A invenção da morte

cyanobacteria2_brmma.jpgResearchBlogging.org

Quando a Nina Simone diz “Ev’rytime we say goodbye, I die a little” (na verdade as palavras são de Cole Porter, mas ficam muito melhores na voz da Nina, não é?!) é uma metáfora, mas não está longe da realidade. A morte é tão complicada quanto a vida. Ela é certa, mas é difícil de determinar e de prever. Mais ainda de explicar.

A morte é uma variável discreta (morreu/não morreu) e não contínua (vivo/pouco morto/muito morto/ morto). E a morte é definitiva. Então o que é que está dizendo a Nina?
É que a morte pode acontecer em escalas diferentes. Assim como temos diferentes níveis de organização biológica (célula, tecido, órgão, organismo) para o qual podemos atribuir vida, também podemos dizer que houve morte. De certa forma, até mesmo a extinção é a morte de uma espécie.
A morte é sempre a mesma, mas não terá o mesmo significado, ou as mesmas conseqüências, dependendo do nível em que acontece.
A morte celular, que os cientistas chamam de apoptose, é um dos principais mecanismos da vida. Sem ela não poderíamos moldar as partes do nosso corpo durante o desenvolvimento. Da mesma forma que um escultor tira um pouco de argila daqui e coloca ali, os genes controlam ‘mãos invisíveis’, que tiram as células de um lugar para que possam aparecer outras células em outro. Uma das ‘mãos’, a que tira a argila, são as proteínas que se chamam ‘caspazes’. Elas funcionam em reações em cadeia, que chamamos de cascatas, apesar de se parecerem muito mais com aquelas cascatas de Champagne (onde os copos estão um em cima do outro fazendo uma torre e ao transbordar o copo de cima, você enche os que estão embaixo) do que com uma cachoeira. Quando chega um sinal dizendo que aquela célula precisa sair dali, as caspazes recebem esse sinal e disparam a cascata de reações que culmina na fragmentação de proteínas, material genético e, eventualmente, da morte da célula. Quando então a célula morre e a membrana também se fragmenta, são liberados sinais que servem para outras células fazerem o mesmo.
Abre parênteses. A “mão que constrói”, seriam proteínas que controlam o ciclo celular, a divisão de uma célula em duas (que viram quatro, e depois oito…), mas isso é uma outra história. Fecha parênteses.
A morte celular também é a nossa principal defesa contra os tumores. Se uma célula sofre uma mutação, um dano no seu DNA, e esse dano não pode ser consertado, então as caspazes entram novamente em ação, e levam a célula maligna para a forca.
Então, em nível celular, a morte é boa? Poderíamos dizer que sim. No mínimo irrelevante, porque não há perda de material genético. Todas as células do nosso corpo tem o mesmo DNA (ou quase). Se uma morre, ainda que o seu DNA não permaneça, as células vizinhas tem o mesmo material genético. E pra vida, é isso o que importa.
E aqui você, leitor, pode ficar zangado comigo, porque o que eu vou dizer é meio ‘remédio amargo’: duro de engolir. Mas para a natureza, quem você é e todas as coisas legais que você fez na vida, mesmo se você tiver sido Shakespeare ou Mozart, não importam. Porque tudo que você já fez, já passou, e o que importa, é o que está por vir. E para lidar com o que está por vir, você precisa de genes, de genes novos. O que importa são os genes que você deixa para a sua próxima geração. Para arrumar genes novos, você precisa arrumar um(a) parceiro(a) pra trocar genes, o que os cientistas chamam de reprodução sexuada, mas você pode conhecer por vários outros nomes, nem tão científicos assim. Sem um parceiro(a), a gente não consegue reproduzir. Até porque, não valeria a pena, mas essa também é uma outra história. O que importa dessa discussão aqui é que sob está ótica, a célula em si, mesmo organismo organismo como um todo, não é importante: o importante são os genes dentro dele.
Bom, e parece que é isso mesmo. Desde de que Dawkins publicou “O gene egoísta” em 1976 essa é a teoria dominante. Nossos organismos são apenas máquinas para propagar nossos genes.
Então a morte, aquela que importaria, é a morte do organismo, porque ai seus genes se perderiam, pelo menos se ele não conseguisse reproduzir primeiro. Se morrem apenas algumas células, tudo bem, porque as outras continuam tendo os seus genes. Você não morre ‘um pouco’, mas só algumas partes de você morrem. E isso faz de você quem você é.
