Terminei de ler… O Manuscrito de Mediavilla
Na verade terminei de ler esse livro no ano passado, mas foi nesse final de semana que o meu grande amigo Milton me presenteou com a cópia que ele próprio tinha me emprestado para ler.
Eu tenho que confessar que tenho um pouco de preconceito contra cientistas sociais. Fui quase fulminado quando disse isso em uma palestra na Fiocruz semanas atrás. Não tenho nada contra eles como pessoas, mas sim contra suas hipóteses serem científicas.
O “Manuscrito de mediavilla” é o segundo romance escrito pelo professor da USP Isaias Pessotti, que é psiquiatra e estuda a história da loucura. E é um dos livros que eu gostaria de escrever. Mais ainda do que o seu primeiro romance, “Aqueles malditos cães do arquelau“, que eu dei de presente para o Edu depois de ler. Atualmente é tão, tão difícil encontrá-los a venda. Ambos são passados na itália, contam aventuras dignas de Dan Brown em ‘O código da Vinci‘, mas com a diferença que os investigadores são todos amigos que, entre uma visita a um sebo de livros do ‘medievole’ no Piemonte e um antigo claustro no Lombardia, eles param para almoçar nos lugares mais interessantes, com o autor descrevendo os menus, pedidos, receitas e vinhos que todos provam. Vejam um exemplo:
“- Posso levar as folhas para casa? Perguntei.
– Basta que você não as aproveite para embrulhar peixes ou mariscos. Tenho que passá-las a outros e Patrízia, por exemplo, não gosta de peixes.
O olhar verde-musgo de Clara se iluminou.
– Por falar em mariscos, porque não vamos almoçar? Penso num lindo risotto al frutti di mare, na periferia. Em Affori, por exemplo.
Alberto deu-lhe um olhar severo.
– Como você ousa propor tal coisa? Só voltaremos depois de três da tarde! Aliás, um excelente horário, para quem costuma sair daqui depois das sete da noite. Mas não
e parece correto que uma pesquisadora descumpra seu horário de trabalho, por um risotto. Seria diferente se o fizesse por um belo filé peixe-espada, com molho muito suave de atum, nata batida e alcaparras, ao lado de um Tocay geladinho. Sugiro o jardim do Sette Lune em frente ao parque Litta.”
Ela ainda adiciona, ao final da página 139, que tomaram um delicioso Grumello durante o almoço. Uma delícia!
Mas não foi o mistério, a aventura ou o festival gastronômico que me fizeram escrever esse artigo. Isaias descreve, no personagem de Vittório, o que para mim são as grandes virtudes de um chefe de departamento de uma instituição acadêmica.
Ainda que possa parecer longo, vale a pena ler o texto que transcrevo:
“Outra razão era uma qualidade rara em gente da nossa laia: com toda a sua alta reputação e o sucesso de suas publicações, ela não se envaidecia: era uma discípula de Pietro Vittori, que a tinha orientado desde os anos da graduação até o pós-doutorado. Cada discípulo de Vittori tinha algumas marcas, inconfundíveis: a consciência
de que sempre é preciso saber mais, de que a virtude não está no que se sabe, mas na busca devotada do saber, além de um inflexível senso de justiça.
(…)
Mas éramos muito respeitados pela “qualidade acadêmica” do que fazíamos. Parte
desse respeito era devida a outro motivo. Toda a Universidade sabia que o nosso Departamento jamais apoiaria qualquer iniciativa que não fosse a melhor para “os fins, impessoais, da instituição”, como dizia Vittori. Isso nos alijava das posições de decisão. Por isso, nosso Departamento era o mais respeitado, mas era também o mais pobre.
Isso não doía: tínhamos até uma certa compaixão pelos que lutavam por posições de chefia ou de direção. Quando a busca do poder importa mais que a busca do saber, as universidades morrem. Assim ensinava Vittori.
(…)
Talvez, de todos nós, o mais visado fosse Pietro Vittori, o diretor. Ele proclamava aos quatro ventos que a transmissão do saber, a formação dos estudantes, era a razão maior da Universidade. Dizia que isso era algo extremamente sério e, por isso mesmo, não era assunto para novatos que, após a formatura, não responderiam pelas conseqüências das “revoluções” que propunham. Achava que os alunos precisam distinguir entre o poder que contestam e a autoridade intelectual de seus mestres. Que o direito de contestar a universidade, se adquire cumprindo seu papel nela, o dever social de estudar com seriedade, no caso dos alunos. Mais ainda, dizia que a Universidade não tem poderes a serem disputados: ela tem, isso sim, compromissos e o maior deles, supremo, é com a razão, a racionalidade. Que os cargos universitários são deveres sociais ou institucionais, e não posições de poder. Para ele, a ambição por tais cargos como posições de mando era marca dos que estariam mais felizes fora da universidade. Tanto mais hábeis no jogo do poder, quanto medíocres no saber. Por esse caminho, pode-se concluir que os medíocres não são raros.
