Acromegalia II

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Desenho de máscara mortuária escavada no Peru com traços de acromegalia

Muitos diagnósticos em medicina são feitos através do método de reconhecimento de padrões. O médico olha para um paciente e, ao conseguir subtrair as diferenças, rearranja as similaridades em um formato de tal modo a poder compará-lo com outro já previamente visto. Quando a comparação faz sentido, está feito o diagnóstico. Parece simples, mas depende de experiência prévia e principalmente, como têm mostrado estudos recentes, da capacidade de rearranjar as informações em múltiplos formatos, verificar sua coerência, e compará-las com inúmeros diagnósticos diferenciais. Os diagnósticos diferenciais são uma lista de patologias cabíveis no caso específico. Mais que erudição médica é uma forma do médico manter outras portas abertas, um tipo de plano B, caso o diagnóstico no qual ele aposta, não se confirme em avaliações posteriores.

Todas as doenças que dão sinais e/ou deformidades mais ou menos características são afeitas ao diagnóstico por reconhecimento de padrão. Principalmente, quando a deformidade é facial. Há exemplos clássicos: hanseníase (antigamente conhecida como lepra), neurofibromatose ou doença de von Recklinghausen (a doença do homem-elefante) e, claro, a acromegalia (ver figura). No caso específico desta última, meu calvário, os diagnósticos diferenciais são extremamente escassos. Na verdade, existe apenas um diagnóstico diferencial para a acromegalia, o que seria uma grande notícia se esse diagnóstico não se constituísse propriamente de um estado patológico. Na verdade, nem uma doença seria. Seria apenas uma constatação. O  reconhecimento de padrão da acromegalia esbarra em apenas um único “diagnóstico” diferencial: a feiúra. Um tipo específico de feiúra de traços grosseiros e primitivos em total oposição ao padrão vigente de beleza. É um grande desafio despir-se de todo tipo de preconceitos, em especial os machistas, infiltrados em suas visões de mundo e utilizar conhecimentos isentos de juízos morais para tomar decisões puramente técnicas!

Eu fazia parte do staff clínico de um hospital universitário que atendia a comunidade acadêmica e seus funcionários. Nas tardes de terça-feira, fui escalado para um tipo de pronto-atendimento voltado exclusivamente à comunidade universitária. Era um atendimento de problemas simples: gripes, infecções urinárias, amidalites, crises de pânico e coisas afins. Numa tarde nublada, adentra a sala de atendimento uma secretária de um departamento com queixas bastante vagas. Cefaléia, dores pelo corpo, etc. Era uma moça de uns trinta anos. Pele branca, cabelo curtinho, óculos. A face coberta de espinhas. Um pouco gordinha e baixa. Uma moça feia. Os padrões começaram a borbulhar como água fervente na minha cabeça. Os sinais eram muito sutis, examinei as mãos, fiz algumas perguntas. Não estava certo do diagnóstico mas no final da consulta arrisquei: “Acho que você tem um pequeno tumor no cérebro. Essas alterações são compatíveis com acromegalia. Precisamos fazer alguns exames e uma tomografia”. Diferentemente de meu outro paciente, ela ficou em silêncio, ouviu tudo que eu tinha para dizer, pegou todas as requisições e disse que assim que os exames ficassem prontos, retornaria.

Um ano após esse episódio, não tinha tido nenhuma notícia da minha paciente. Estava em um plantão noturno no pronto-socorro geral, ocupadíssimo, quando vi uma figura conhecida, que rapidamente se esgueirou por um dos corredores e desapareceu. Corri atrás e vi que era a paciente em questão. Chamei-a e após mostrar-me surpreso por vê-la tão bem, perguntei por que ela não havia retornado. Sem conseguir me olhar de frente e com lágrimas nos olhos, contou a seguinte história:

“Doutor, saí da consulta naquela tarde completamente arrasada. Tinha de escolher entre me conformar em ser apenas uma mulher feia ou ter um tumor no cérebro! Não fui trabalhar no dia seguinte e entrei em profunda depressão. Tenho amigos médicos e numa reunião, um colega me perguntou o porquê de meu estado e eu contei a história. Ele ficou revoltadíssimo e disse que nunca um médico deveria proceder da forma como você procedeu. Ele e outros amigos me incentivaram a mover um processo. Procurei um advogado. Juntei suas requisições com a hipótese de acromegalia, recibos de consultas com psiquiatras e psicólogos, receitas de antidepressivos, dias de trabalho perdidos e começamos a montar a documentação.”

