Razão de Chances

Outro dia, me perguntaram a tradução para o português brasileiro do termo estatístico odds ratio. Acho que a mais utilizada é mesmo razão de chances. Essa nomenclatura tem um significado muito especial porque chance é uma forma de exprimir probabilidade. Probabilidade, por sua vez, pode ser a medida de uma incerteza ou de uma expectativa de ocorrência acerca de um evento. É interessante separar essas duas formas de probabilidade porque delas se originam os dois ramos principais do pensamento probabilístico, a saber, “probabilidade tipo crença” e “probabilidade tipo frequência”, respectivamente [1]. Outros autores usarão os termos “subjetiva” e “objetiva”, “epistêmica” e “aleatória” e, finalmente, “bayesiana” e “frequentista”, respectivamente. Em medicina, usamos muito a frequentista apesar de que abordagens “subjetivas” têm sido cada vez mais frequentes, hehe. (Sorry, pelo trocadilho infeliz, ver aqui e aqui, pitacos recentes sobre Bayes).

Risco, chance e probabilidade são conceitos dos quais temos noções intuitivas e que, muitas vezes, utilizamos indistintamente. Mas há diferenças importantes. Diferenças que devem ser conhecidas tanto por quem reporta os dados, como para quem lê um artigo científico que os usa. Imagine a seguinte situação retirada do livro do professor Júlio César [1]. Foram analisadas 793 quedas de moto em determinada cidade. Alguns motoqueiros estavam de capacete, outros não. Alguns sofreram ferimentos na cabeça e outros não. Podemos usar a tabela abaixo, para melhor visualizar os dados.

Uso de Capacete

Total

Não

Sim

Ferimento na Cabeça

Não

428

130

558

Sim

218

17

235

%Ferimento na Cabeça

33,75%

(218/646)

11,56%

(17/147)

29,63%

(235/793)

Total

646

147

793

Por esses dados podemos concluir que a probabilidade de motoqueiros terem ferimento na cabeça após uma queda nesta cidade é 29,63%. Já a probabilidade de um ferimento na cabeça com capacete é de apenas 11,56% e sem ele é de 33,75%. Esses números se referem ao conjunto dos acidentados. Pacientes gostam de perguntas do tipo: “Dr, qual o risco de EU machucar a cabeça se EU andar de moto sem capacete?” Uma resposta possível seria: “Segundo um estudo, ao andar de moto em determinada cidade sem capacete, o risco de se lesionar a cabeça em um acidente é 33,75%”. Risco, portanto, seria a própria probabilidade trazida ao nível individual. Aí, a pessoa que fez o estudo fica famosa e vai dar uma entrevista ao jornal local. Lá pelas tantas, a repórter gata pergunta: “Muito bem, doutor, sabemos que o capacete protege contra lesões encefálicas. Mas, quanto?” Você pode fazer a seguinte conta 33,75%-11,56% = 22,19% e dizer que há uma redução de 22% no risco. A repórter: “???”. Você vendo o desespero dela e querendo ajudá-la (e aproveitando para se exibir um pouco), mentalmente, faz outra conta 33,75/11,56; e ao vivo, responde na lata: 2,92. O que quer dizer esse número? Quer dizer que o número de lesões encefálicas em quem se acidenta de motocicleta e não usa capacete é quase 3 vezes maior (2,92) que em quem usa. Esse é o que chamamos Risco Relativo (RR). Fica bem mais fácil de entender, não? (Você poderia ainda fazer outra conta que é 1/22,19% = 4,5, que significa que para cada 4,5 motoqueiros usando capacete que caem, você previne 1 lesão encefálica. Esse é o number need to treat – NNT – muito utilizado em ensaios clínicos, mas aí a repórter ia se apaixonar). Quem usa capacete tem menos risco de lesão encefálica, associação agora devidamente quantificada. O RR é um número muito fácil de compreender e por isso é muito bom quando podemos informá-lo. A odds ratio (OR) e o risco relativo (RR) são semelhantes e as duas medidas de associação mais utilizadas em epidemiologia. Por essa razão, são extremamente importantes para as ciências da saúde, em geral, e para a medicina, em particular.