(…)
Uma vez, ele explicou a Alberto como entendia a função de diretor do Departamento.
– Um diretor deve ser um chefe. Alguém que assume decisões e que responde pessoalmente por elas. Ele quase soletrou o pessoalmente.
– E os docentes?
– Cada um deles pode tomar as decisões que quiser, desde que responda, pessoalmente, por cada uma delas. Somos todos adultos, responsáveis, não?
– Mas o Conselho é um órgão deliberativo…
– …que pode destituir-me da direção em qualquer momento. Mas sou eu que assino pessoalmente as decisões, assumo pessoalmente o ônus de responder por elas em primeira pessoa. Portanto, é justo que eu tenha o poder de decidir. É cômodo decidir anonimamente em grupo e depois delegar a responsabilidade da execução, agora pessoal, ao diretor.
A conversa era serena e polida. Vittori e Alberto eram amigos, acima de tudo. Por isso Alberto podia ser franco:
– Mas uma decisão democrática deve ser majoritária…
– Nisso você se engana, meu caro: a maioria pode representar a intolerância, até a prepotência. Ou você acha que a má-fé, quando é de muitos, se torna pureza?
– Penso numa decisão discutida…
– Eu jamais impedi que vocês discutam meus projetos. Não decido nada sem discutir com vocês todos. Convençam-me de que eles são errados ou inconvenientes e eu os modifico ou abandono. A discussão deve buscar racionalmente a verdade, como diria Abelardus, e não servir apenas de álibi para a prepotência das maiorias. Ser democrático não é curvar-se ao número de votos. É submeter honestamente as próprias idéias à apreciação dos outros e saber render-se a uma argumentação convincente… Que pode ser a da minoria, ou a de um só, por que não?
Alberto coçou o queixo:
– O que acontece quando a opinião da maioria é a mais acertada? A mais… convincente?
– Então, nem precisa ser majoritária, Alberto. Entre uma minoria que pensa certo e uma maioria que erra, prefiro seguir a minoria.
– Mas como saber o que é pensar certo?
– Seguramente o certo não é, necessariamente, o que uma dada maioria pensa. Poder se decide pelo voto; acerto, não.
– E então?
– O que é certo, no caso do nosso Departamento, ou do Instituto, por exemplo, é o que, num dado momento, é moralmente lícito, traz benefício ao grupo, contribui para os fins, impessoais, da instituição. A quem responde, cabe a decisão. A discussão serve para corrigir as distorções dos critérios pessoais de quem deve decidir. No caso, eu.
– Isso não é meio autoritário?
– Seria, se o poder de decidir não fosse delegado. O Conselho pode retirar essa delegação quando quiser. O poder, sim, pertence ao Conselho, que o delega ou retira, conforme a vontade da maioria.
– Agora vale a maioria? Por quê?
– É óbvio, Alberto. Agora, a questão não é a do acerto ou erro de uma decisão. Agora se trata de atribuir o poder. É uma questão de força. É o exercício da força. A decisão pode até ser errada: acerto não se decide por voto. Maioria é uma expressão de força, Alberto. E a força, raramente acompanha a racionalidade.
– Numa democracia o direito de opinar deve ser irrestrito, disse Alberto, cruzando os braços. Era o jeito dele quando decidia levar uma discussão até o fim.
– Então deixemos que os pacientes do Policlínico ou os presos de San Vittore decidam como deve ser conduzido o hospital ou o presídio. Ou, que os alunos, beneficiários transitórios da Universidade, resolvam como deve ser o ensino, a pesquisa, o estatuto. Eles não responderão pelos efeitos de tais decisões, após a formatura. Alunos,
pacientes e presos são sempre maioria, nessas diferentes instituições, como você sabe, meu caro.
– Eu disse: direito de opinar, professor.
– Pelo gosto de opinar? Ou para decidir?
Não sei como a conversa terminou. Conto isso para mostrar como funcionava o Departamento. E é bom que se diga: Pietro Vittori tinha sido eleito pela quarta vez consecutiva para a Diretoria. Por unanimidade!
