O sexo dos anjos

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Há um tempo atrás escrevi um artigo sobre a importância do ambiente hormonal durante a gestação na determinação da sexualidade (e não do sexo) de um indivíduo.
A idéia de que o corpo humano é, por padrão, feminino e doses de testosterona (primeiro no utero e depois na adolescência) o masculinizam incomodou muita gente (especialmente meu pai). Todo mundo sabe que homens são XY e mulheres são XX, e que os ‘genes’ vêm antes do ‘corpo’. Então como poderia um corpo padrão feminino se desenvolver, mesmo que por um tempo (até receber as doses de hormônio masculinizante), a partir de células com os cromossomos XY?
A resposta está publicada em uma revisão sobre o tema que saiu esse ano e que, influenciada pela polêmica da atleta sul africana Caster Semenya, também foi publicada no The Scientist desta semana.
A natureza tem muitas, muitas formas de determinar o sexo de um indivíduo. E essas formas são tão variadas quanto os organismos em si. Em alguns peixes (trutas por exemplo) se você enriquecer a alimentação com um extrato de gonada masculina, todas as fêmeas viram machos. Na tartaruga Trachemys scripta, aquela que alguns de vocês podem ter num aquário em casa, é a temperatura que determina o sexo: se os ovos forem incubados a 26oC, todo os filhotes serão machos; se forem incubados a 31oC, todos os filhotes serão fêmeas. Em temperaturas intermediárias temos um pouco de um e outro.
Não bastasse a estranheza dessas curiosas formas de escolher o sexo da próxima geração, ainda há a estranheza biológica evolutiva. Explico: coisas básicas na natureza dos seres vivos (por exemplo os genes que formam o coração), e o sexo é uma delas, têm genes semelhantes, independentemente de você ser um peixe, uma tartaruga ou um humano (as vezes guardamos semelhanças até mesmo com as bactérias). Mas no sexo é tudo diferente. Pelo menos guardamos semelhança com os outros mamíferos.
Ainda há outra estranheza biológica. Durante o nosso desenvolvimento, passamos por um estágio onde todos os nossos órgãos ainda são pré-órgãos. Ainda não estão completos, mas também não podem se tornar mais nada além do que já foi determinado para ele. Então um pré-pulmão ainda não é um pulmão, mas não tem outra opção a não ser se tornar um pulmão. A mesma coisa para um pré-rim ou um pré-coração. A exceção é, novamente, a gonada: uma pré-gonada pode virar tanto testículos quanto ovários. E agora vem a novidade: isso (virar gonada ou testículo) pode acontecer tanto em um indivíduo XX como em um XY.
Não, não se perca, porque eu ainda vou entrar na parte complicada dos genes.
Então, a pré-gonada é um tipo de ‘gonada-tronco’ e ainda pode virar testículo ou ovário. E quem vai determinar isso são os genes. Mais especificmente os genes SRY, SOX9, FGF9 e WNT4. Calma, isso não são formulas matemáticas pra você ficar assustado. Na verdade SRY é a sigla em inglês para ‘região determinadora do sexo no cromossomo Y’ (Sex-determining Region Y); SOX9 é um pouco mais complicado, mas resumindo é a sigla de SRY BOX, ou seja, uma família de genes que se ligam em SRY; FGF9 é fácil de novo, já que também é uma sigla em inglês para “fator de crescimento de fibroblastos” (que é um tipo de célula do organismo) e WNT4… bom, essa dai não é uma sigla intuitiva e o nome tem a ver com um vírus causador de tumores de mama em camundongos, por isso vamos deixar como está mesmo.
Mas voltando aos genes, o primeiro a ser descoberto foi SRY lá na década de 90. É um gene que está apenas no cromossomo Y e, adivinhem, é a expressão dele que transforma a ‘mulher padrão’ em homem. Os pesquisadores fizeram um monte de experimentos bacanas transferindo o SRY para um dos X de um organismo XX que desenvolvia testículos, e quando tiravam o SRY do cromossomo Y de um organismo XY, ele desenvolvia ovários. Depois descobriram que a coisa era um pouco mais complexa, mas nada complicado. A pré-gonada possui de um lado FGF9 e SOX9 e do outro WNT4. Ambos os genes são produzidos (expressos é a expressão correta) na mesma quantidade. Se você for XX e nada de errado acontecer, então em algum momento o produto de WNT4 acumula em maior quantidade e você desenvolve ovários. Já se você for XY, na hora que SRY começar a produzir a sua proteína, ela dá uma turbinada no SOX9, que por sua vez turbina o FGF9, forçando a balança da pré-gonada e gerando testículos.
Então, qual o sexo dos anjos? Não importa, porque com um pouco, realmente só um pouco de manipulação gênica, podemos escolher o sexo que quisermos, independente da genética. Veja que eu falo gênica e genética. Uma manipulação genética levaria todas as células de um organismo a serem de um ‘jeito’ ou de outro. Mas na verdade se ligarmos ou desligarmos SRY durante um período de tempo do desenvolvimento embrionário (na hora em que a pré-gonada está para virar gonada), você poderá escolher um menino ou menina independente do genótipo XX ou XY.
Vai por mim, se bobear, dá menos trabalho do que os outros truques, simpatias e artimanhas que eu já ouvi para escolher o sexo da criança.

BARSKE, L., & CAPEL, B. (2008). Blurring the edges in vertebrate sex determination Current Opinion in Genetics & Development, 18 (6), 499-505 DOI: 10.1016/j.gde.2008.11.004

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