Todo o processo seria baseado em danos morais pelo fato de a paciente ter sido exposta a um diagnóstico inexistente com enormes prejuízos psicológicos e financeiros. Faltava apenas a prova de que a doença não existia. Continuou: “Fui orientada a procurar um neurologista e me encaminhei ao Hospital das Clínicas. Lá fiz uma ressonância.” Eu estava desesperado.

“A ressonância, porém, mostrou um microadenoma de hipófise! Minha vida virou de cabeça para baixo. Entrei em parafuso. Consegui superar tudo com ajuda da família e dos amigos. Fui operada há 6 meses e estou bem”. Eu estava estupefato. Quando pensei no perigo que passei devido ao excesso de confiança; nos prejuízos que um processo poderia causar à minha curta carreira profissional; no desconforto desnecessário que causei à paciente; na revolta que gerou toda uma mobilização contra minha pessoa, pouquíssimo simpática ao círculo de amizade da paciente – o diagnóstico correto ficou num plano muito, muito secundário. Ela abriu a bolsa e me deu uma carta que carregava com ela desde que se descobrira doente. Era uma carta de agradecimento, um grande obrigado. Eu disse que quem deveria agradecer era evidentemente, eu. Por que? Porque a lição estava aprendida: o exercício da medicina é algo muito maior que diagnósticos difíceis e tratamentos corretos.

Tenho essa carta comigo, até hoje. Para eventuais períodos de déficit de memória.

Michael Crichton

Michael Crichton 1942 – 2008
Fã da série Emergency Room (ER), fiquei triste com a morte precoce de Michael Crichton (66 anos!). Médico e excelente escritor, teve o mérito de reavivar o interesse que sempre houve pela medicina e pelos médicos. A série era perfeita nas condutas e bastante atualizada. Passava uma idéia da pressão sofrida pelos médicos ao trabalharem em condições de extremo estresse. E também sua humanidade. Guardadas as devidas proporções, muito do que se via por lá poderia ser transposto para nosso país. O sistema de hierarquia em especial me chamava muita atenção. Também o modo como os médicos trabalham com enfermeiras competentes. Existem enfermeiras como aquelas no Brasil. Trabalhei com várias. É simplesmente fantástico. Para captar aquilo tudo, Crichton só pode ter trabalhado em vários plantões. Essa série vai deixar saudade, como M.A.S.H. Talvez porque também já tenha trabalhado com alguns Carters e Hawkeyes.

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Vacina para Gripe

Time Trends in Influenza Vaccine Coverage and Influenza-Related Mortality in People 65 Years and Older in the US, Based on Two Death Categories(A) All-cause mortality. (B) Pneumonia and influenza mortality. The black curve illustrates observed monthly mortality rates, the purple curve represents a monthly model baseline above which mortality is attributed to influenza [1], and the green curve represents trends in seasonal vaccine coverage in people 65 years and older. Red shaded areas represent seasonal estimates of excess mortality attributed to influenza (observed over baseline), while blue areas represent non-influenza mortality. Red stars indicate epidemic seasons dominated by the more severe A/H3N2 influenza viruses [10]. Grey arrows indicate the two periods used in Kwong et al.’s comparative study to evaluate the benefits of universal immunization in Ontario, Canada (1997–2000 and 2000–2004) [9]. Note the less frequent circulation of severe A/H3N2 viruses in the second part of Kwong et al.’s study period, 2000–2004. Trends in influenza burden estimates for these periods are provided for the US and Ontario in Table 1.