Estilos à parte, confiávamos nele. Na sua dedicação “aos fins, impessoais, da instituição”. E no seu rigoroso senso de justiça.”
Lindo, de novo, não é?
Eu tenho que confessar que tenho um pouco de preconceito contra cientistas sociais. Fui quase fulminado quando disse isso em uma palestra na Fiocruz semanas atrás. Não tenho nada contra eles como pessoas, mas sim contra suas hipóteses serem científicas.
O “Manuscrito de mediavilla” é o segundo romance escrito pelo professor da USP Isaias Pessotti, que é psiquiatra e estuda a história da loucura. E é um dos livros que eu gostaria de escrever. Mais ainda do que o seu primeiro romance, “Aqueles malditos cães do arquelau“, que eu dei de presente para o Edu depois de ler. Atualmente é tão, tão difícil encontrá-los a venda. Ambos são passados na itália, contam aventuras dignas de Dan Brown em ‘O código da Vinci‘, mas com a diferença que os investigadores são todos amigos que, entre uma visita a um sebo de livros do ‘medievole’ no Piemonte e um antigo claustro no Lombardia, eles param para almoçar nos lugares mais interessantes, com o autor descrevendo os menus, pedidos, receitas e vinhos que todos provam. Vejam um exemplo:
“- Posso levar as folhas para casa? Perguntei.
– Basta que você não as aproveite para embrulhar peixes ou mariscos. Tenho que passá-las a outros e Patrízia, por exemplo, não gosta de peixes.
O olhar verde-musgo de Clara se iluminou.
– Por falar em mariscos, porque não vamos almoçar? Penso num lindo risotto al frutti di mare, na periferia. Em Affori, por exemplo.
Alberto deu-lhe um olhar severo.
– Como você ousa propor tal coisa? Só voltaremos depois de três da tarde! Aliás, um excelente horário, para quem costuma sair daqui depois das sete da noite. Mas não
e parece correto que uma pesquisadora descumpra seu horário de trabalho, por um risotto. Seria diferente se o fizesse por um belo filé peixe-espada, com molho muito suave de atum, nata batida e alcaparras, ao lado de um Tocay geladinho. Sugiro o jardim do Sette Lune em frente ao parque Litta.”
Ela ainda adiciona, ao final da página 139, que tomaram um delicioso Grumello durante o almoço. Uma delícia!
Mas não foi o mistério, a aventura ou o festival gastronômico que me fizeram escrever esse artigo. Isaias descreve, no personagem de Vittório, o que para mim são as grandes virtudes de um chefe de departamento de uma instituição acadêmica.
Ainda que possa parecer longo, vale a pena ler o texto que transcrevo:
“Outra razão era uma qualidade rara em gente da nossa laia: com toda a sua alta reputação e o sucesso de suas publicações, ela não se envaidecia: era uma discípula de Pietro Vittori, que a tinha orientado desde os anos da graduação até o pós-doutorado. Cada discípulo de Vittori tinha algumas marcas, inconfundíveis: a consciência
de que sempre é preciso saber mais, de que a virtude não está no que se sabe, mas na busca devotada do saber, além de um inflexível senso de justiça.
(…)
Mas éramos muito respeitados pela “qualidade acadêmica” do que fazíamos. Parte
desse respeito era devida a outro motivo. Toda a Universidade sabia que o nosso Departamento jamais apoiaria qualquer iniciativa que não fosse a melhor para “os fins, impessoais, da instituição”, como dizia Vittori. Isso nos alijava das posições de decisão. Por isso, nosso Departamento era o mais respeitado, mas era também o mais pobre.
Isso não doía: tínhamos até uma certa compaixão pelos que lutavam por posições de chefia ou de direção. Quando a busca do poder importa mais que a busca do saber, as universidades morrem. Assim ensinava Vittori.
(…)
Talvez, de todos nós, o mais visado fosse Pietro Vittori, o diretor. Ele proclamava aos quatro ventos que a transmissão do saber, a formação dos estudantes, era a razão maior da Universidade. Dizia que isso era algo extremamente sério e, por isso mesmo, não era assunto para novatos que, após a formatura, não responderiam pelas conseqüências das “revoluções” que propunham. Achava que os alunos precisam distinguir entre o poder que contestam e a autoridade intelectual de seus mestres. Que o direito de contestar a universidade, se adquire cumprindo seu papel nela, o dever social de estudar com seriedade, no caso dos alunos. Mais ainda, dizia que a Universidade não tem poderes a serem disputados: ela tem, isso sim, compromissos e o maior deles, supremo, é com a razão, a racionalidade. Que os cargos universitários são deveres sociais ou institucionais, e não posições de poder. Para ele, a ambição por tais cargos como posições de mando era marca dos que estariam mais felizes fora da universidade. Tanto mais hábeis no jogo do poder, quanto medíocres no saber. Por esse caminho, pode-se concluir que os medíocres não são raros.
