Doenças Também Morrem ou Sobre o Morbicídio
Algumas doenças morrem. Sim, pois se tratamos as doenças como “seres” – ou, como diria um filósofo, se as abordamos ontologicamente – é possível matá-las, pois tudo que é pode, um dia, deixar de sê-lo. (Seja por morte natural ou por assassinato!). A abordagem ontológica das doenças é interessante e trouxe aquisições importantes para a medicina. Uma alternativa a ela é a abordagem fisiopatológica segundo a qual a doença nada mais é que um desvio da fisiologia normal do sujeito. Não há um ente que invade o organismo e o modifica. É o próprio que, ao funcionar incorretamente, apresenta sinais e sintomas que podem constituir a doença. Mas não é isso que quero falar aqui.
Quero falar sobre metáforas médicas; sobre gavetas metafóricas, na verdade. Recipientes com rótulos que podem ser organizados, catalogados (e muitas vezes, essa é a única coisa que se pode fazer!) que chamamos de doenças, males, sindromes, etc. Qual seria a substância de que é constituído o conteúdo desses recipientes? A linguagem, claro! Por isso, ao criarmos “seres” linguísticos capazes de facilitar a comunicação entre os médicos e destes, com seus pacientes, podemos passar a considerá-los, em determinado momento, obsoletos, contraproducentes, falsos. E então, temos que eliminá-los.
Querem um exemplo de doença que morreu?
Há vários. Já falei disso em outro lugar, mas vale lembrar a Drapetomania. Uma “estranha” doença que acometia apenas negros escravos que “teimavam” em fugir de seus senhorios mesmo sofrendo penas horrorosas por isso. Mas, um dos casos mais interessantes de morbicídio é o da histeria. Por longos 2000 anos, a histeria foi um problema para os médicos. Pode-se dizer que “inventamos” a psicanálise a partir de um caso de histeria. Acho que a história da histeria mereceria um post só dela (há boas referências em inglês como por exemplo, essa).
Mas, o que nos contam as histórias sobre a histeria e outras doenças que já se foram? Nos dizem, primeiro, que somos desejo e linguagem. Que o social pode ser anterior ao biológico, ao menos no que diz respeito à formação do sujeito humano. (E não há doença sem um sujeito-doente). Ao buscar as formas como o sujeito se relaciona com o conjunto de referências que o caracteriza, o médico o compreende (no sentido de entender totalmente). O médico deveria então flanar sobre a fluidez dos diagnósticos, nuvens conceituais. Não, chafurdar nelas.