Dona Lourdes tem 80 anos e um metro e meio. Ativa, sobe na maca e dá um tapa carinhoso na minha mão que se extende para auxiliá-la. Sentada, com os olhos vivos, obedece prontamente a todas as solicitações que faço. Desce e dispara: “Dr, estou bem! Não disse?!” De volta à mesa, começo a escrever e a falar: “Final de Março, começo de Abril, então esse ano vamos tomar vacina para gripe?” Ela inverte as sobrancelhas em reprovação e sempre dá a mesma resposta todo ano: “Essa vacina não serve para nada. Minhas amigas que tomaram, tiveram gripe. A Irene teve pneumonia, imagine! Deus me livre. Eu não tomo, nem de graça!” A racionalidade do meu discurso é ineficaz. Números e porcentagens não a emocionam. Vencido, entrego a renovação da receita e peço para marcar o retorno.
Passam alguns meses e sai um artigo na Plos: estudos recentes mostram que, apesar da cobertura vacinal ter aumentado nos últimos anos, a morbidade e a mortalidade da influenza continua alta. No caso de pacientes maiores que 65 anos, vejamos o que diz:
“Seniors suffer about 90% of the influenza seasonal mortality burden, and rates of hospitalization and death are increasing as the population ages [1]. Studies of national trends in the United States and Italy showed that even after adjusting for population aging and pathogenicity of circulating influenza viruses, vaccine uptake in seniors was not associated with a decline in influenza-related mortality ([2,3]; Figure 1). These disappointing experiences can be explained by the phenomenon of immune senescence, whereby immune response to vaccines declines in the last decades of life [4]. These results—along with a growing understanding that the expected effectiveness of vaccination had been greatly overestimated in seniors [5,6]—have fueled debate over the best strategy to protect high-risk populations [1,7].”
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil utiliza a vacina contra influenza desde 1999 quando foi realizada a primeira campanha de vacinação contra gripe, inicialmente na população acima de 65 anos e a partir de 2000 na população de 60 anos ou mais. Uma redução no número de hospitalizações por complicações decorrentes já foi observado em avaliações preliminares.
Não contei nada para Dona Lourdes ainda. A próxima consulta é mês que vem.

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Acromegalia


Ressonância de paciente com Acromegalia – from Wikipedia under permission

Eu estava no terceiro ano de residência. Um amigo me convidou para trabalhar em um consultório que atendia bons convênios. Fui, meio a contragosto. Não era muito afeito a atender pacientes ambulatoriais. Gostava da emoção dos pronto-socorros e UTIs. Comecei a atender e gostei. Fazia bom vínculo com os pacientes a ponto da gerente da clínica me elogiar: “Você tem jeito para coisa!” Minha clientela foi crescendo.
Um dia, chegou ao consultório um senhor, por volta de 50 anos, de origem nipônica, com queixas bastante vagas. Falava de dores musculares, dores de cabeça, cansaço. Interrompi seu discurso após tê-lo observado por alguns minutos e desferi um diagnóstico: Acromegalia. A acromegalia é uma doença endocrinológica causada por tumores produtores de hormônio do crescimento (GH), obviamente muito além das necessidades do organismo. O que ocorre com o organismo depende da fase na qual a doença se manifesta. Se antes de fechar as epífises de crescimento nos ossos (antes, portanto, da puberdade) o indivíduo cresce muito e temos o quadro de gigantismo, comum em jogadores de basquete. Se depois de fechar as epífises o indivíduo manifesta a doença, já não vai crescer em altura. Suas extremidades é que vão: orelhas, supercílios, queixo, pés e mãos mostram variados graus de hipertrofia. O rosto se modifica muito lentamente e normalmente as pessoas não se dão conta disso. O diagnóstico de acromegalia normalmente leva em média, 10 anos para ser feito. É uma doença rara. A cada ano, surge um caso para cada 1 milhão de pessoas. Na cidade de São Paulo, deveriam ser feitos mais ou menos 5 novos diagnósticos anualmente. Um deles caiu no meu consultório.
Apesar de sutis, as mudanças em meu paciente eram mais ou menos evidentes. Pedi uma foto antiga. Ele me deu sua identidade e eu disse: “Acho que você tem um pequeno tumor na hipófise, glândula localizada na base do cérebro. Precisamos fazer um exame de imagem”. O paciente quase caiu da cadeira. Entre perplexo e desesperado, fez todos os exames que pedi e a cada resultado, o diagnóstico se confirmava. Ele, incrédulo, descobriu que tinha hipertrofia miocárdica, leve diabetes, alterações na tireóide e pólipos intestinais. Todas alterações que eu previra de forma precisa e algo arrogante.
Indiquei uma cirurgia e um neurocirurgião capaz de realizá-la. Ele optou por outro profissional. Acabou tendo várias complicações e me chamou para acompanhá-lo no hospital. Na avaliação, encontrei falhas no procedimento cirúrgico e chamei a atenção para elas em anotações no prontuário. Arrumei uma bela confusão com a equipe cirúrgica, entretanto quando foram investigar minha hipótese: eu estava certo de novo! Corrigiram o erro e o paciente obteve alta bem.
Algum tempo depois, publiquei o caso em uma revista brasileira. Fui elogiado, bajulado. Minha auto-confiança como diagnosticador aumentou e de emergencista, passei também a atuar no consultório.
Esse caso me trouxe muitos ensinamentos médicos mas nenhum ensinamento ético. Anos mais tarde, a acromegalia iria me ensinar uma lição definitiva.