnética em geral seria suficiente para ler alguma coisa. Eu sabia que era suficiente para saber que o vídeo da internet que mostra um ovo sendo cozido no meio de dois telefones que falam entre si é furado.
Além disso eu sei bastante sobre os efeitos biológicos das radiações. Já era o suficiente. Mas foi outro conhecimento que me ajudou mais. Eu conheço um pouco sobre o mercado editorial de revistas científicas, a qualidade duvidosa de algumas delas, os critérios que elas usam para selecionarem um artigo.
O Edu me enviou uma página no site da ABRACON, onde desfilam uma série de argumentos científicos que comprovam os males causados pelas radiações eletromagnéticas.

  • Lai et al (1989): influência da radiação de microondas de baixa freqüência no sistema nervoso central
  • Funkschau (1992): efeitos no mecanismo de transporte do sódio e do potássio através da membrana celular
  • Kues (1992): aumento do efeito colateral de medicamentos para glaucoma por REM
  • Persson (1997): aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica em ratos expostos a campos eletromagnéticos usados na comunicação sem-fio

Mas a lista começava com a declaração do “cientista armênio Avakian do Instituo de Física de Telecomunicações e de Eletrônica” sobre o “efeito dipólo das moléculas orgânicas” que faz com que “se orientem e girem sob um campo elétrico”.
Gente, vocês não precisam ser cientistas para saber que a Armênia não é especialmente famosa pela ciência que produz ou pela academia de ciências que possui. Além disso, a maior parte das moléculas orgânicas é apolar e não se orientam em um campo elétrico. Já a água sim, possui um dipolo (uma lado positivo e outro negativo). Passei a vista nos outros artigos, mas já sabia que, do ponto de vista científico, não havia nenhuma conclusão séria ou consenso geral sobre efeitos de baixas doses de radiações eletromagnéticas (quem quiser se informar em maior profundidade, aqui vai um resumo produzido por uma agência de advogados americana).
Pouco depois ganhei um celular da minha operadora e no manual do proprietário vinha importante informação ao consumidor:
Limite de tolerância da radiação não-ionizante de aparelhos celulares
Vejam que são informados não só o limite de exposição permitido pela agência internacional de radiação não-ionizante, como também os valores que foram apresentados pelo aparelho nos testes conduzidos pela empresa. Isso é mais informação do que vocês encontrarão em alguns artigos científicos de qualidade duvidosa (e eu garanto, existem muitos). Mas eu acho que mais que isso é o compromisso que esse papelzinho faz a empresa assumir com o seu consumidor (perante um juiz se for necessário) de que aquilo não é mentira. É com o meu critério de cidadão, é um compromisso maior que o dos editores de revista com o que é publicado nelas.
Escrevi pro Edu dizendo que, do ponto de vista do cientista, não havia nenhum impedimento. Agora ele poderia aplicar o critério de advogado dele a vontade.
Lembrei desse assunto e resolvi voltar a esse texto hoje por causa da polêmica que levantou a proposta do Leandro Tessler de um mecanismo de controle e hierarquização da informação na internet, comentada pela Sonia Rodrigues no Inclusão Digital.
Escrevi até aqui algo como 600 palavras, mas a quantidade de referências que deveriam ser verificadas para que esse post tenha 100% de credibilidade já é enorme. Atualmente são publicados muito mais de 10.000 artigos científicos por dia. Só o mecanismo de buscas ScienceDirect possui mais de 2500 revistas científicas indexadas.
Mais um problema: atualmente o maior problema do conteúdo é a sua indexação. Colocar um conteúdo online é fácil, mas classificá-lo é difícil porque os computadores não podem fazê-lo, só humanos. Isso significa que custa caro. Pergunte a qualquer gestor de portal.
Então como, como poderemos pensar em verificar, validar e certificar a informação na internet? É impossível, e não devemos gastar nosso precioso tempo tentando.
O que temos de fazer não é certificar a fonte, mas certificar o receptor! Temos que mudar imediatamente o ensino de conteúdo que ainda damos nas escolas e universidades e começarmos a ensinar critérios para os nossos alunos. Apenas assim eles poderão passar de consumidores de vídeos duvidosos na internet para produtores de vídeos que desmistificam o mito dos ovos que são assados por telefones celulares.

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