As aventuras de um carbono viajante

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Tudo começou bilhões de anos atrás, no interior de uma estrela muito, muito quente mesmo, onde meu pai, um átomo de berílio e minhas três mães de hélio se juntaram para me formar. Os elementos são muito altruístas e para que um nasça, outros tem que morrer. Então nasci eu, Célio Carbono da Silva.
Eu vivia tranquilo em um berçário estelar até que o alarme de incêndio tocou e a professora disse que nossa estrela tinha se transformado em um a supernova e iria explodir. Fiquei assustadíssimo, mas se você acha que os fogos de artifício no Ano Novo em Copacabana são legais, não tem nem idéia do que pode ser a explosão de uma estrela. Fomos, eu e meus primos de hidrogênio, ferro, nitrogênio, todos lançados no espaço sideral no maior fogo de artifício de todos os tempos.
Quando a força da explosão foi diminuindo, nós decidimos passar umas férias nesse novo planeta que estava se formando, a Terra. Era uma pechincha comparado ao que as agências estavam cobrando para as viagens nas caudas de cometas. Além disso, essa coisa de ficar dando voltinhas em torno do sistema solar parecia mais coisa de parquinho de diversão. Coisa para crianças e eu já era um rapazinho, com mais de 5 bilhões de anos.
Eu estava super bronzeado depois de uma temporada no mar de magma. Mas ai chegou o inverno (ou pelo menos começou a esfriar) e as coisas foram engrossando. Se não fosse aquele vulcão, eu poderia ter ficado preso por toda a minha adolescência em alguma rocha basáltica. Achei que não sobreviveria ao grande dilúvio que se sucedeu, mas descobri que era um ótimo nadador e me transformei no primeiro carbono dissolvido da história.
Foi nessa época também que tive meu primeiro caso com uma hidrogênio. Eu era bonitão e elas me perseguiam em grupo. Acabei me juntando com 4 delas, uma era a mais bonita, outra a mais simpática, tinha também a mais inteligente e uma aproveitadora (que só queria meus elétrons). Juntos formávamos uma bela molécula: o metano. Mas sustentar essa mulherada não era fácil e precisei arrumar um emprego. Fui logo convocado para participar do ‘efeito estufa‘, um movimento que, prometiam, mudaria o mundo.
Mais, depois, não se sabe bem como, tudo mudou… de verdade. Um grupo de moléculas revolucionárias, mas muito bem organizadas, começou um movimento chamado ‘vida’. Eles começaram devagar, se reunindo em cristais de argila e depois começaram a se multiplicar. Eles fundaram uma empresa chamada Biotech, construíram o primeiro DNA e a partir dai, nada nunca mais seria o mesmo. Eram tempos muito empolgantes. Pela primeira vez a Gaia teve de reconhecer que não era a única a comandar as coisas no planeta. Os revolucionários da vida começaram devagar, mas já estavam conseguindo modificar algumas coisas. Eu estava saindo de uma festa em uma fonte termal quando fui assediado por membros do movimento. Eu queria sim ser parte de algo maior e acabei me unindo a eles. Os organismos vivos estavam agindo 3 principais frentes de mudança: a oxigenação dos oceanos, a remoção de CO2 da atmosfera e a formação de reservas de combustíveis fósseis.
Eu era jovem e estava na flor da idade quando tomei uma decisão que mudaria a minha vida para sempre: me separei das meninas para fazer parte de uma macromolécula biológica. Eu era bom em matemática e informática e me deixaram entrar em uma molécula de DNA. Eu era o carbono 4 da guanina e segurava as pontas com meu brother carbono 5. Era uma boa posição, mas não tão privilegiada, já que eram os meus chefes, os nitrogênios, que faziam todas as ligações com as hidrogênios.
Eu não reclamava porque de vez em quando, dávamos a sorte de cair em um gameta e experimentávamos a maior de todas as invenções desses seres vivos: a reprodução sexuada! Vivi em vários organismos e com eles aprendi muito. Posso dizer que hoje sou um ser evoluído!
Nessa época os seres vivos estavam terminando um projeto ambicioso: o primeiro ser vivo inteligente. Eu era parte de um genoma duplicado, que tinha acumulado bastante redundância e era capaz de produzir muitas proteínas. Mas ainda assim, era necessário mais gente pra trabalhar. Eu estava meio cansado de toda aquela atividade intelectual e decidi pegar um pouco no batente. Pedi para ser transferido para uma proteína e me mandaram para trabalhar no heme, com meu primo ferro. Fazia alguns bilhões de anos que a gente não se via e eu mal acreditei na coincidência. Afinal, grande parte do Ferro tinha sido enviado para o centro da Terra, para trabalhar no núcleo. Ninguém sabia se aquilo era uma honra ou um castigo, mas o primo estava feliz na sua hemoglobina. Nossa molécula, o heme, era bastante estável. Um grupo de bons camaradas. E como trabalhávamos bem juntos, nunca nos separavam completamente, ainda que nos mudassem de um organismo para outro, de uma proteína para outra. Vocês sabem né, quantas proteínas possuem o grupamento heme. Um dia fomos trabalhar para um tal de citocromo p450. Era um trabalho bastante especializado.
