Quatro apoios

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“Cada descoberta e cada invenção levam a transferência de poder e a mudança de hábitos, portanto a medo, desconfiança, resistência e atraso.” diz o sociólogo italiano Domenico de Masi.
O artigo Raízes do atraso brasileiro do professor Wanderley de Souza no jornal O Globo de ontem (15/08/2001) procura mostrar os obstáculos para se fazer inovação no Brasil, mas, na minha opinião, deixa de mencionar um problema fundamental, um conflito conhecido na vida de todas as pessoas, mas velado na ciência brasileira: o choque de gerações.
Apesar de velado, esse conflito é antigo.
“O principal papel do instituto (de Biofísica da UFRJ) foi o de mobilizar apoios, governamentais e não-govemamentais, vencer resistências internas e externas dentro do espaço em que deveria legitimar-se e sobretudo, por intermédio de seu fundador, o professor Carlos Chagas Filho, criar categorias que hoje constituem tradições da ciência brasileira, mas que nem sempre estiveram ali.”

Esse depoimento foi dado pelo professor Paulo Góes Filho na abertura da autobiografia do professor Carlos Chagas Filho, fundador do Instituto de Biofísica da UFRJ, a primeira instituição universitária a fazer pesquisa científica. O livro se chama Um aprendiz da ciência.
“(…) tendo sido Raul Leitão da Cunha nomeado ministro da Educação e Saúde, chamou-me ao seu gabinete para me perguntar o que eu achava que deveria ser feito por nossa universidade. Respondi-lhe que a primeira coisa seria o estabelecimento do tempo integral, particularmente para as cátedras fundamentais. A seguir, propus a ele que se organizassem institutos de ensino e pesquisa nas várias disciplinas básicas. Era este um assunto que eu havia discutido com professores da Universidade de São Paulo, sendo que, na ocasião, fui uma minoria esmagada. Leitão da Cunha perguntou-me quais os institutos que deviam ser criados imediatamente. Física, química e matemática seriam os primeiros, com a responsabilidade de neles se ministrar o ensino dessas matérias para todos os cursos da universidade. (…) [e depois] Criar o Instituto de Biofísica, que teria função de implantar a pesquisa na Faculdade de Medicina e trazer para o nosso meio os métodos físicos que despontaram nos centros maiores depois da Segunda Guerra Mundial, e o desenvolvimento dos métodos eletrônicos.Leitão da Cunha aquiesceu imediatamente”
O livro do professor Chagas é uma fonte de sabedoria. E muitas vezes, quando o presente é incerto, muitas vezes é bom voltar a fonte, aos princípios básicos das coisas, porque com passar dos anos, as histórias chegam a nós um pouco distorcidas.
O tempo entre a posse do professor Chagas Filho como catedrático de Física Biológica na faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil em 23 de novembro de 1937 e a fundação do Instituto de Biofísica em 17 de dezembro de 1945 (oito anos depois) dão uma idéia da resistência encontrada para as idéias de Chagas Filho. Até mesmo pelo próprio Leitão da Cunha, que era o responsável pelo curso de anatomia patológica e foi o primeiro chefe de Carlos Chagas Filho na universidade, quando este dava aulas de hematologia 3 vezes por semana, em 1934.
“O jovem professor está consciente de que é o único voto contra?” perguntou Leitão da Cunha a Carlos Chagas Filho ao final de uma sessão da congregação quando todos os professores pleiteavam por benefícios. Chagas os intitulava de os “Barões da Faculdade de Medicina”.
“Evandro passou-me vários telegramas para Paris, onde eu me encontrava, só tendo desistido do seu intento de não entregar o meu pedido (de demissão de Manguinhos) depois de uma longa conversa telefônica em que eu lhe expus a minha firme decisão de assumir a cadeira na faculdade. Impeliam-me nesse sentido, entre outros, dois motivos principais: a possibilidade de discutir com alunos a matéria ao meu encargo e, principalmente, a intenção de implantar a pesquisa fundamental na universidade, segundo o modelo de atividade que aprendera no Instituto Oswaldo Cruz.”
Vejam que enquanto encontrava resistência para estabelecer a atividade científica na Faculdade de Medicina, encontrava também resistência para exercer a atividade didática vinda de Manguinhos, principalmente de seu irmão, Evandro Chagas:
“A razão principal dessa oposição é que não se poderia jamais pesquisar na universidade e que eu me esterilizaria no Simples exercício de atividades didáticas.”
Hoje, “Ensino, Pesquisa e extensão” são o tripé que sustenta a universidade como instituição, de forma que é quase inimaginável pensar que um dia já estiveram separadas.
Por isso a minha estranheza quando vejo o professor Wanderley de Souza, titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, onde eu também tenho o privilégio de exercer a atividade de professor e pesquisador, protestar contra a realização da inovação na universidade.
“Em todos os países, a produção de patentes resulta da atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação praticada nas empresas. A título de exemplo, cabe mencionar que apenas 4% das patentes depositadas nos EUA são provenientes de suas universidades. (…) o Sistema Brasileiro de Ciência e Tecnologia foi montado ao longo de vários anos para dar apoio à pesquisa básica, e o fez com sucesso. Este sistema não foi e não se encontra preparado para lidar com o setor empresarial.”
Corretíssimo em suas duas afirmações, Wanderley discorda da política do governo, que através de movimentos como a ‘Lei do Bem’ e ‘Lei da Inovação’, estimulam a universidade a comandar, ou encabeçar, a inovação no país.
A questão,para nós, é que se nos EUA pode ser daquele jeito, aqui não. A política econômica dos últimos 20 anos, assim como a cultura trabalhista brasileira, nunca estimularam o empreendedorismo. Ainda hoje, um aluno de qualquer disciplina tem de procurar um MBA depois de se formar, porque são raríssimos os cursos (fora dos currículos de economia e administração) que ensinem a preparar um plano de negócios. O resultado é que não há como exigir de uma indústria intermediária inexistente que lidere a marcha pela inovação. A ‘inteligenzia‘ brasileira, aquela capaz de interpretar e aplicar o conhecimento científico produzido no Brasil e no mundo está na universidade. Foi criada e é mantida pela sociedade brasileira. E é por esses motivos, entre outros, que ela precisa liderar movimento pela inovação e empreendedorismo no país.
É claro que precisamos rever nossa lei de patentes. Assim como nossa política econômica de juros altos e nossa cultura social de funcionalismo público. Mas também deveríamos rever nosso modelo de ciência e tecnologia, baseado no paradigma da ciência básica e ciência aplicada do pós-guerra, para uma abordagem mais moderna que, curiosamente, remete a atividade de aplicação de ciência de Louis Paster no Séc XIX, onde a busca de soluções para problemas aplicados leva ao desenvolvimento de fundamentos da ciência. Uma história muito bem contada no livro ‘O Quadrante Pasteur‘.
Esta na hora da universidade evoluir e se apoiar em um quadripé de “ensino, pesquisa, extensão e inovação”. Mas não acredito que essa mudança convenha ou interesse aos ‘Barões da Ciência’ do Brasil de hoje.

Quem são os biofísicos?

Quando entrei no doutorado no Instituto de Biofísica da UFRJ em 1997, uma coisa me incomodava: eu não sabia direito o que era Biofísica! Eu enchia a boca para dizer “Faço doutorado em biofísica” e torcia para ninguém perguntar depois “Mas o que é biofísica?” Acho que o termo é tão ostentoso que ninguém se arriscava a perguntar. Até ontem. Na verdade a pergunta do João não foi exatamente o que é biofísica, mas sim se existem “biofísicos”? Sim João, existem.

Mas vamos voltar a biofísica. É claro que em algum momento, bem no início, eu procurei uma definição de Biofísica. E encontrei. Várias. Todas desse tipo: “Biofísica é a aplicação de princípios físicos, tanto clássicos como modernos, para a solução de problemas dos sistemas biológicos”
Nenhuma ficava guardada na minha memória. Com o tempo, fui eu mesmo construindo minha definição.

Acho que começou quando li “Genes, girls and Gamow” do James Watson (um dos descobridores da dupla hélice do DNA). O ‘Gamow’ do título é o físico nuclear George Gamow. Um cara de peso, não apenas pelos seus quilos em excesso, mas por toda sua influência na física e na política do século XX. Foi ele que cunhou o termo “big bang” para descrever a grande explosão que teria dado origem ao universo e trabalhou no projeto Manhatan, de onde saíram as duas primeiras bombas atômicas do mundo.

