Diapedese e Diálogo II

Imagine que você está num barco no meio de um rio cuja correnteza é meio fortinha. Para conseguir atracar o barco à margem, você antes tem que se agarrar em alguma coisa fixa que possa prendê-lo apesar da força da correnteza. Só assim você conseguirá parar o barco e sair dele, pisando em terra firme.

Agora imagine um vaso sanguíneo contendo milhares de células, brancas, vermelhas e umas coisinhas pequeninhas chamadas plaquetas (ou trombócitos). O fluxo sanguíneo é rápido. Nas carótidas sem obstruções, a velocidade média do sangue medida pelo método do doppler, gira em torno dos 30 cm/s, que convertidos, fornecem o valor de 1,0 Km/h. Como o fluxo é pulsátil e muda com a posição do corpo e com o exercício, pode chegar a 300 cm/s, o que já dá é uma correntezazinha respeitável, vá! Os leucócitos são células de defesa e em muitas situações necessitam passar do interior do vaso para o tecido circunjacente. Como eles grudam na parede do vaso é que é interessante.

A imagem acima é um esboço da diapedese. A imagem abaixo é um esquema da Nature para explicá-la.
Getting to the site of inflammation: the leukocyte adhesion cascade updated
Como se pode ver pelo desenho, o leucócito é “capturado” pelo endotélio (capa de células que recobre o interior dos vasos), faz um “rolamento”, pára, gruda, rasteja e, na maior cara-de-pau, sai do interior do vaso (transmigra), seja entre as células (paracelular) ou por dentro de uma das células do endotélio (transcelular). Não se perde nem uma gotinha de sangue (nenhuma célula vermelha) nesse processo! Os retângulos acima com siglas “hieroglíficas” representam as moléculas inflamatórias que o leucócito utiliza para realizar a “ancoragem”. Veja quantas existem! Há medicações que bloqueiam ou estimulam a grande maioria delas e que podem atuar como anti-inflamatórios ou pró-inflamatórios dependendo do caso. O filme abaixo é muito didático e mostra como o leucócito para no fluxo de sangue de um vaso para quem não acreditou que isso de fato ocorresse.

O final é o filme de uma microcirculação real, em geral, feita em mesentério de rato, no qual é possível ver células fazendo o “rolling”. Bem no finalzinho, o pesquisador interrompe o fluxo sanguíneo e dá para ver o vaso lotado de hemáceas (as células vermelhas) que não grudam no endotélio. Depois de restabelecido o fluxo, só os leucócitos ativados continuam grudados e rolando.

Fiz uma associação no outro post entre diapedese (do leucócito) e o diálogo (com o paciente). Diapedese quer dizer “saltar através”. O radical dia em grego formou várias palavras médicas como diálise, diabetes, diafragma, diáfise, entre outras. Diálogo, bem isso já é bem mais complexo.

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Atualização: Segue um novo vídeo sobre diapedese (via Átila).

Diálogo e Diapedese

As células brancas do sangue desempenham um importante papel na defesa do organismo contra invasores. Outro dia, um paciente travou comigo o seguinte diálogo:

“Mas essas células não estão dentro do vaso sanguíneo?”
Estão.
“Então elas enfrentam apenas os inimigos que vão para dentro do vaso?”
Não. Elas lutam nos tecidos, fora dos vasos principalmente.
“Mas como elas sabem onde têm que sair?”
(mas que cara chato!) Elas não sabem. São atraídas ao local por substâncias chamadas de quimiotáticas.
“Mas por que não provocam uma hemorragia quando furam o vaso?!”
Bem (pô, nunca tinha pensado nisso!). Porque elas não furam o vaso. Passam através da parede dos vasos num processo chamado de diapedese.
“As células brancas saem dos vasos sem provocar sangramento exatamente no local onde está ocorrendo uma invasão?”
(tá duvidando de mim?) Sim.
“Então tá. Qual a velocidade do sangue?”
… (onde esse feladamãe quer chegar?)
“Sim, por que como uma bolinha, que é a célula, consegue grudar na parede de um tubo liso com o sangue correndo lá dentro?”
(miserável!) Incrível, não? Mas gruda.
“Ah, tá…”(cara de quem não acredita nem a paulada!)

Bom. O próximo post é dedicado a ele e também a quem não acredita nessa história que afinal, é mesmo um pouco inverossímil.