Os Mestres do Preconceito
“Clínicos são intérpretes prudentes das experiências de saúde de seus pacientes”.
R.E.G. Upshur [1] (grifos meus)
Ao GENAM, com carinho
O esforço do Homem (antropos) para compreender o cipoal de significados sobre o qual é lançado no momento em que nasce é crucial para sua sobrevivência. Hoje, a infinidade de códigos e linguagens que devemos interpretar e traduzir para lidar com o mundo é gigantesca. A medicina, da forma como a entendo, qual seja, centrada na relação entre o médico e o paciente, propõe um desafio interessante porquanto aproxima duas visões de mundo, às vezes muito diferentes. Ao médico, cabe ainda um outro desafio que é o de aplicar o conhecimento científico – quase uma epistéme aristotélica – a uma prática fronética ou prudente, reconhecida desde sempre como técnica (techné), citando Aristóteles, o pai dessa zorra toda que, aliás, já tem alguns milênios.
O que tentarei demonstrar nesse pequeno espaço, seguindo os caminhos do autor abaixo [1], é que um pouquinho de preconceito é bom para o médico, tanto em sua tarefa de fundir sua visão de mundo àquela que o paciente vê, como quando lida com a massa enorme de conhecimento científico e tenta aplicá-la no ser que lhe pede socorro. Thomas Bayes (1701?-1761) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002), cada um a seu tempo e a seu modo, trataram desse preconceito filosófico. Um obscuro monge inglês pertencente a uma seita não-conformista (seja lá o que isso realmente queira dizer) e um alemão, brilhante aluno do sacana do Martin Heidegger, nascidos com 200 anos de intervalo, teorizaram sobre o valor do preconceito, ou pré-conceito, ou pré-juízo (como no inglês, prejudice) no ato de compreensão humana das coisas do mundo. Eu os chamo mestres do preconceito.
Bayes
A Estatística pode ser entendida como a ciência que se ocupa da quantificação da incerteza e, por essa razão, o cálculo probabilístico ocupa um papel central nela. Há duas formas básicas de se abordar a probabilidade de um evento ocorrer. Um, chamado objetivo, é testar a ocorrência do evento em um número muito grande de vezes, de modo a estabelecer a frequência do resultado que se quer estudar. É chamado de frequentista. O outro leva em consideração a probabilidade desse evento ocorrer antes que procedamos ao teste. Poderíamos até pegar os dados de um frequentista que trabalhou duro para obtê-los e ter acesso a essa distribuição antes de testar o evento. Chamamos isso de probabilidade a priori. De posse dessa probabilidade a priori, podemos modificar nossas expectativas ao avaliar, por exemplo, o risco de uma paciente com mamografia positiva ter, de fato, câncer de mama [2]. O interessante é que, quando essa distribuição não está disponível, podemos colocar nossas próprias expectativas na fórmula. Para a estatística bayesiana vale a opinião pessoal sobre o evento, vale a nossa propensão em acreditar na distribuição a priori, por isso, também é chamada de subjetiva. A nós, interessa a origem dos a prioris clínicos. Há evidências de que clínicos utilizamos a experiência prévia muito mais que dados estatísticos consistentes [3]. De qualquer forma, o teorema de Bayes permite que reajustemos o grau de crença em uma hipótese com base em novas informações. Ou em outras palavras, nossas preconcepções, sejam diagnósticas, prognósticas ou terapêuticas, devem ser reavaliadas a cada novo dado, cotejadas com novas evidências e, por fim, modificadas em novas possibilidades.
Gadamer
Em 1960, Gadamer publica Verdade e Método, seu magnum opus, onde reforça a característica ontológica da compreensão humana, ou como ficou conhecida mundialmente, da hermenêutica filosófica. “Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey; mas tampouco é, como em Husserl, um ideal metodológico último da filosofia frente à ingenuidade do ir vivendo. É, ao contrário, a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo”- diz ele lá na página 347 [4] (itálicos originais). Gadamer demonstra que a interpretação e a compreensão são constitutivos do homem lançado ao mundo. Nessa demonstração, o pré-conceito tem um papel fundamental. Quando interpretamos um texto, realizamos, na linguagem de Gadamer, um projeto. Como nessa citação:
“é preciso (…) considerar que cada revisão do projeto inicial comporta a possibilidade de esboçar novo projeto de sentido; que projetos contrastantes podem se entrelaçar em uma elaboração que, no fim, leve à visão mais clara da unidade do significado; que a interpretação começa com pré-conceitos que são, pouco a pouco, substituídos por conceitos mais adequados. (…) Aqui, a única objetividade é a confirmação que uma pré-suposição pode receber através da elaboração. E o que distingue as pré-suposições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas se revelam insubsistentes? (…) Há, portanto, um sentido positivo em dizer que o intérprete não chega ao texto simplesmente permanecendo na moldura das pré-suposições já presentes nele, mas muito mais quando, em relação com o texto, põe à prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade, de tais pressuposições”. [5]
A aproximação inicial a um assunto provoca uma impressão que nos impele emitir juízos que definem padrões lógicos ou generalizações em nosso esforço eterno de tentar prever comportamentos, sequências ou comparar coisas novas com aquelas que já conhecemos. Essa primeira impressão não é a que fica. Ela deve ser continuamente corrigida à luz de novas informações. Os a prioris bayesianos e os projetos hermenêuticos estão muito mais próximos do que poderíamos jamais supor. Eles têm valor ontológico ou, em outras palavras, são criadores de conhecimento válido. Na medicina, essa proximidade sempre foi patente; só não tinha nome. Como diz Upshur “a dimensão hermenêutica da medicina desvia nossa atenção de discussões sobre dicotomias simplistas tais como se a medicina é uma arte ou uma ciência; ou se o conhecimento clínico é subjetivo”. A medicina é um humanismo. A doença tira o Homem de sua unidade habitual e abre caminho para visões não-totalizantes de seus padecimentos. O que é, então, o esforço clínico em compreender o Homem em suas profundidade espiritual e complexidade biológica? Nesse contexto, Arte e Ciência são interpretações, discursos possíveis sobre uma mesma coisa-em-si humana. Subjetivos? É óbvio que somos; dado que sempre tratamos de individuais subjeitos.