A física viveu seu auge no início do século XX. O modelo atômico de Neils Bohr, a relatividade de Einstein e a mecânica quântica de Max Planck, mudaram a forma de ver o mundo. Houve muitos outros físicos de destaque como Enrico Fermi, Robert Oppenheimer e Richard Feynman. Mas o (explosivo) sucesso da empreitada do projeto Manhatan, com a aplicação na pratica de toda a física teórica até então produzida, trouxe o vazio que costuma a acompanhar o alcance de grandes objetivos. O pós-guerra deixou então muitos físicos órfãos, para não dizer desempregados.

Por outro lado, a biologia era um campo de grande efervescência. Avery, MacLeod e McCarty tinham descoberto em 1944 que era o DNA que continha as informações genétics. Em 1952 Linus Pauling ganhou o Nobel pela descoberta da estrutura de alfa-helice e folhas-beta das proteínas, e em 1953 Watson e Crick descobriram a dupla hélice do DNA. Isso entre outras coisas. Não é de estranhar que os físicos desempregados e sedentos por novas idéias voltassem seus olhos para a biologia. E foi o que fizeram. No livro de Watson ele relata de como após a descoberta da estrutura da dupla hélice, Gamow se juntou a ele e Crick para tentarem entender como apenas 4 nucleotídeos poderiam dar origem aos 20 aminoácidos conhecidos. Eles precisariam estar em código e quebrar esse código se tornou o principal passatempo de Gamow, que continuava consultor do governo americano para assuntos de segurança nacional.

O próprio trabalho de Linus Pauling e de Watson e Crick não seria possível sem uma importante ferramenta da física aplicada a biologia, a difração de raios-X. A técnica utilizada por Bragg e Bragg para decifrar a estrutura cristalina dos materiais foi rapidamente incorporada a biologia para estudar a estrutura cristalina das moléculas biológicas. O fisiologista Neozelandês Maurice Wilkins e a biofísica americana Rosalind Franklin foram pioneiros na aplicação dessa técnica à biologia e competiam com Watson e Crick para ver quem determinaria primeiro a estrutura do DNA.

Parênteses para fofoca: Na verdade, foi ao ver uma palestra de Wilkins no Instituto de Zoologia de Nápoles, que Watson (que era muito, muito ambicioso) decidiu que deveria estudar a estrutura do DNA, um assunto que poderia levá-lo a fama (e ao sucesso com as garotas, que ele tanto almejava). Mas ele, além de muito feio e muito chato, não entendia nada de difração de raios-x, então foi para a Inglaterra, para os laboratórios Cavendish, onde essa técnica era amplamente utilizada (inclusive por Sir Laurence Bragg), com a desculpa de estudar a estrutura da mioglobina. Mas passava a maior parte do tempo conversando com Crick sobre hereditariedade, DNA e construindo os modelos de madeira e ferro que levaram eles a compreender corretamente a estrutura do DNA. Fecha parênteses.

Mas talvez o pai da biofísica seja Erwin Schrödinger. É, aquele que disse que ‘o gato dentro da caixa’ está vivo algumas vezes e morto outras, esse mesmo. Ele foi mais um daqueles brilhantes físicos do início do século XX, que já na meia idade, após uma distinta carreira científica, voltou seus olhos para a biologia.

A pergunta que perturbava Schrödinger era: “Como podem os eventos no tempo e espaço que ocorrem dentro dos limites espaciais de um organismo vivo, serem explicados pela física e pela química?” Ele estava convencido de que a inabilidade da física e da química daquela época para explicar esses eventos não era razão para duvidar que eles pudessem ser explicados por essas ciências. Assim, em 1948 ele publica o livro “What is life” onde dá uma abordagem revolucionária sobre o que é a vida e que influenciou em muito a biologia dai por diante.

Hoje em dia a definição que eu mais gosto, e mais uso, é a do professor Carlos Chagas Filho, fundador do Instituto de Biofísica da UFRJ, que leva o seu nome, e onde eu trabalho: “Biofísica é tudo aquilo que se faz no instituto de Biofísica”

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