Mas nesse ponto surge uma pergunta inevitável, ainda que estejamos sempre tão preocupados com a morte que nunca paremos realmente para pensar na lógica dela: porque se dar ao trabalho de reproduzir para ‘escapar’ da morte, se poderíamos apenas sobreviver?
Abre parênteses: Sim, porque dá um trabalhão reproduzir. Você não pensa no trabalho que dá porque não é a evolução trabalhando milhões de anos a fio para desenvolver o processo, e porque, no final das contas, reproduzir é gostoso. Mas você já pensou que é gostoso simplesmente para que você se dê ao trabalho? Essa história também vai ficar para outro dia, porque agora eu tenho que voltar para a minha pergunta original. Fecha parênteses.
A teoria do gene egoísta não explica porque nós morremos, ou porque devemos morre, ou mesmo porque existe morte. Mas deu a pista.
Os genes usam seus organismos para competirem uns com os outros. Desenham organismos que sejam eficientes para competir por abrigo, alimento, parceiros reprodutivos e ingressos para a final do campeonato. Mas essa não é a única forma dos genes competirem uns com os outros. Eles podem competir diretamente! Essa competição pode se dar de várias formas, mas hoje só vamos falar de uma, a mais importante, aquela com um material genético parasito, que nem organismo tem: os Vírus.
A a morte é uma brilhante solução para um problema complexo: os parasitas.
Abre parênteses, de novo: Vou ter que deixar pra falar disso de novo outro dia, e peço desculpas a vocês por estar deixando tantas coisas de lado hoje, mas o meu espaço, e o tempo e a paciência de vocês, é curto, e eu preciso chegar no meu destino. Fecha parênteses.
Não há como vencer a competição com os parasitas sobrevivendo, por isso a gente morre, deixando o corpo cheio de parasitas pra lá, e criando um novo corpo para o nosso material genético (com a ajuda de um parceiro(a) de alta qualidade, e de preferência um sistema imune diferente do nosso). Um processo muito estudado na física, chamado ‘resiliência‘. O furo na teoria estava no fato dessas coisas todas que eu falei: apoptose, caspazes, modelagem no desenvolvimento, resiliência… serem encontrados apenas em organismos superiores: os eucariotos. Mas os vírus são muito mais antigos, então porque a morte teria aparecido só nos eucariotos? Mas ela, a senhora com a foice na mão, é mais antiga que os eucariotos, é foi isso que Nick Lane, um dos descobridores, conta no artigo anexo.
Os organismos mais antigos da Terra, as cianobactérias, cujos fósseis remontam há 3,8 bilhões de anos, possuem um grupo de proteínas chamadas metacaspazes, disparam processos de apoptose em situações de estresse, principalmente durante infecções virais. Antes dos vírus se reproduzirem e romperem a célula liberando mais partículas virais para contaminar outras células, a cianobactéria se mata. Um ato nobre, vocês não acham? Mas muito antinatural. Na natureza não tem essa coisa de ‘ser bonzinho’ e ‘não cobiçar a mulher do próximo’. É cada um por si! E um organismo unicelular não pode fazer como a Nina Simone e ‘morrer só um pouco’. Então como explicar um organismo unicelular que ativa morte celular programada? A explicação de Lane está na alta redundância do pool genético de uma floração de fito e bacterioplancton. As cianobactérias são unicelulares, mas nunca estão sozinhas. Quando as condições ambientais são favoráveis, elas se reproduzem muito, em um curto intervalo de tempo, produzindo uma população enorme, um ‘bloom’, ou floração. Por isso, os organismos nesses blooms são praticamente clones, e, assim, da mesma forma que uma célula em um organismo multicelular entra em apoptose para que o organismo se livre de um câncer, uma cianobactéria entra em morte celular para livrar a floração de uma virose. A célula morre, mas a floração morre só um pouquinho.
A morte pode não ser definitiva, dependendo da escala em que observamos. Mas o problema de se morrer um pouquinho, é que pode-se continuar morrendo muitas vezes, por muito tempo. E isso não é bom.

Lane, N. (2008). Marine microbiology: Origins of Death Nature, 453 (7195), 583-585 DOI: 10.1038/453583a

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM