Espreguiçado

Detrítos ou partículas de neve marinha em torno das tubulações próximas a um recife de coral.

Quando eu estava no mestrado, em uma cidade fria a longínqua, fiz uma disciplina excelente de microbiologia marinha. Até hoje uso o que eu aprendi nas várias aulas de ecologia e biologia marinha que eu eventualmente ministro por ai.
Mas tive um problema com o professor que, até hoje (na minha cabeça) não resolvi direito. O problema é que ele meu deu B em um curso que eu (achava que) merecia A (bom, houve outros problemas também, mas isso fica pra outra vez – ou não). Como eu disse, eu gostava e entendia do tema. Também lia os artigos e participava das aulas. Mas isso não era suficiente para ele. Ele queria superação! E ao invés disso eu optei por ir passar o final de semana em Santa Maria na véspera do prova dele. Fui lendo os artigos pra prova na viagem de ônibus, mas era de noite e eu acabei optando por dormir. Acabei deixando os artigos na poltrona do ônibus e não estudei nada o final de semana todo. Peguei o ônibus de volta no domingo a noite e cheguei de volta em Rio Grande na hora da prova. Fiz uma boa prova mesmo sem ter estudado (afinal, eu assistia atentamente todas as aulas) e quando recebi o B no final do curso, fui falar com ele pra tentar entender o porquê. A resposta foi frustrante:
“Mauro, você é muito bom e você sabe que é bom. E por isso você é preguiçoso. E é por isso que eu te dei B.”
Talvez seja importante acrescentar que o mané da oceanografia física que fez uma bosta de prova tirou A, porque ele se ‘superou’.
Hoje eu reconheço que eu era (e em parte ainda sou) meio preguiçoso mesmo. Mas também hoje, que dou meus próprios cursos e tenho meus próprios alunos de pós-graduação, discordo, veementemente, da estratégia de avaliação dele.
Ele quis me dar uma lição, que eu provavelmente precisava, enquanto me avaliava com relação a disciplina que ele ministrou. Mas nem sempre dois coelhos podem ser mortos com uma cajadada só. É que a preguiça é um critério difícil de avaliar de forma acadêmica. Acredito que um professor pode usar o critério que lhe convier para avaliar os alunos. A justiça não está no critério em si, mas no conhecimento dos critérios a priori. Se eu soubesse que o critério era superação, talvez tivesse me comportado de maneira diferente. Ou, mais provavelmente, não teria feito a disciplina.
O resultado é que ele perdeu meu respeito como professor (como eu disse, houve outros motivos) e pra me dar meia lição, eu nunca mais aprendi nada com ele.
Porque lembrei disso hoje? Porque eu tenho um aluno que também é brilhante e preguiçoso. E ainda teimoso (como eu também era/sou). E como meu professor 15 anos atrás, me debato em como lidar com a preguiça dos alunos brilhantes.
A preguiça não é um problema quando você tem critério. Eu acho que já tinha critério, por isso acho que minha preguiça nunca me impediu de progredir. Mas o problema da preguiça é que ela pode corroer os seus critérios, e ai você afunda.
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Envolvi meus alunos de doutorado em um projeto interessantíssimo chamado TRIVIA, coordenado pela Sonia Rodrigues, que envolve preparação para o vestibular (ou ENEM), inclusão digital e inclusão científica. O trabalho parecia simples: formular questões de biologia que preparassem os alunos para as provas que tem de enfrentar ao final do ensino médio. Mas como as questões seriam oferecidas na internet, o formato e a linguagem tinham especificidades. E para um aluno de doutorado que almeja um futuro na academia, uma oportunidade dessas é, mais do que a chance de conseguir uns trocados, é a chance de aprender algo novo que poderá ser útil no futuro. E nesse caso, não é a ‘biologia’ das questões que eles vão aprender, mas a linguagem e o formato da WEB, que estarão cada vez mais presentes no presente de professores e alunos.
As questões deveriam ser curtas, objetivas e o mais importante, deveriam, no enunciado e no gabarito, SEMPRE, ensinar alguma coisa. É simples e deveria ser fácil. E é, mas fazer direito, dá trabalho.
Os alunos foram aprendendo e incorporando o formato a medida que preparavam as questões. Mas ainda assim, um deles continuou cometendo os mesmos erros de forma desde o início. E hoje, quando estou para entregar a última fornada, vejo que é por uma dificuldade de incorporar o modelo. Como eu disse, o cara é brilhante. O problema é preguiça.
Existe alguma outra explicação para um cara brilhante fazer a seguinte pergunta:
Pergunta: As espécies que se alimentam de plâncton são chamadas de:

a) Planctívoras
b) Herbívoras
c) Carnívoras

Gabarito:

a) Correto. Espécies planctívoras se alimentam de plâncton.
b) Incorreto. Herbívoras se alimentam de vegetais e o plâncton também é composto por animais.
c) Incorreto. Carnívoros se alimentam de carne e o plâncton também é composto por vegetais.

Isso me frustra, como orientador, de diferentes maneiras (que eu ainda vou discutir no próximo post), porque mostra que eu não estou sendo orientador o suficiente (e não é por preguiça). Mas me estimula também a buscar novas maneiras de dizer as principais coisas que alunos de pós-graduação precisam aprender:

  • Que a seleção natural não dorme nunca! Que enquanto eles deixam de aprender uma coisa, outro aprende, essa e mais algumas outras.
  • Que no mundo de hoje, mais importante que acumular conhecimento, é ter critério para selecionar conhecimento que realmente importa.
  • Que se não dá pra fazer tudo, e se é importante namorar, dormir, fazer festa e ir a praia, use a sua preguiça para não aceitar todos os desafios. É mais honesto e menos arriscado do que tentar fazer mais do que você consegue de forma preguiçosa.

É isso. Todos precisamos nos superar.

Vai que dá…

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Minha irmã precisava de um armário pro seu quarto e comprou um nas ‘Casas Bahia’. Como mora em uma casa de dois andares, com uma escada em espiral para o quarto, foi enfática com a vendedora: “Por favor, mande o armário desmontado, senão será impossível passar pela escada.” No dia seguinte, pela manhã, chega o caminhão na casa dela levando o armário… montado. O caminhão voltou com o armário, que não passou pela escada espiral. Ela voltou a loja, procurou a vendedora, argumentou que foi enfática quanto a necessidade de mandar o armário desmontado, ao que a vendedora respondeu:
“É que quando eu cheguei de manhã, os rapazes já haviam montado o seu armário. Ai eu pensei: ‘vai que dá?!’ e falei pra eles entregarem”.
Todos temos de tomar decisões todos os dias, claro, mas porque alguns de nós insistimos em tomar decisões que vão contra todas as possibilidades de sucesso?
Já escrevi aqui sobre coerência e propensão ao risco, que são elementos fundamentais para explicar a dinâmica da tomada de decisão, mas hoje eu queria falar sobre ‘avaliar’ a incerteza. Acho que isso está na raíz desse ‘mal’. E tem a ver com um tema recorrente nesses tempos de internet e saturação da informação: a qualidade da informação que temos.
Veja, antigamente (e estou falando de 1993, a era pré internet), havia, realmente, pouca informação. E essa informação nem sempre era disponível, já que o esforço para chegar a ela era quase sempre infrutífero ou simplesmente não valia a pena.
Atualmente, a quantidade de informação produzida em um ano, supera a quantidade de informação produzida por toda a humanidade nos últimos 40.000 anos. Claro que nem toda essa informação é boa, ou útil, mas com os meios digitais, toda ela está ao alcance dos nossos teclados e monitores. O que nos traz um novo problema: como separar a informação que é boa, daquela que não é boa.
Deixa eu dar um exemplo. Eu posso querer saber se um aluno que chega na sala de aula feliz, aprende mais do que aquele que chega na aula infeliz. Como vou avaliar se meus alunos são/estão felizes? A melhor forma seria perguntar a eles. Então coloco uma folha de papel na mesa de cada um, com uma pergunta simples de múltipla escolha: Você está feliz? Marque uma opção de 1 a 5 com 1 sendo ‘muito infeliz’ e 5 sendo ‘muito feliz’. Analiso rapidamente os resultados e decido se a minha aula pode ‘pegar mais pesado ‘ ou tem que pegar mais leve. Certo? Errado!
Qual a qualidade, a credibilidade, da resposta das pessoas a pergunta ‘você está feliz’? Mesmo não tendo formação em psicologia, posso imaginar umas 100 razões para que uma pessoa responda essa pergunta com viés para o ‘muito infeliz’ ou para o ‘muito feliz’ e que não tenham nada a ver com o real estado de espírito dela.
Se você opta por utilizar a informação fornecida por esse questionário, não importa o quão bom seja o seu método de tomada de decisão (como por exemplo o método estatístico Bayesiano): sua decisão não terá sido melhor do que um chute.
Então como saber se uma informação é boa? Na falta de um mecanismo de verificação, temos que confiar no nosso critério.
Para ter certeza, a vendedora das ‘Casas Bahia’ poderia ter ido até a casa da minha irmã com uma trena, tomado as medidas da escada e da porta, e confrontado com as medidas do armário: montado e desmontado. Assim, tomaria uma decisão sem nenhuma dúvida. Em não tendo essa confirmação, ela tem de confiar na palavra da minha irmã, que conhece a própria casa melhor do que a ela (vendedora), contando que, ao contrário dos meus alunos na sala de aula, minha irmã não tenha nenhum motivo psicológico (conhecido 😉 para fornecer uma informação duvidosa.
Mas ainda assim, ela toma a decisão contrária a lógica e a razão. Porque?
Ok, primeiro escrevi uma longa resposta para essa pergunta (que vai virar o próximo texto), falando sobre critério (e a falta dele) mas depois pensei bem, apliquei a ‘navalha de Occam’ nas minhas idéias, e cheguei a conclusão mais simples (que mostrou que na verdade o meu exemplo inicial da vendedora foi ruim, mas agora vou responder do mesmo jeito).
A vendedora foi contra a lógica por preguiça! Não tem nada a ver com falta de instrumentos estatísticos ou critérios. Foi preguiça e falta de responsabilidade. Não foi ela quem montou o armário à-toa, não era ela quem pilotaria o caminhão ou descarregaria o armário à-toa, nem era ela que ficaria mais um dia sem armário. A sua responsabilidade era de mandar o armário naquele dia (ainda que montado, o que acrescenta falta de ética as suas qualidades).
A conclusão é que a preguiça não é um bom critério de decisão.