(…)
Uma vez, ele explicou a Alberto como entendia a função de diretor do Departamento.
– Um diretor deve ser um chefe. Alguém que assume decisões e que responde pessoalmente por elas. Ele quase soletrou o pessoalmente.
– E os docentes?
– Cada um deles pode tomar as decisões que quiser, desde que responda, pessoalmente, por cada uma delas. Somos todos adultos, responsáveis, não?
– Mas o Conselho é um órgão deliberativo…
– …que pode destituir-me da direção em qualquer momento. Mas sou eu que assino pessoalmente as decisões, assumo pessoalmente o ônus de responder por elas em primeira pessoa. Portanto, é justo que eu tenha o poder de decidir. É cômodo decidir anonimamente em grupo e depois delegar a responsabilidade da execução, agora pessoal, ao diretor.
A conversa era serena e polida. Vittori e Alberto eram amigos, acima de tudo. Por isso Alberto podia ser franco:
– Mas uma decisão democrática deve ser majoritária…
– Nisso você se engana, meu caro: a maioria pode representar a intolerância, até a prepotência. Ou você acha que a má-fé, quando é de muitos, se torna pureza?
– Penso numa decisão discutida…
– Eu jamais impedi que vocês discutam meus projetos. Não decido nada sem discutir com vocês todos. Convençam-me de que eles são errados ou inconvenientes e eu os modifico ou abandono. A discussão deve buscar racionalmente a verdade, como diria Abelardus, e não servir apenas de álibi para a prepotência das maiorias. Ser democrático não é curvar-se ao número de votos. É submeter honestamente as próprias idéias à apreciação dos outros e saber render-se a uma argumentação convincente… Que pode ser a da minoria, ou a de um só, por que não?
Alberto coçou o queixo:
– O que acontece quando a opinião da maioria é a mais acertada? A mais… convincente?
– Então, nem precisa ser majoritária, Alberto. Entre uma minoria que pensa certo e uma maioria que erra, prefiro seguir a minoria.
– Mas como saber o que é pensar certo?
– Seguramente o certo não é, necessariamente, o que uma dada maioria pensa. Poder se decide pelo voto; acerto, não.
– E então?
– O que é certo, no caso do nosso Departamento, ou do Instituto, por exemplo, é o que, num dado momento, é moralmente lícito, traz benefício ao grupo, contribui para os fins, impessoais, da instituição. A quem responde, cabe a decisão. A discussão serve para corrigir as distorções dos critérios pessoais de quem deve decidir. No caso, eu.
– Isso não é meio autoritário?
– Seria, se o poder de decidir não fosse delegado. O Conselho pode retirar essa delegação quando quiser. O poder, sim, pertence ao Conselho, que o delega ou retira, conforme a vontade da maioria.
– Agora vale a maioria? Por quê?
– É óbvio, Alberto. Agora, a questão não é a do acerto ou erro de uma decisão. Agora se trata de atribuir o poder. É uma questão de força. É o exercício da força. A decisão pode até ser errada: acerto não se decide por voto. Maioria é uma expressão de força, Alberto. E a força, raramente acompanha a racionalidade.
– Numa democracia o direito de opinar deve ser irrestrito, disse Alberto, cruzando os braços. Era o jeito dele quando decidia levar uma discussão até o fim.
– Então deixemos que os pacientes do Policlínico ou os presos de San Vittore decidam como deve ser conduzido o hospital ou o presídio. Ou, que os alunos, beneficiários transitórios da Universidade, resolvam como deve ser o ensino, a pesquisa, o estatuto. Eles não responderão pelos efeitos de tais decisões, após a formatura. Alunos,
pacientes e presos são sempre maioria, nessas diferentes instituições, como você sabe, meu caro.
– Eu disse: direito de opinar, professor.
– Pelo gosto de opinar? Ou para decidir?
Não sei como a conversa terminou. Conto isso para mostrar como funcionava o Departamento. E é bom que se diga: Pietro Vittori tinha sido eleito pela quarta vez consecutiva para a Diretoria. Por unanimidade!
Estilos à parte, confiávamos nele. Na sua dedicação “aos fins, impessoais, da instituição”. E no seu rigoroso senso de justiça.”
Lindo, de novo, não é?