Certezas Médicas III

De onde vêm, do que são constituídas e como se mantém as certezas médicas? No último post, discutíamos que nem mesmo a medicina baseada em evidências – o paradigma positivista da racionalidade ocidental aplicado ao pensamento médico – tem, muitas vezes, o poder de mudar certas condutas médicas. O exemplo escolhido não foi gratuito.

O uchedo ou whdw foi o primeiro conceito fisiopatológico a dar resultados do ponto de vista terapêutico. Segundo Robert Steuer [1], ele marca a passagem que a medicina egípcia antiga fez dos conceitos mágico-religiosos a uma prática empírico-racional. Sua interpretação passou por doenças como a lepra, varíola, sífilis ou como sintoma de dor ou inflamação. Hoje, se aceita que o whdw significava um princípio etiológico básico aderido às matéria fecais dos intestinos. Quando o whdw é absorvido e passa para o sangue, o coagula e destrói, produzindo abscessos e outras formas de supurações e também a putrefação generalizada do organismo que hoje, mais de 4000 anos após, chamamos de sepse.

http://prophetess.lstc.edu/~rklein/Doc5/anubis_files/anubis4.jpgA hipótese do whdw derivou de ideias religiosas e da experiência com a mumificação [2]. Durante a vida do indivíduo, o médico era o responsável por evitar os efeitos nocivos do whdw por meio de medidas terapêuticas. Acreditava-se que o envelhecimento era decorrente da ação crônica do whdw. Por isso, eram prescritos enemas e enteroclismas para os mais diversos males. Heródoto escreveu que os egípcios purgavam-se por 3 dias consecutivos no mês e Diodorus Siculus que o faziam em intervalos de 3 a 4 dias. Anúbis (na figura ao lado) era o deus egípcio do embalsamamento e patrono dos embalsamadores além de, não por coincidência, ter poderes médicos. Acredita-se que toda a teoria do whdw seja proveniente da dificuldades do embalsamamento. Os intestinos, principalmente os cólons, cheios de fezes, eram fonte muito importante de bactérias com capacidade de putrefação. Não se conseguia um embalsamamento perene se não se controlasse essa variável. Daí a correlacionar a presença de fezes com doenças no vivo parece ter sido um passo óbvio. O conceito de whdw se transformou na medicina grega antiga no de perittoma. O conceito de perittoma acabou não constando explicitamente no Corpus Hyppocraticum, mas lá há referências indiretas a ele o que nos permite imaginar que também eram utilizadas lavagens intestinais com fins terapêuticos na Grécia Antiga.

A tal ponto que esse tipo de procedimento passou à era moderna. Por muitos anos, as lavagens intestinais e os enemas constituíram, juntamente com as sangrias e as ventosas, os únicos tratamentos possíveis para uma série de moléstias humanas. As peças de Moliére – em especial “O Doente Imaginário” – são pródigas em exemplos e em críticas à medicina praticada na época.

Retornando então ao nosso assunto inicial. Como mudar da “noite para o dia” um conceito que tem mais de 4000 anos de idade? Quando digo que a medicina é mais velha que a ciência é sobre isso que estou falando. O bom-senso, que todo ser humano alega ter, é composto pela palavra “senso” que pode ser entendida como um “juízo”, uma opinião sobre algo. Quando adicionamos a palavra “bom” estamos atribuindo um valor a esse juízo ou opinião. Quando digo que faço medicina baseada no bom-senso, estou expondo a quem quer que esteja me ouvindo os meus juízos e valores sobre minha atividade profissional, obviamente acompanhados de meus preconceitos, traumas, intenções e outras tantas facetas da “pessoa do meu ser” (como diria uma amiga), boas ou ruins, agradáveis ou não. O mesmo ocorre com as “boas intenções”!

Ser médico é isso. É lidar com uma profissão que tem uma história de mais de 4000 anos, que foi abalroada pela ciência positivista do século XVII e XVIII, se recriou com muita dificuldade após isso e que, recentemente, sofreu um novo impacto, talvez de magnitude semelhante, com o advento da revolução da informação. As certezas médicas continuam a existir e, porque não dizer, a sobreviver a todas essas revoluções. Médicos não podem se dar ao luxo de praticar um ceticismo radical, porque ele pode ser paralisante. Não podem se dar ao luxo de acreditar em qualquer medida, porque elas podem ser enganosas. Enquanto isso, lavagens intestinais serão prescritas com a melhor das boas intenções guiadas pelo bom-senso.

[1] Robert O. Steuer & J.B. Saunders. Ancient Egyptian & Cnidian Medicine. The Relantionship of Their Aetiological Concepts of Disease. Berkeley and Los Angeles. 1959. 104pp.
Atualização
[2] Ruy Peréz Tamayo. El concepto de Enfermedad. Su evolución a través de la história. Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología. Ciudad del Mexico. 1988.

A Velha Medicina

Costumo dizer aos meus alunos para nunca se esquecerem que a medicina é mais velha que a ciência. Aliás, bem mais velha. Assim como os barbeiros, alfaiates, cozinheiros e açougueiros exercem profissões bem mais antigas que a ciência pós-iluminista que conhecemos hoje, o médico também tem uma profissão que por muitos anos prescindiu da ciência para existir. E nem por isso os médicos eram menos respeitados. A bem da verdade, a máxima de um velho professor de Radiologia e Clínica Médica aposentado era: “Sou do tempo em que a Medicina era péssima e os médicos, ótimos. Hoje, a Medicina é ótima, já os médicos…” Guardadas as devidas proporções e respeitada a ranzinzice própria da idade, a máxima tem um certo fundo de verdade: a associação com a ciência trouxe melhores resultados aos pacientes, mas não garantiu maior prestígio aos médicos. Diriam alguns que o que importa é o resultado com os pacientes. Eu diria que sim. Mas por que tanta infelicidade e doenças? Tanta insatisfação com a medicina, com os médicos, consigo mesmo! Esse “prestígio” que reclamo não é para minha vaidade. Esse “prestígio” é fruto de um reconhecimento que por sua vez, é fruto de um bem-estar, despertado ou provocado por um agente curador (healer), que não existe mais.

É interessante procurarmos então, o momento em que, pela primeira vez, o médico despiu suas vestes obscurantistas, preconceituosas e, porque não dizer, místico-religiosas, e vestiu um avental branco, com intuito de entender o que ocorria com um semelhante que insistia em sofrer. Detalhe, ainda não nos despimos totalmente de tais vestes: o avental não é nossa única fantasia. Nem sei se os pacientes querem isso – acho que não. Mas, quando foi esse momento inicial precursor da virada que transformou a medicina numa profissão diferente do açougue, da barbearia, da alfaiataria e da cozinha profissional?

Foi ao cuidar de seus mortos. Ironia da história. Somente quando o homem propôs-se a tratar seus mortos de modo a conservá-los – por motivos místico-religiosos, é verdade – pelo maior tempo possível é que surgiram teorias que permitiram propostas de tratamento para algumas doenças. Isso ocorreu há mais de 4000 anos atrás, no Egito.

Pensando na origem das certezas médicas para o post que completará a série, cheguei ao Egito e digo que, certamente, muitas de nossas atuais certezas, vêm de lá.

Desenho do Jok do Jokbox.