Chamemos de associações, as inferências sobre relações causais, mas usemos outro exemplo: Quem tem colesterol alto tem mais infarto do miocárdio? Estudos epidemiológicos tentam associar dislipidemia com eventos coronarianos. Como? De várias formas, mas especialmente com estudos chamados de observacionais porque os pesquisadores só ficam observando o que vai acontecer, sem intervir nos casos. (Estudos em que há uma ou mais intervenções são chamados, muito sugestivamente, de intervencionais ou experimentais). Voltando aos estudos observacionais, estes podem ser de dois tipos principais: transversais (cross-sectional) ou longitudinais. Os transversais são como uma foto de uma comunidade ou grupo de pacientes, ou seja, o tempo está parado e estático, não havendo seguimento dos indivíduos no tempo, portanto. São bons para avaliarmos a prevalência de doenças. Por outro lado, longitudinais são os estudos que requerem que os indivíduos sejam observados por um período de tempo. Esse “tempo” em que vou “observar” pode ser para frente ou para trás e aqui, por favor, não entre em pânico. Veja a figura abaixo (desgraçadamente em inglês, mas fácil de entender, retirada da referência [2])

Diferença conceitual entre estudos Caso-controle e de Coorte

É sempre bom começarmos do starting point. Notai que existem 2 caixas “contendo” indivíduos com uma determinada doença e sem ela. Se, para utilizarmos o exemplo acima, dosarmos o colesterol de todo mundo, saberemos quem tem dislipidemia (colesterol alto) e quem não tem, i.e., quem está ou não exposto ao fator que queremos estudar. Se eu seguir esses pacientes por um tempo, vou ver quem teve (develop disease) ou não (disease-free) infarto do miocárdio. E assim, terei feito um brilhante estudo de Coorte. Se, por outro lado, eu pegar os registros hospitalares, dos consultórios, ou quaisquer que sejam, de pacientes com infarto e comparar com pacientes que não tiveram infarto, posso tentar associar o colesterol elevado no passado com a presença de doença coronaria atual, retrospectivamente. Estarei então, fazendo um estudo caso-controle. Entendido isso, vejam só que interessante.

Em um estudo transversal (o da fotografia), eu posso calcular o risco de uma certa doença baseado na sua prevalência, ou seja, no número de pessoas com aquela doença naquele exato momento. Nos estudos de coorte (aqueles nos quais o tempo vai “pra frente”), eu posso obter o risco de desenvolvermos uma doença qualquer através da incidência. Ótimo, perfeito! Mas, e no estudos caso-controle? Como faço para obter o risco já que o tempo vai “pra trás”? Como vimos, o risco é a probabilidade de algo acontecer a nível individual. Se tivermos as incidências e prevalências de antemão, poderemos estimar o risco, mas isso nem sempre é possível ou é não confiável. Como diz o Luiz Cláudio do excelente MBE: “Quando o estudo é caso-controle, onde casos (desfecho já ocorreu) são selecionados no início do estudo de forma arbitrária, não dá para calcular a proporção de pacientes que virão a ter o desfecho. Ou eles já tiveram o desfecho (casos) ou eles não tiveram o desfecho (controle). Neste caso, como não dá para calcular probabilidade do evento ocorrer, se usa odds (chance)”.

Posto isso, qual a diferença entre OR e RR? O raciocínio é mais ou menos o mesmo. Entretanto, as duas grandezas não podem ser utilizadas indistintamente. A OR superestima a RR na dependência da incidência da doença estudada. Veja o gráfico abaixo retirado da referência [3].

Relação entre a OR e o RR de acordo com a incidência (Io) das doenças

De novo, o Luiz Cláudio nos ajuda: “Um erro freqüente é a leitura do odds como se fosse riscoOdds ratio de 3.8 não quer dizer risco 3.8 vezes maior. Isso não é risco, pelos motivos já expostos. No entanto, quando o desfecho é raro, com uma freqüência menor que 10%, as medidas do OR e do RR se aproximam. Mas em um desfecho freqüente, embora as duas medidas indiquem um fenômeno na mesma direção, o OR tende a superestimar a força de associação, quando comparado ao RR.”

Quando a incidência é baixa (Io = 0,01) a correlação entre as duas variáveis é boa. Mas reparem na curva da Io = 0,3 (30%). Quando o RR é 2, a OR é próxima a 4, quase o dobro. A propósito, a OR dos motoqueiros com cabeça quebrada acima é 3,89 contra o RR que é 2,92, como vimos.

Fórmulas

RR = p / q

OR = p (1 – q) / q (1 – p)

Consultei

[1] Pereira, Júlio César R. Bioestatística em Outras Palavras. São Paulo. Ed USP, FAPESP. 2010.

[2] A. Petrie J. S. Bulman and J. F. Osborn. Further statistics in dentistry. Part 2: Research designs 2. British Dental Journal 2002; 193:435–440

[3] Carsten Oliver Schmidt, Thomas Kohlmann. Int J Public Health 53 (2008) 165–167

Ver também o excelente medicina baseada em evidências citado acima.

