O Fantasma de Samuel Cartwright

Samuel A. Cartwright era um médico criativo. Trabalhava no estado de Louisiana, sul dos Estados Unidos em meados do século XIX. Deu contribuições importantes ao tratamento da febre amarela e do cólera. Quando chamado pelos senhores a examinar escravos doentes cunhou alguns termos que, como tantos outros em medicina, caíram completamente no esquecimento. Quem saberia dizer o que é drapetomania? Ou dysaethesia aethiopica?
Estudou em importantes faculdades de medicina da época e trabalhou com médicos famosos, e apesar de sua formação humanista, era defensor do escravismo. É bom que se diga, numa época em que ser escravagista não era nenhum crime. Ser escravagista era mais uma defesa de um modo de produção, que um questão de humanismo, por mais incrível que isso possa parecer a nós, hoje em dia.
A drapetomania (do grego drapetes, escravo) foi o termo criado para denominar uma estranha doença psiquiátrica que acometia os escravos da época: um irresistível e inexplicável desejo de fugir de seus senhores! A dysaethesia aethiopica (disestesia = alteração da sensibilidade) “descrita” em 1851 também como uma doença psiquiátrica, foi proposta como a explicação científica para a preguiça e falta de vontade de trabalhar, muito comum nos escravos e com nítidas características contagiosas! Encontrada exclusivamente em negros, era um tipo de insensibilidade da pele que embotava as faculdades mentais. Dada sua “fisiopatologia” era “curada” com unguentos sobre a pele, seguidos de açoite, para estimular a sensibilidade cutânea. Quase o mesmo tratamento era proposto para a drapetomania. Parece que com certo sucesso.
Há pelo menos duas maneiras de ver essa história. A primeira, é assumir que há um certo dolo por parte do médico. Uma certa mistura de maldade com incompreensão, que vemos bastante frequentemente ainda hoje, que justificaria seus atos para si e perante os seus pares. Aqui, nos deparamos com mais uma leviandade humana e a discussão se encerra. Há, entretanto, uma maneira muito mais perversa e cruel de enxergarmos a história. E se abstrairmos nossa visão de mundo atual e nos transportarmos para o sul da América do Norte no século XIX? Ao tentarmos compreender o mundo e os fatos de Samuel Cartwright poderíamos achar que ele, de fato, não fez nada disso por um idiossincrático ódio ou desprezo à raça negra. Poderíamos entender que ele o fez simplesmente seguindo preceitos lógicos e científicos característicos da forma de pensamento de seu tempo e local. Hoje, seus achados pertencem à pseudociência e ao racismo “científico” de péssima memória. Mas, na época, seus diagnósticos eram discutidos em reuniões clínicas!
O fantasma de Samuel Cartwright deveria assombrar os médicos e a medicina de hoje. Ele deveria lembrar aos médicos que a prática médica permanece e permanecerá apesar das mudanças constantes dos fatos científicos. Que podemos estar fazendo papel de ridículos quando alguém no futuro se propuser a entender nossas dúvidas. Que não estamos desvinculados da sociedade na qual exercemos nossa profissão e que isso provoca imensos pontos cegos quando necessitamos refletir sobre nossos próprios atos. Que a ciência é parceira e não senhora de nossas ações. Eu na verdade, gostaria de fazer algumas perguntas a ele. Perguntaria ao fantasma de Samuel Cartwright, transcendente que é ao tempo e espaço, quão burlesco e patético sou nas minhas boas atuais intenções. Quais das minhas atitudes passarão para história como exemplos do grotesco e do irracional. Quanto não daria para que o fantasma de Samuel Cartwright não aparecesse de repente, num fim de tarde, após várias e extenuantes consultas, no espelho do meu consultório?

Excomungai-me, Dom José!


Logo de espetáculo teatral divulgado no site do CREMEPE

A excomunhão pelo arcebispo de Olinda dom José Cardoso Sobrinho da equipe médica  – que inclui, além dos médicos, enfermeiros, instrumentadores e circulantes da sala cirúrgica – que curetou a criança de 9 anos com uma gestação gemelar decorrente de intercurso sexual não consentido com o padrasto (também conhecido como estupro), diga-se, com a devida autorização judicial, está gerando grande polêmica nos meios de comunicação e, a partir de excelente post no Idéias, resolvi me manifestar. A sucessão de absurdos parece não ter fim. O advogado da Arquidiocese de Olinda, Márcio Miranda, planejava apresentar ao Ministério Público de Pernambuco, denúncia de homicídio contra a mãe da menina  que autorizou o abortamento. O Vaticano concordou com tudo o que o arcebispo decidiu. Isso inclui a não-excomunhão do padrasto, apenas da mãe que autorizou o procedimento e da equipe que o realizou.

Esse post vem denunciar o silêncio do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (CREMEPE) e cobrar um posicionamento urgente. Até o momento, apenas o Sindicato dos Médicos se manifestou oficialmente. Um conselho de medicina tem o dever de representar seus associados perante a sociedade, por mais insignificante que uma excomunhão católica possa ser. A repercussão internacional do caso e sua penetração na imprensa já seriam motivos suficientes para tal. A foto acima é de uma peça de teatro realizada pelo CREMEPE com intuito de esclarecer a população quanto ao problema que, em especial na área de Recife, é de saúde pública.