Eu estava orgulhoso de participar do trabalho que os humanos estavam fazendo. Não chegamos a trabalhar em Adão e Eva, mas pude viver em Cleópatra (por pura sorte saímos de lá antes dela ser mordida pela serpente), em Gengis khan (que bebia horrores), Michelangelo, Darwin e Andy Wahroll (que dava um monte de trabalho com todos os alucinógenos que tomava). Eu estava feliz e jamais havia sentido tristeza ou inveja na vida até que ouvi falar de um primo distante que havia encontrado emprego em uma prótese de silicone. Aquilo deveria ser maravilhoso!
Eu estava vivendo no pulmão de Fidel Castro quando nossa tranqüilidade acabou. Fomos atacados por uma mistura tóxica de um ‘puro’ (os charutos cubanos) que o comandante tinha decidido fumar. Não sei se era porque já tinha fumado tantos, ou se porque nós estávamos mesmo já exaustos. Fomos atacados por espécies reativas de oxigênio por todos os lados e após alguns dias na UTI, ‘El comandante’ tinha se recuperado mas nosso heme tinha sido destruído. E com uma escarrada revolucionária, eu estava na rua, sem direito a indenização mesmo depois de milhões de anos de serviços prestados a vida, sendo os últimos milhares dedicados a humanidade. Eu estava apavorado, mas aquilo ainda era pouco para o que me esperava. O mundo não era mais o mesmo.
Parece que a tal da inteligência que os seres vivos tinham dado aos humanos ainda não estava completa e começou a apresentar sérios problemas de fabricação. Isso que dá ficar soltando versão beta no mercado. A essa altura já estava tarde para fazer um recall e foi inevitável o aparecimento do primeiro sintoma do câncer: a poluição. As manchas negras estavam em todos os cantos. Os humanos tinham descoberto as reservas de petróleo, onde meus tios trabalharam milhões de anos atrás e, como se tivessem sido feitas para eles, decidiram que poderiam queimar tudo a seu bel prazer. Não havia mais um ar que pudesse ser respirado, uma água que estivesse limpa e uma terra pra plantar. Tudo estava contaminado.
Os tais dos humanos escravizaram vários elementos em compostos estranhos chamados apolares. Eram drogas sintéticas, pesticidas, plástico, tudo com um objetivo apenas: criar mais humanos. Eu estava vivendo em um coco de gaivota (ou guano) na costa do pacífico do Peru quando fui escravizado por uma industria de PCB. Tentei fugir mas antes que pudesse escapar fui preso pelos guardas da prisão de Ascarel e enviado para um transformador de energia, na esquina de duas ruas do subúrbio. Tomávamos choques elétricos continuamente até que fomos anistiados por uma lei que proibiu o uso de PCBs. Sem saber o que fazer com os ex-prisioneiros, simplesmente nos deixaram ali, vazando. Foi quando aconteceu algo estranhíssimo, mesmo para mim, um carbono tão viajado. Bateu uma corrente de ar mais quente e nosso composto… começou a voar. Mais que um vôo, era um salto, porque quando chegávamos no alto da atmosfera e a temperatura diminuía, descíamos novamente. Fomos assim, subindo e descendo, até o pólo norte.
Vi minha primeira aurora boreal no mesmo dia em que o peixe onde nosso composto persistente tinha bioacumulado foi comido por um urso polar. Era uma situação insólita. Eu vivia morrendo de frio e todo engordurado. O nosso hospedeiro sofria por causa do efeito do PCB e também com o degelo. Acontece que meu antigo empregador, o efeito estufa, continuava atuando, com novos incentivos dados pelo governo mundial, que vivia uma neurose chamada desenvolvimento econômico. Tudo estava derretendo.
Eu estava muito deprimido e achava que era o fim de tudo. Ai encontrei Gaia em uma geleira. Ela estava tirando umas férias pra esquiar um pouco. Queria aprender Snowboarding antes da próxima era glacial. Perguntei como ela podia estar tão tranqüila com toda aquela bagunça instalada na casa dela. Ela riu. Disse que eu estava ficando velho e perdendo a memória. A Terra já tinha passado por outros maus momentos e tinha sempre se recuperado (ou eu já tinha me esquecido do impacto daquele meteoro 65 milhões de anos atrás?). Enquanto ela dava uma relaxada, tinha pedido a sobrinha dela, evolução, para continuar trabalhando. Esses humanos não durariam muito mais tempo. Talvez mais uma centena de milhares de anos. Mas, afinal, o que era isso para ela, uma respeitável senhora de 4,5 bilhões de anos? O melhor era sentar e esperar essa moda de humano passar.
Ela me lembrou que eu tinha sorte de ser uma elemento ciclável. Mas a energia continuava fluindo e por isso, tudo, mais dia menos dia, passa.
Resolvi dar um tempo com ela ali no ártico. A previsão do tempo era de degelo e disseram que ia ser a maior onda. E eu nunca tinha surfado.
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