A beleza nas letras
“O Australopithecus sp. usava ferramentas, o H. habilis usava utensílios, o H. erectus começou a falar e construir; o H. sapiens, podia raciocinar de forma complexa. Acredita-se que há 100.000 anos, o Homo sapiens saiu da África para dominar o mundo, começando pela europa. No registro fóssil, encontram-se nessa mesma época, pedras que foram trabalhadas excessivamente. Mais que o necessário para que fossem úteis. Foram aprimoradas para ficarem… bonitas! Pela primeira vez o homem desenvolve a capacidade de projetar e confere concretude a fantasia, transformando-a em criatividade. O inicio de uma etapa que levou a organização social e a política.”
O texto de Domenico de Masi mostra como nosso senso de estética é ancestral, anterior mesmo a nossa fala (com a qual se desenvolveu muito da nossa inteligência). No paleolítico, a expectativa de vida era de 15 anos. Dor, esforço, intempéries, pragas, fome e doenças eram o dia-a-dia do homo sapiens. A vida não era fácil e os homens conviviam com a morte dos entes queridos. Nos vivemos 99% do nosso tempo de vida como espécie nesse estilo de vida. A arte e a religião eram as únicas formas de consolo da dura vida terrestre.
A beleza tem um papel preponderante na vida de todos nós. Mais até do que gostaríamos que tivesse. Mais do que nos orgulhamos que tenha. Vivemos em uma época em que apreciar o belo é politicamente incorreto, mas ao mesmo tempo, nunca buscamos tanto o belo, nunca a moda foi tão poderosa e o consumo tão forte. Nosso senso de estética se aprimora a medida que… A medida que o que? É provável que a medida que ficamos mais inteligentes! Quanto mais inteligente você é, e você fica, mais você admira o belo.
Não, a inteligência não substitui a beleza. A inteligência é sexy, mas sem a beleza, ela é capenga. Na verdade, a inteligência quase atrapalha.
Veja, se você é bonito, seus filhos serão bonitos. Se você é inteligente… não há nenhuma garantia que seus filhos serão inteligentes. Simples assim. Poderoso assim. Quase insuportável.
Sempre buscamos identificar a beleza. O ‘mais’ bonito. Tanto que temos ‘instintos’ de beleza: reconhecemos cor, brilho, simetria, tamanho… tudo como sinal de beleza.
Pelo nosso senso de estética, a beleza só pela beleza já seria suficiente, mas podemos usá-la também para coisas úteis. A beleza serve para avaliarmos saúde (ou você já viu alguém doente bonito?) e podemos usar a beleza para… ler! Duvida?! Continue comigo.
Nós começamos a escrever mais ou menos há 5.000 anos e ainda que pareça óbvia a associação entre ler e escrever, ela não é. É provavel que a identificação visual dos símbolos que chamamos de letras seja mais difícil para o cérebro do que a realização dos precisos movimentos manuais que gravam o símbolo em uma superfície (como a pedra ou o papel) com o auxílio de um instrumento (como o formão ou a caneta). A linguagem, nós aprendemos com Noam Chomsky, é bem anterior a tudo isso. Tanto que está gravada no nosso cérebro como um instinto, tendo areas bem reservadas para ela. O sistema visual é mais antigo ainda, análogo e homólogo a muitos outros sistemas visuais na natureza, e também tem áreas reservadas no cérebro. É a combinação desses dois sistemas que nos permite… ler. O sistema verbal transforma as letras em sons pronunciáveis e dá acesso ao conhecimento de palavras similares, para que possamos inferir significado. O sistema visual Identifica as letras de forma eficiente. Mas qual parte do sistema visual?
Uma variação da nossa região de reconhecimento de faces! O VMFA sigla do inglês Visual Word Form Area – ‘área da formação visual das palavras’, é uma região do ‘giro fusiforme esquerdo’, na parte central do sistema visual (o córtex occipto temporal) responsável pelo reconhecimento dos simbolos que compõe as letras e palavras.
Mas veja, porque nós desenvolvemos um sistema de reconhecimento de rostos, cujo principal atributo, um dos na verdade, é a beleza, podemos ler. Porque queremos reconhecer o belo, podemos nos comunicar. Que bonito!
Mas aprendemos a ler não é o único benefício dessa associação. Os benefícios neurológicos vão mais além: “A aquisição da leitura leva a melhor codificação fonológica através da influência das representações ortográficas.” diz a pesquisadora Dehaene. Isso quer dizer que quem lê, fala melhor. E evidências comportamentais mostram que as representações ortográficas da palavra são ativadas pela fala. Aprender a ler aprimora a fala e a fala melhora o reconhecimento dos simbolos da leitura, em um mecanismo de retroalimentação que termina por nos deixar mais espertos. As experiências mostram que vários tipos de efeitos ortográficos no processamento da fala, como o reconhecimento de rimas consistentes*, são afetados pelo letramento. O feedback direto da ortografia na fonologia é provavelmente responsável pelas modificações das respostas cerebrais à linguagem falada no sistema visual.
E ai uma cascata de efeitos acontecem. Basicamente nossa percepção se aprimora com a aprendizagem porque cria modificações nos mapas corticais, como campos de recepção e curvas de frequência mais precisas nos neurônios sensoriais, que se correlacionam positivamente com melhoras no comportamento. Percebemos, vemos melhor o mundo a nossa volta, porque aprendemos a ler.
E para que queremos uma percepção mais aguçada do que para perceber o belo? Vê-lo ainda mais belo?
É provável que haja outras razões, mas as minhas terminam por aqui.
* Céu e Véu forma uma rima consistente. Céu e Mel formam uma rima inconsistente.
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Dehaene, S., Pegado, F., Braga, L., Ventura, P., Filho, G., Jobert, A., Dehaene-Lambertz, G., Kolinsky, R., Morais, J., & Cohen, L. (2010). How Learning to Read Changes the Cortical Networks for Vision and Language Science, 330 (6009), 1359-1364 DOI: 10.1126/science.1194140