Além disso, em solidariedade a Sérgio Cabral, o gerente médico do centro de saúde que participou da cirurgia e a toda a equipe de médicos, enfermeiros e auxiliares que salvaram a vida dessa criança, gostaria profundamente de ser excomungado. A excomunhão é uma punição pública exemplar. Uma pecha. Um rótulo, quase uma maldição, mas que nesse caso se transformou numa das maiores vitrines da miséria de nossa sociedade e das mazelas de nossas instituições. Se lutar contra as injustiças e desigualdades ancestrais merece como pena a excomunhão então, quero ser excomungado já. Por essa razão, um de meus maiores ídolos é Espinoza: Excomungado de duas religiões!

Excomungai-me, Dom José! Pelo amor de Deus.

Vendetta

Hoje meu filho de 12 anos me fez a seguinte pergunta: “Pai, qual é o instinto do homem?” Eu disse: “Não entendi a pergunta, filho!”. Ele: “Tipo assim (tudo começa com essa locução!), o instinto do joão-de-barro é construir a casinha para sua fêmea, a aranha faz a teia, qual é o instinto do homem?” Eu pensei, pensei e não soube responder.

Ele disse: “Eu acho que o instinto do homem é a vingança”. Eu fiz uma cara de espanto e perguntei porquê.
Ele disse: “Vi na televisão quando um guepardo comeu o filhotinho de um javali. A mãe do javali não quis se vingar do guepardo. Pegou os outros filhotinhos e foi embora. Se isso acontecesse com uma pessoa ela ia querer se vingar do guepardo e ‘mataria ele’. O homem é o único que se vinga.”

O homem é o único que se vinga?

Sobre a Anti-Ética Médica


Uploaded by Sam Knox at Flickr

Bem. O assunto ganha corpo e extrapola os limites da mídia comum. A blogosfera se agita e nos bastidores do Lablog todos comentam. Meu delírio persecutório (e alguns colegas) pedem minha opinião. Não posso me furtar do que parece ser uma obrigação, então, vamos lá:

Marcia Angell, a célebre ex-editora do New England Journal of Medicine, a revista de uma única faculdade (de Medicina da Harvard) mas que tem um fator impacto maior que a Science e a Nature (seja lá o que isso realmente queira dizer!), publicou, dizia, um livro em 2004 chamado “A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos” já devidamente traduzido e em nosso mercado desde 2007. Nesse livro ela expõe o que seriam as técnicas de marketing da indústria farmacêutica – a BigPharma – que teriam como objetivo confundir o senso crítico dos médicos de modo a facilitar a prescrição de medicações novas, em geral mais caras, que são colocadas todos os anos no comércio milionário da miséria humana. Além disso, discorre também sobre formas como os consumidores podem pressionar seus médicos para obter determinado tratamento, mesmo que tais tratamentos tenhos poucos estudos que suportem sua utilização indiscriminada.

Esse livro e, obviamente, um ambiente favorável, fizeram surgir algumas resoluções, mesmo que tardiamente. Em 17 de dezembro de 2008, a ANVISA publicou uma RDC (resolução de diretoria colegiada – ainda não tem versão na web, mas pode ser baixada aqui. Ver aqui o ponto de vista da BigPharma) que tem no seu Art. 1º: “Este Regulamento se aplica à propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos de produção nacional ou estrangeira, quaisquer que sejam as formas e meios de sua veiculação, incluindo as transmitidas no decorrer da programação normal das emissoras de rádio e televisão”. E também regulamentou a atuação dos representantes de laboratórios junto aos médicos e pacientes. A BigPharma teria 180 dias para se adequar à resolução, o que vai ocorrer em meados de Junho desse ano. E tudo isso eu achei bastante bom. Um forte golpe no carrossel vigente.

Muito bem. Marcia Angell faz a resenha de livros que agora pipocam no mercado americano sobre esse mesmo tema (parece que ele vende bem, como várias coisas em saúde). Acho mesmo que ela tem que bater forte no tema, até porque, o outro lado bate muito forte também e assim, quem sabe discute-se mais e toma-se consciência. Os livros são:

1. Side Effects: A Prosecutor, a Whistleblower, and a Bestselling Antidepressant on Trial by Alison Bass

2. Our Daily Meds: How the Pharmaceutical Companies Transformed Themselves into Slick Marketing Machines and Hooked the Nation on Prescription Drugs by Melody Petersen

3. Shyness: How Normal Behavior Became a Sickness by Christopher Lane

Alison Bass é jornalista especializada em cobrir medicina e tem um blog desde 2008. Nunca tinha ouvido falar. Melody Petersen era reporter do NYTimes especializada em cobertura de laboratórios farmacêuticos (vejam vocês!), tinha lido algumas coisas dela e vai na linha de Marcia Angell. Christopher Lane deu uma entrevista ao Mais! da Folha (que pode ser lida aqui) e que comentei em um post de 20 de julho de 2008. Ele é professor de inglês especializado em ficção britânica moderna e vitoriana além de ter estudado psiquiatria e psicologia (do século XIX).

Ou seja, todo mundo batendo na mesma velha tecla. A questão, disse e repito, é que tenho me debatido com o fato de que, em alguma situações, o médico deve funcionar como um advogado do paciente frente à agressividade da medicina atual. Entretanto, essa agressividade é, muitas vezes solicitada pelos próprios pacientes! Daí, essa hipermedicina pós-humana que foi abordada por ocasião do post sobre Gilberto Dupas, ele mesmo uma vítima dela. O que todos esses autores não comentam é qual o papel de cada um no jogo. A medicina, os médicos e os pacientes, como participantes desta atividade humana, são totalmente dependentes de correntes comportamentais que estruturam um comportamento de rebanho típico de nosso tardo-capitalismo. Um texto recente é brilhante em demonstrar isso (obrigado, maria):

A BigPharma não faz medicina sozinha. Os médicos também não. Muito menos os pacientes.