[1] Upshur, REG. Prior and Prejudice. Theoretical Medicine and Bioethics 20: 319–327, 1999.
[2] Pena, SD. Thomas Bayes “é o cara”. CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 228, pg 22-29 – Julho/2006 (ver o pdf)
[3] Gill CJ, Sabin L, Schmid CH. Why clinicians are natural bayesians. BMJ. 2005 May 7;330(7499):1080–3. DOI: 10.1136/bmj.330.7499.1080 (Open Access) – veja também as cartas, correções e comentários.
[4] Gadamer HG. Verdade e Método. II Parte, Volume I. Editora Vozes. Tradução Flávio Paulo Meurer.
[5] Reale & Antiseri. Hans-Georg Gadamer e a Teoria Hermenêutica. in História da Filosofia, pag 627-639.
PS. A conotação extremamente negativa que temos hoje do preconceito vem do Esclarecimento. Para o homem iluminista, cartesiano, um juízo acerca de alguma coisa deve ser tomado de forma isenta e desprovida de qualquer pré-concepção a respeito do assunto. Como uma tabula rasa, deveríamos absorver as evidências e chegar a conclusões óbvias, conclusões as quais qualquer pessoa racional chegaria ao analisar as mesmas provas. No Esclarecimento, o objetivo é o projeto cartesiano de obter um conhecimento metodologicamente seguro, limpo de interferências e inferências pessoais. Posteriormente, essa pre-concepção das coisas adquiriu um valor moral – como no pecado de “julgar um livro pela capa” -, até incorporar temas diversos como racismo, xenofobia, diversidade cultural, sexual e etc.
UTI. Uma boa referência às virtudes de Aristóteles, além claro, do “Ética a Nicômaco” é o livro de Enrico Berti “As Razões de Aristóteles“.
Metafísica Médica IV
Um médico é um humanista secular (o que não o impede de ter crenças individuais quaisquer), detentor de técnicas e saberes utilizados com o objetivo de aliviar o sofrimento humano. Este último, refere-se aqui “apenas” aos aspectos que envolvem os conceitos de saúde e doença. Para exercer sua profissão, o médico agindo como técnico e como agente ético é, essencialmente, um tomador de decisões, um decididor. São decisões as mais variadas, desde prescrever aspirina a fazer um transplante de fígado. Decisões de tratar, de não tratar, de investir toda a tecnologia médica possível para determinado paciente, ou de utilizar todo o conhecimento disponível com intuito de aliviar a dor e o sofrimento. Mas o médico toma suas decisões baseado em quê? Qual é (ou quais são) a(s) base(s) de sustentação de uma decisão médica?
Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o médico decide por meio de seus saberes já que sua técnica direciona-o ao fazer, que, claro, depende de uma decisão prévia. Qual seria, então, a natureza dos saberes médicos? Basicamente, seriam duas as vertentes principais. A decisão médica levaria em consideração o saber técnico-empírico e o juízo clínico global. Chamemos de saber técnico-empírico um conhecimento nomotético que busca leis e regras gerais, utiliza a lógica e também o senso-comum. É um conhecimento teórico, transmissível, que almeja a objetividade e a coletividade, pertencendo ao domínio do público, portanto. O juízo clínico global é um conhecimento idiográfico, individual e específico. Leva em consideração a intuição e a experiência pessoal. É eminentemente prático e muito difícil de transmitir. Pode ser considerado subjetivo e diz respeito muito mais à individualidade de seu objeto, sendo portanto, radicado no domínio do privado. Este movimento dialético tem raízes profundas no pensamento médico, oriundo da oposição clássica da medicina grega, entre o vitalismo da escola de Cos (cidade de Hipócrates) e o organicismo da escola de Cnide (ou Cnidos), de inspiração empirista-atomista, por uma explicação mecânica das doenças (Biggart, 1971)[1]. Gadamer divide ainda, o saber técnico-empírico utilizável em duas grandes categorias: o conhecimento sempre crescente da pesquisa científica natural, o que chamamos de Ciência; e um conhecimento empírico da prática que qualquer pessoa acumula durante a vida, não apenas na esfera profissional, mas também na vida pessoal. Vem da experiência que as pessoas têm do contato com outras pessoas, com o meio externo e em conhecer-se. Há uma vasta riqueza de conhecimento que flui a cada ser humano proveniente da cultura: poesia, arte, filosofia e outras ciências históricas. Esse conhecimento é dito inverificável e instável. É o que ele chama de conhecimento empírico geral. Paradoxalmente, é desse conhecimento que nos utilizamos para tomar decisões práticas.
