A Mesquinhez de um Sonho
Cartola, semi-analfabeto, lavador de carros, fez uma letra de música assim: “Preste atenção, querida, muita atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões à pó.” Confira no vídeo abaixo.
O problema aqui é o “vai triturar teus sonhos tão mesquinho“. Sim, porque Cazuza, garoto esperto da zona sul do Rio, gravou Cartola lindamente e cantou “vai triturar teus sonhos tão mesquinhoS”, no plural, como pode ser ouvido aqui.
No singular, mesquinho concorda com mundo e rima com moinho. No plural, concorda com sonhos (e não deixa de rimar, vá). Um adjunto adnominal tem que concordar com o nome ao qual está vinculado. Tanto em uma como na outra interpretação, a gramática está correta, penso eu; e a beleza preservada. Muitos poderão achar estranha a construção “cartoliana”, mas ao pensar melhor, logo percebem que também ela é perfeita. Qual seria a certa, então? A chave é a interpretação das duas locuções possíveis, a saber “mundo mesquinho” e “sonhos mesquinhos”. Se mesquinho quer dizer
1. Que não tem o indispensável em quantidade suficiente.
então, todos esses adjetivos podem ser atribuídos a “mundo”. Mas que dizer de “sonhos mesquinhos”? Um sonho pode ser sovina, infeliz ou mesmo pobre? É possível que em um sonho, alguém “economize energia onírica” e sonhe mesquinhamente? De minha parte, acho que Cartola está certo. Assim, como Nei Matogrosso (em sua interpretação um pouco kitsch): sonhos não são mesquinhos jamais. O mundo é que é.
(via Amigo de Montaigne)