Criatividade ou Anarquia?

Pollock foi criativo
O físico Richard Feynman diz que toda boa idéia deve primeiro passar por um exame intelectual criterioso antes de ser colocada a prova experimentalmente. Testar hipóteses é trabalhoso e caro, e justamente por isso nem todas as idéias devem chegar a esse estágio. Não importa se é uma idéia para um experimento, para um novo avião ou para uma obra de arte.Uma boa idéia, e portanto original e criativa, não deve refutar princípios básicos das coisas.
Por exemplo, a 2a lei da termodinâmica é uma das leis fundamentais do universo. Ela diz que não podemos reciclar energia. Energia gasta é energia perdida (isso pode parece banal, mas tem conseqüências graves, como a passagem do tempo, a expansão do universo, a vida e a morte). E também diz que as coisas precisam de energia para se manterem organizadas e se não gastarmos energia as coisas se desorganizam.
Uma nova idéia para uma turbina precisa respeitar a 2a lei da termodinâmica
Pois bem, se um engenheiro aparece com uma idéia excelente sobre um novo motor a jato onde a energia de uma turbina em movimento é utilizada como combustível para movimentar uma outra turbina; por melhor que seja a idéia, ela é impraticável, porque contraria uma lei fundamental. Ou o engenheiro propõe uma nova abordagem para a lei da transferência de energia ou o projeto vai ficar engavetado (o que provavelmente acontecerá).
Quando uma idéia nova não respeita leis fundamentais e preceitos básicos ela não é criativa, ela é anarquica. E a anarquia, como a falta de energia, levam a desordem. Não é uma colocação política, é física.
Picasso foi muito, muito criativo
Essa constatação parece ser universal. Andando pelo MoMA no final de semana passado, vi obras de arte que eram criativas e outras que eram, simplesmente, anárquicas. Não tem a ver com formas, com cores, com padrões, emoções ou abstração. Van Gogh usou cores e pinceladas que ninguém usava e foi muito criativo. Picasso usou formas que ninguém nunca usava e foi criativo. Pollock jogava tintas na tela e foi criativo. Andy Warhol usou latas de sopa e foi criativo. Porque então ou cara que jogou panos de estopa no chão e colocou alguns espelhos foi anárquico? Vejam que eu disse ‘o cara’ porque eu nem lembro o nome da figura.
Aqui eu não há criatividade. Só anarquia.
Está faltando precisão para explicar o anárquico? Então deixem eu tentar novamente. No último andar do museu havia uma mostra de Miró. E era uma mostra anárquica. Das horas que passei no museu, apenas 5 min (tempo necessário para atravessar todos os corredores sem parar em quase nenhuma obra) foram nessa recém inaugurada gigantesca mostra de Miró.
Mas se eu adoro Miró e acho Miró super criativo. Vejam que eu disse que a ‘mostra’ era anarquica.
Nesse caso, a culpa é do curador e não do pintor. A mostra se chamava ‘Pintura e anti-pintura’ com desenhos e colagens feitos por Miró depois da sua frase célebre “Eu quero assassinar a pintura”. O curador tenta vender a idéia de que vários estudos e desenhos de Miró eram uma fase revoltada da sua arte, uma tentativa de criar a anti-pintura, trabalhando em segredo em seu estúdio blá, blá, blá. Pura anarquia. A verdade é que o fascismo estava comendo solto na Espanha e a segunda guerra mundial batendo à porta. Miró trabalhava trancado em seu estúdio por medo de sair na rua. E não havia muita gente circulando por lá pra ir visitá-lo. Miró foi criativo, mas isso não quer dizer que TUDO o que ele fez enquanto estudava e experimentava era criativo.
Uma idéia para ser criativa precisa respeitar a lei da entropia, em qualquer um dos seus muitos enunciados: “o calor sempre passará de um corpo mais quente para um corpo mais frio e nunca ao contrário”; “uma energia de baixa qualidade realiza menos trabalho que uma energia de alta qualidade”. Uma idéia para ser criativa, precisa otimizar o uso da energia. Em um motor, um texto, um experimento ou uma pintura.
Preguiça e ignorância nunca resultam em idéias criativas.

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