Terminei de ler… Gomorra
Vira e mexe, quando quero argumentar o ponto de vista ‘biológico’ de alguma coisa, geralmente depois do 3o chopp em uma mesa de buteco, acabo recorrendo as EEE, ou Estratégias Evolutivamente Estáveis. Esse conceito é muito útil para mostrarmos a natureza amoral da natureza. Não tem o ‘certo’ e o ‘errado’. Tem o que dá certo e o que dá errado evolutivamente (ou seja, a longo prazo).
Para mim, o melhor exemplo é o do traficante carioca. Alguém conhece algum traficante com 80 anos? Pois é, eles podem ter sucesso a curto prazo, mas a longo, a estratégia de resolver os problemas atirando não é boa. Sempre terá alguém atirando mais que (e em) você.
A essa altura você já deve estar se perguntado o que isso tem a ver com o livro. “Gomorra”, de Roberto Saviano é o romance de um jornalista infiltrado na máfia napolitana, a terrível e temível Camorra. Depois de ler “Elite da Tropa”, que eu terminei no final do ano passado, fiquei com aquela sensação de “Meu Deus, quem manda no Rio são os grandes traficantes de drogas”. Só que depois de ler Gomorra, você fica com a sensação de que a máfia napolitana manda no mundo todo, devido a seus longos braços, que atravessam as fronteiras da itália para dezenas de países, com negócios lícitos e ilícitos nos 5 continentes.
Agora você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com Biologia. Bom, a primeira coisa a ver é com o cientista. Primeiro que é importantíssimo para um cientista ler coisas que não sejam apenas artigos científicos. A prosa de Saviano é bastante interessante. O ritmo, a forma como ele relata os fatos sem envolvimento, ou com tanto envolvimento que chega a comover. Depois, porque mostra pra gente quando estamos perto da maluquice, já que mesmo lendo uma reportagem sobre a máfia napolitana, nossos cérebros não estão desligados da ciência. Nunca! É um trabalho non stop, 24h por dia, 7 dias por semana.
Atirem a primeira pedra os meus leitores cientistas, ou futuros cientistas, que foram assistir Avatar e não ficaram analisando científicamente c-a-d-a u-m dos elementos do filme. Eu sei, coisa de Nerd.
Um trecho de Gomorra fala exatamente do comportamento dos boss, ou dos chefes dos clãs, que sabem que serão presos ou mortos muito cedo, mas mesmo assim trabalham, lutam e matam para comandar. Correto? Mau? Ético? Talvez o mais importante é que não é, certamente, uma EEE, como fica claro no trecho a seguir:
“Poucos dias depois da prisão do primogênito do clã, seu rosto arrogante encarando as câmeras da TV gira pelos celulares de centenas de rapazes e moças das escolas de Torre Annunziata, Quarto, Marano. Gestos de mera provocação, de banal agressividade entre adolescentes. É verdade. Mas Cosimo sabia. Por isso precisava agir daquele jeito para ser reconhecido como chefe, para tocar o coração das pessoas. (…) Cosimo representa claramente o novo empresário do Sistema. A imagem da nova burguesia desvinculada de qualquer freio, movida pela absoluta vontade de dominar todo o território do mercado, de meter a mão em tudo. Não renunciar a nada. Fazer uma escolha não significa limitar o próprio campo de ação, privar-se de outras possibilidades. Não para quem considera a vida como um espaço onde se pode conquistar tudo, mesmo correndo o risco de perder tudo. Significa, inclusive, levar em conta a possibilidade de ser preso, de acabar mal, de morrer. Mas não significa renunciar. Querer tudo e mais e o quanto antes. É esta a força e o atrativo que Cosimo Di Lauro personifica. Afinal, se todos, mesmo os mais zelosos com a própria segurança, terminam na gaiola da aposentadoria, se todos, mais cedo ou mais tarde, se descobrem traídos e terminam com uma babá polonesa, por que morrer de depressão à procura de um trabalho tedioso? Por que se acabar num part-time atendendo telefone? (…) Ernst Jünger diria que a grandeza está sujeita à tempestade. (…) Quem diz que isso é amoral, que não pode haver vida sem ética, que a economia possui limites e regras a serem seguidas, é simplesmente quem não conseguiu comandar, quem foi excluído do mercado. A ética é o limite do perdedor, a proteção do destronado, a justificativa moral para aqueles que não conseguiram jogar tudo e conquistar tudo.”
Se não é uma EEE, podemos ter certeza que a longo prazo, não mais existirá. Talvez seja o único alívio queteremos ao livro. O resto é só soco no estomago, como esse trecho mostrou.
Mais adiante, Roberto fala daquele sentimento que todo pesquisador também experimenta em alguma momento, quando tem dados que são suficientes para causar estranheza, mas não são suficientes para tirar uma conclusão sólida. Veja:
“Muitos diziam que o SISDE (Serviço de Informação e de Segurança Democrática) era o único responsável pela prisão. O SISDE tinha intervindo, confirmaram as forças policiais, mas sua presença em Secondigliano era difícil, dificilima de acreditar. Sinais de alguma coisa que se aproximava muito da hipótese que seguiam alguns repórteres, ou seja, a de que o SISDE tivesse pago salário a diversas pessoas da região em troca de informação ou de não-interferência; eu tinha realmente ouvido isso em pedaços de conversa de bar. Homens que tomavam café ou cappuccino com croissants pronunciavam frases do tipo:
‘Já que você recebe dinheiro de James Bond…’
Ouvi duas vezes, naqueles dias, referências furtivas ou alusivas a 007, um fato muito pequeno e risível para dele se tirar qualquer conclusão, mas também muito incomum para passar despercebido.”
A diferença é que os jornalistas geralmente não pagam com suas carreiras por um palpite ou uma opinião infundada, enquanto os cientistas…
Mas o melhor (quer dizer, o pior) está no último capítulo ‘A terra dos fogos’, onde ele denuncia com incrível riqueza de detalhes e grande correção, os Business que se tornaram os depósitos clandestinos de lixo. Um crime ecológico e civil que eu acredito que biólogo ou não, cientista ou não, ninguém ficará insensível.
Discussão - 1 comentário
a tirada mais engraçada em Avatar, é quando a pesquisadora, ao ser levada, doente, a um lugar que ela sempre quis estar diz: "preciso coletar umas amostras". Acho que só eu e as meninas (Ju, diana, raquel e aline) fomos as únicas a rir escancaradamente.