A dieta intracelular
Na capa da revista Cool (?!) deste mês, o leitor é convidado a conhecer a ‘Nutrição Intracelular’ e mudar seus conceitos sobre alimentação. Desconfiei. Mas reportagem só não era pior porque, de tão pobre, tornava difícil desdizer qualquer coisa. Então resolvi contar para vocês o que é mesmo importante saber sobre dieta intracelular, que envolve o por quê de alguns de nós sermos mais cheinhos enquanto outros, magros de ruins.
A avassaladora maioria da energia que consumimos todos os dias é gasta para mover íons de um lado para outro da célula.
Uns de dentro para fora e outros de fora para dentro. Esse tráfego é importante para que o corpo possa fazer duas coisas: contrair músculos e enviar estímulos nervosos. Ambas tarefas são feitas por descargas elétricas, geradas quando a célula, que no repouso tem uma carga negativa, recebe uma descarga de íons sódio (Na+), que tem carga positiva, e elevam rapidamente o potencial elétrico da célula, disparando a ação.
Outro íon importante nesse processo é o cálcio (Ca2+). Ele ajuda na contração muscular (fazendo funcionar o motorzinho de actina e miosina que temos na célula, lembra do 2o grau?) e na emissão de vários outros sinais. Mas para isso a célula precisa manter a concentração interna desses íons muito, muito baixa. E isso não é fácil. Eu poderia levar algum tempo explicando as razões, mas vou pedir apenas que vocês acreditem em mim. A membrana plasmática é bastante impermeável a íons e eles conseguem atravessá-la apenas em alguns ‘portões’, proteínas especializadas como a calcio-ATPase. Essa enzima fica na membrana plasmática e na membrana sarcoplasmática. O retículo sarcoplasmático é um ‘saco’ dentro dá célula onde armazenamos os íons de cálcio para usarmos quando precisarmos. O trabalho da enzima é colocar os íons para dentro do saco ou para fora da célula, garantindo que o citoplasma fique livre deles, até o momento em que se tornem necessários. Mas a enzima não pode trabalhar de graça. Para jogar um íon onde já exite mais daquele íon (dentro do saco, por exemplo) ela precisa lutar contra um gradiente elétrico (as cargas positivas que já estão lá) e químico (os outros íons cálcio que estão lá) ela precisa de energia, que vem do ATP (aha… por isso o nome ATPase – “aquela que quebra ATP para funcionar”).
Eu sei, até agora não falei nada de dieta nenhuma, e você que está no blog pela primeira vez já está se sentindo enganado com o título, mas confie em mim, eu vou chegar lá. Agora, não espere receita nenhuma.
Bom, quando a cálcio-ATPase acumula um monte de íons calcio dentro do sarcoplasma, ela cria um gradiente osmótico. Isso quer dizer que toda a energia da quebra do ATP gasta para colocar o cálcio pra dentro do saco não foi exatamente gasta. Parte dela continua armazenada ali, nesse gradiente osmótico. Isso porque, se abrirmos a ‘porteira’ da ATPase, o cáclio vai, por diferença de pressão osmótica (tem mais cálcio dentro do saco do que fora), atravessar o canal da enzima em direção so citoplasma.
Nesse momento, a enzima tende a funcionar na direção oposta. Ao invéz de gastar, ela usa a energia desse gradiente osmótico para sintetizar ATP. É incrível, não é mesmo?!
O que?! Você não acha incrível? E ainda me acha meio doido por achar que isso é interessantíssimo? Bom, agora é que eu vou soltar a bomba, então vamos ver se você ainda vai achar isso inútil no final do texto.
As vezes, quando a célula está em repouso, e o retículo já está cheio de íons cálcio, a ATPase abre a sua porteira, e deixa alguns íons passarem para o outro lado. Quando isso acontece, algumas vezes, a energia que é gerada na passagem não é usada para produzir novos ATP. Ao invés, é usada para produzir calor.
Sim, calor. Aquele mesmo, que ajuda a manter nosso corpo quente.
Então vamos lá: o que a gente come, de uma forma ou de outra, acaba virando ATP, que é a moeda energética do corpo e da célula. Boa parte dessa energia é gasta para manter a célula com pouco sódio e cálcio. Isso significa bombear, gastando ATP, esses íons para locais específicos, onde eles ficam acumulados. A energia desse ATP não é totalmente perdida, já que parte dela se transforma em energia osmótica (íons acumulados), que pode depois ser convertida novamente em ATP, que por sua vez pode servir para a célula fazer qualquer outra coisa, inclusive bombear mais cálcio para dentro do armazem. Mas quando ao invés disso a bomba de ATP produz calor, esse calor depois não pode ser reconvertido em mais nada. Ele sim, depois de esquentar o corpo, se perde. Essa sim é energia gasta. Bem gasta, porque nos deixa o coração aquecido em noites de inverno, mas gasta.
Então vejamos, quando a célula já está bem de energia, ela pode ficar brincando com o excesso, passando a energia de uma forma para outra, de ATP para acúmulo de cálcio e de volta para ATP, disperdiçando bem pouquinho, ou então queimar ela, literalmente, produzindo calor. O que determina isso? Não sei, só sei que é assim.
Mas sei que isso é diferente em cada pessoa. Minhas células decidem queimar de um jeito e as suas de outro. Quando como pizza entro no looping do cálcio-ATP, enquanto meu primo paulista, que é magrinho, torram tudo em calor.
É claro que não dá pra escrever isso na revista Cool. Já pensou, ninguém mais poderia ser enganado com uma dieta qualquer, sabendo que o problema estava nas suas cálcio-ATPases que preferem economizar ATP ao invés de queimar tudo. E que há muito pouco que ele/ela posam fazer.