A Mesquinhez de um Sonho

Cartola, semi-analfabeto, lavador de carros, fez uma letra de música assim: “Preste atenção, querida, muita atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões à pó.” Confira no vídeo abaixo.

O problema aqui é o “vai triturar teus sonhos tão mesquinho“. Sim, porque Cazuza, garoto esperto da zona sul do Rio, gravou Cartola lindamente e cantou “vai triturar teus sonhos tão mesquinhoS”, no plural, como pode ser ouvido aqui.

No singular, mesquinho concorda com mundo e rima com moinho. No plural, concorda com sonhos (e não deixa de rimar, vá). Um adjunto adnominal tem que concordar com o nome ao qual está vinculado. Tanto em uma como na outra interpretação, a gramática está correta, penso eu; e a beleza preservada. Muitos poderão achar estranha a construção “cartoliana”, mas ao pensar melhor, logo percebem que também ela é perfeita. Qual seria a certa, então? A chave é a interpretação das duas locuções possíveis, a saber “mundo mesquinho” e “sonhos mesquinhos”. Se mesquinho quer dizer

    1. Que não tem o indispensável em quantidade suficiente.

2. Pobre.
3. Sovina, somítico, fona.
4. Infeliz, desditoso.
5. Inspirado em sentimentos vis.
6. De aparências ou formas acanhadas.

então, todos esses adjetivos podem ser atribuídos a “mundo”. Mas que dizer de “sonhos mesquinhos”? Um sonho pode ser sovina, infeliz ou mesmo pobre? É possível que em um sonho, alguém “economize energia onírica” e sonhe mesquinhamente? De minha parte, acho que Cartola está certo. Assim, como Nei Matogrosso (em sua interpretação um pouco kitsch): sonhos não são mesquinhos jamais. O mundo é que é.

(via Amigo de Montaigne)