Abraço ao André Souza do Cognando, motivador do post.

O Sexto Sentido?

Há muitos anos atrás, nos primórdios da civilização humana, o homem só tinha seus cinco sentidos para entender o mundo e tentar fazer previsões sobre ele. Ele tinha certeza de que seus sentidos o guiariam de forma confiável o que quer que ele se propusesse a fazer. Com os anos, vieram alguns refinamentos e o homem viu que existiam coisas que ele não conseguia “sentir” com seus sentidos. Ele aprimorou ferramentas, pôde ver mais longe e mais perto. Pôde entrar em ambientes que jamais imaginou e testar, sentir, ouvir coisas que nunca pensou pudessem ser experimentadas antes. Ampliou seus horizontes e seu controle sobre as coisas.

Mas existiam coisas que o homem não podia sentir ou captar mesmo através de seus sentidos “aprimorados”. Um indício disso, era a ciência de contar e de pensar espaços: a matemática. A matemática era uma ciência que, ao mesmo tempo, incomodava e fascinava o homem. Seus “objetos” eram virtuais. Só existiam na cabeça dos homens. Foi considerada filosofia, seita, quase-religião. Até que se descobriu algumas utilidades interessantes para ela.

Uma das muitas utilidades da matemática que nos importará aqui, é o fato de que ela é a única ferramenta capaz de nos habilitar a lidar com os tais objetos virtuais. Quando quisemos saber se a população de uma tribo era mais alta que a de outra, tivemos que medir alturas. Dada a impossibilidade de parear membro a membro de cada tribo em embates 1:1 e contar os vencedores (experiência já realizada, muitas vezes com resultados catastróficos), era melhor medir todos e depois compará-los. Aí é que está! O homem sabia comparar pesos de cargas, tamanhos de tecido, números de cabeças de gado, mas como comparar a altura de uma tribo com outra. O resultado são fileiras de números. Nenhum dos sentidos do homem servia para validar esse tipo de comparação. Só a matemática forneceria uma ferramenta capaz de viabilizar essa experiência. Surgiu então, a Estatística.

A estatística tem várias definições, mas a que eu achei mais elucidativa é: “é o estudo da distribuição de dados”. O dado, no nosso exemplo, é a altura de um membro da tribo. Por meio de ferramentas estatísticas, posso comparar a distribuição da altura de cada tribo e dizer qual tribo é a mais alta. Fantástico, não! A estatística é uma ciência bem nova. Alguns dirão, “não, já existiam ferramentas matemáticas utilizadas pelos estatísticos no século XVII”. Ferramentas, eu diria. Não, uma filosofia de trabalho. A estatística surgiu na virada do século XIX para o século XX, com os trabalhos Karl Pearson (desenho ao lado) e Ronald Fisher. O primeiro em especial, deu o grande salto. Foi Karl Pearson quem entendeu que o objeto dessas medidas era “virtual”. O segundo, fundou a estatística de fato.

A estatística é hoje, o grande mecanismo gerador de certeza de um médico.Muitos de nossos objetos são totalmente impalpáveis: tamanhos de tumores, sobrevidas, efeitos de medicações em populações e por aí vamos. Entretanto, essa virtualização do objeto a ser apreendido causa um grande mal-estar no médico. Médicos em geral, e cirurgiões em particular, gostam de tocar, ver e sentir, a doença. Dizer que a distribuição da pressão arterial é assim ou assado, é algo difícil de interiorizar. Acreditamos com nosso lado cientista, desconfiamos com nosso lado curandeiro. Por isso, há um embate eterno entre o que um médico viu e o que esse mesmo médico leu ou ouviu. Estatística vs cinco sentidos! Seria ela, um sexto sentido?

Enquanto os médicos estiverem ainda presos à natureza humana, esse embate perdurará. Aos pacientes, resta torcer para que o médico consiga com seus meros cinco sentidos, coletar seus dados, traduzí-los em formato digital virtualizando seu “objeto”, de modo a poder compará-lo com distribuições de outros médicos ou com a sua própria, sem forçar um encaixe em qualquer uma delas, e chegar a uma conclusão estatisticamente válida que deverá ser retraduzida aos pacientes, na forma de diagnóstico e explicações, com atenção, simpatia e, desejavelmente, carinho. O raciocínio para o tratamento segue na mesma linha. Grande torcida. Esperamos não desapontá-los.