A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Imagine um paciente com uma doença com a qual um médico jamais se defrontou anteriormente, digamos, por exemplo, a gripe suína com insuficiência respiratória aguda grave. Cada médico tem uma experiência prévia que carrega consigo além de tudo o que estudou e estuda. Essa experiência e o que ele estudou de ciência médica fazem parte do saber técnico-empírico. É tarefa do poder de julgamento do tal juízo clínico global reconhecer em dada situação a aplicabilidade de uma regra geral. O médico lembra de outras insuficiências respiratórias que teve e como tratou, ou das “burradas” que fez, e tenta aplicá-las (ou não) ao caso específico. Até aqui tudo normal. O problema está exatamente quando o médico resolve fazer alguma coisa (intubar o paciente, dar corticosteroides, outras drogas, etc). A ciência médica não embasa seu procedimento, não há publicações suficientes sobre o assunto, cada médico diz uma coisa, o que fazer? Utilizei esse exemplo extremo mas, isso ocorre a todo momento, com qualquer médico de qualquer especialidade, porque as decisões práticas necessitam de uma ciência que seja completa e forneça certezas que as embase. Completa, é exatamente o que a Ciência não é, por definição. E agora? E se o médica errar? Quem irá salvá-lo?
Isso nos remete às relações entre Epistemologia e Ética que estão no âmago da medicina. A epistemologia procura justificar nosso conhecimento, certas crenças ou nosso entendimento de certos fenômenos. A ética nos diz como conduzir-nos de maneira correta na busca, disseminação e uso do conhecimento, seja ele certo ou não. A ética nos ensina através da virtude intelectual, conforme Aristóteles, a encontrar a maneira correta de proceder frente a incerteza. Na Ciência, o conhecimento científico (2.1, no esquema acima) e o empírico (2.2) caminham juntos, um corrigindo o outro. É assim que funciona e sempre funcionou. Na Clínica, a decisão prática confronta os dois tipos de conhecimento porque nunca se sabe se a aplicação de uma regra geral a um caso específico vai dar certo ou não. Só dá pra saber isso post hoc e chamamos o resultado de empírico. Isso resulta em uma tensão irredutível a qualquer processo de tomada de decisão que envolva conhecimento. Há entretanto, esferas de comportamento prático nas quais esta dificuldade não culmina em um conflito crítico. É o caso da experiência técnica, isto é, a tecnologia e suas aplicações. Neste sentido, quando o conhecimento científico é voltado ao fazer (know-how vs knowledge) que é a própria Tecnologia, ele minimiza a tensão da decisão prática pois o conflito existente entre uma escolha e outra passa a ser avalizado pela Ciência, passa a ser racionalizado. Nas palavras de Gadamer:
“Quanto mais a esfera de aplicação se torna racionalizada, mais o exercício de julgamento associado à experiência prática no sentido próprio do termo, deixa de ocorrer”
Isso explica muito da tecnologização de medicina e de sua “impessoalização”. Não queremos mais médicos idiossincrásicos, individualistas, artistas de suas especialidades. Queremos opiniões uniformes, alinhadas com as últimas “notícias” produzidas pela literatura científica, a última “moda” em exames de imagem, etc. Os médicos também se acostumam a guidelines, diretrizes, algoritmos de conduta e terminam por pensar que essa é a única racionalidade correta da medicina. Há um imperativo ético na conduta de um médico. Ele tem que oferecer a seus pacientes o que ele tem de melhor. Sempre. A questão é saber se a Ciência Médica é a única capaz de julgar a eticidade dessa conduta ou se há outras formas de fazê-lo. Se a racionalidade clássica que é quem provoca essa tensão tem alguma alternativa (Cronje, 2003) talvez seja ainda cedo para dizer. E somos então remetidos à Ética da Crença. Mas isso é outra história e será um outro post, espero.
[1] Há quem diga que essa dicotomia não se justifica e que faz muito mais parte de uma lenda antiga sobre a história da medicina. Para mais detalhes ver o livro de ANTOINE THIVEL, Cnide et Cos? Essai sur les doctrines medicales dans la Collection Hippocratique, Paris, Les Belles Lettres, 1981, 8vo, pp. 435. Há uma boa resenha aqui e que pode ser baixada gratuitamente.
Biggart JH (1971). Cnidos v. Cos. The Ulster medical journal, 41 (1), 1-9 PMID: 4948495
Cronje, R., & Fullan, A. (2003). Evidence-Based Medicine: Toward a New Definition of `Rational’ Medicine Health:, 7 (3), 353-369 DOI: 10.1177/1363459303007003006