Princípio de Consolação Secular
Considero ter uma deficiência na prática médica: não sou muito bom em confortar as pessoas. Acho que vou muito bem quando dou notícias ruins – coisa que faço todos os dias há vários anos. Mas tenho dificuldades em consolar pessoas que perderam entes queridos. Confesso também, que meu ateísmo, nestas horas, me atrapalha um pouco. Tendo sempre a considerar que “tudo foi feito” e que “o paciente não sofreu”, mas às vezes, isto não basta: as pessoas querem algo mais. Esse “algo mais” é muitas vezes um conforto metafísico e este, eu não sou capaz de dar. As próprias pessoas às vezes verbalizam isto e acabo concordando com acenos beneplácitos de cabeça e sorrisos benevolentes. Outras vezes, parece ser suficiente tirar a culpa das pessoas. Filhos que há muito não viam os pais, esposas(os) separados pelo tempo em cuja relação há embutida a palavra “abandono”, mesmo que apenas no inconsciente de cada um. Para estas pessoas, uma frase do tipo “fique tranquilo(a), você fez tudo que estava ao seu alcance” tem, em geral, o efeito da cena do beijo do Cinema Paradiso: a explosão em um choro incontido e catártico que lhes expia a culpa e abre caminho para uma paz de espírito… Digo que gosto de fazer isso. Libertar alguém de uma culpa – seja ela justificada ou não, isto não nos cabe julgar – é sempre algo muito bom de se fazer.
Entretanto, conversando com uma moça muito querida e com um ex-padre (veja só), ambos muito fiéis à crença em Deus diga-se de passagem, tive um insight para um princípio de consolação secular que passo a partilhar com meus leitores. Gostaria de “testar” com os senhores(as) antes de usá-lo com meus pacientes. Obrigado pela compreensão.
Pense em uma pessoa. Esta pessoa tem, em você, dois tipos de representações principais: uma, quando você está com ela de fato. Você pode vê-la e tocá-la. Ouvir sua voz e conversar com ela sobre as mais variadas coisas. Pode partilhar com ela uma série de sentimentos, bons ou ruins, naquele momento em que vocês dividem o espaço e o tempo, ou seja, convivem, ou têm uma convivência. Outra representação é quando a pessoa está ausente. Esta é constituída pela memória mas, não é simplesmente memória de fatos ocorridos. É um tipo especial de memória que vem junto com sentimentos, bons ou ruins. À esta fórmula memória + sentimentos podemos dar o nome de vivências (sem o con-, veja que interessante a língua portuguesa aqui). As vivências não são simples fatos de nossas vidas. São ocorridos carregados de emoção que fazem com que nos lembremos de lugares – vivências que tivemos sózinhos – e/ou situações, eventos, aulas, festas, etc – vivências que compartilhamos com pessoas ou com uma pessoa. Se você pensar, vai encontrar pessoas com as quais suas vivências são mais importantes que a convivência que você tem com ela no momento. Incrível, né? Um indivíduo faz vibrar seu “aparelho emocional” de duas formas diferentes: ou ele está presente, ou não está presente. As emoções decorrentes dessa interação estão aí para serem sentidas e são muito parecidas. A esta sequência emocional causada por ausências e presenças somadas ao longo do eixo do tempo, alguns chamam de vida. Pelo menos alguns poetas…
O que acontece se e quando uma pessoa que a gente gosta morre. Vai embora apenas um dos tipos de representação. O outro pode continuar. Ou não. Não estou propondo aqui lembrarmos simplesmente dos mortos como forma de consolo. Este tipo de lembrança nos faz sofrer e costuma ser chamado de saudade e de fato, pode mesmo acontecer com quem ainda não morreu. A saudade pode ser entendida como um desejo da presença e, portanto, da convivência com a pessoa ausente. Esta impossibilidade racional nos faz sofrer irracionalmente. O exato oposto disto, a proposta seria manter e continuar a criar vivências com a pessoa ausente de modo a associá-la a eventos importantes (e porque não, felizes) permitindo uma lembrança futura na qual a representação dela estaria vinculada. Reconhece-se a impossibilidade de conviver mas preservam-se as vivências.
Isto é quase um diálogo com essa representação em nosso espírito e não é nenhuma loucura. Crianças fazem isso com muita facilidade. Talvez por esta habilidade em lidar com ausências preenchendo-as com imaginação viva de sentimentos, as crianças consigam ser felizes por longos períodos de tempo.
Foto daqui. Greta Garbo e Lew Ayres em The Kiss.