DEK – Estetoscópio, Broncograma e Pectorilóquia

A palavra estetoscópio parece ter sido forjada (dado que tais instrumentos médicos não eram utilizados pelo conterrâneos de Hipócrates) pelo francês René-Théophile-Hyacinthe Laënnec (1781-1826), ele mesmo o inventor da palavra e da coisa, a partir dos radicais gregos, stethos-, caixa torácica, peito (e até mamas); associada à -skopein, explorar, perscrutar. Stethos é, portanto, correlacionada à caixa torácica e ao peito. Provavelmente, esterno, como “osso que nos fecha o peito”, ou “que vem à frente dele”, também venha daí. Nada a ver com Estética que é de outro radical. Se bem que aisthanesthai, é “perceber, pelos sentidos ou pela mente”, ou seja, “sentir” e originou “estese” e seu oposto “anestese”, ou comumente “anestesia”, e se pode perfeitamente, com o estetoscópio, sentir ou ouvir ruídos do funcionamento normal do corpo humano. Em especial dos pulmões.

Árvore Brônquica (Fonte: Wikipédia)

Árvore Brônquica (Fonte: Wikipédia)

O ar, ao penetrar nas vias aéreas, produz uma sensação auscultatória (auscultar = escutar com técnica) semelhante àquela que temos quando encostamos o ouvido numa concha só que de forma intermitente, acompanhando o ciclo respiratório do paciente. É um som abafado e que é bem melhor percebido durante a inspiração e chamado poeticamente de murmúrio vesicular. Quando esse som fica nítido, o médico deve prestar atenção se ele pode ser ouvido durante a expiração também. Se isso ocorrer, chamamos esse tipo de ruído de respiração soprosa. A respiração soprosa ocorre por aumento da transmissão do som na caixa torácica e isso, geralmente, se dá por uma condensação do parênquima pulmonar que, dessa forma, conduz melhor a onda sonora. Nesse momento, o médico pode solicitar ao paciente que diga “trinta e três”. (Parêntesis: por que “trinta e três”? É pela vibração que provoca no tórax e para padronizar as auscultas. Em inglês e no alemão – onde foi descrito, é “ninety nine” e “neun und neunzig”, em espanhol “treinta-y-tres” ou “cuarenta-y-cuatro”. “Ointenta e oito” tem um som muito fechado. “Setenta e sete” e “cinquenta e cinco”, muito sibilantes, e ficamos no “trinta e três”. Fecha parêntesis).

Ao dizer “trinta e três”, o paciente faz com que sua voz trafegue pelas vias aéreas. Se houver algum local onde a transmissão seja acelerada por uma condensação parenquimatosa, e.g. uma pneumonia, o médico auscultará um “trinta e três” não abafado, mas bem nítido. É o que se chama pectorilóquia. Pectos-, latim, “peito”. Como em pectus excavatum (tórax de sapateiro), ou angina pectoris, “dor torácica de origem cardíaca”; -Ióquia, latim também, de falar. Donde colóquio (onde vários falam), ventríloquo (o que fala pela barriga), etc. Pectorilóquia é a “fala do peito”. E o que ela diz?

Imagem tomográfica mostrando broncogramas aéreos em uma tomografia

Imagem tomográfica mostrando broncogramas aéreos

Diz que há um local naquele pulmão onde o som chega, e para isso é necessário que um brônquio esteja aberto, e transmite-se tendo como meio um parênquima pulmonar “condensado”, ou seja, preenchido por conteúdo sólido e não pelo ar. Radiologicamente, esse som se revela num sinal chamado broncograma aéreo. O broncograma aéreo é o desenho por contraste de um brônquio com o tecido pulmonar densificado adjacente. É considerado característico de condensações e serve para diferenciar de outras doenças que causam densificações do parênquima pulmonar, em especial, das atelectasias. Nestas, os alvéolos estão murchos e não preenchidos por material inflamatório. Os brônquios, colabados. O som não chega à superfície da parede torácica com a mesma eficiência. É bem mais abafado.

A pectorilóquia é representada pelo sinal radiológico do broncograma aéreo que, por sua vez, tem como base a anatomia patológica do pulmão acometido. Um médico treinado, com uma manobra extremamente barata e eficaz (solicitar ao paciente que diga um número várias vezes) pode captar isso com a mão nas costas do doente (para sentir o frêmito) ou auscultando (diretamente com o ouvido ou mediatamente com o estetoscópio) e ter a visão radiológica e/ou da lâmina de microscopia representativa de sua doença. A pectorilóquia tem, portanto, uma representação fisiopatológica e anatomopatológica que provoca implicações no raciocínio clínico e gera consequências terapêuticas. Pensar medicamente é sentir a superfície, ver a profundidade e modificar a “história”. Pelo menos a “natural das doenças”.

Consultei

Carvalho VO, Souza GEC. O estetoscópio e os sons pulmonares: uma revisão da literatura. Rev Med (São Paulo). 2007 out.-dez.;86(4):224-31. (pdf)

A Aposentaria do Estetoscópio?

Desde que entrei na faculdade de medicina, o estetoscópio me fascinou. Estudei técnicas auscultatórias e as apliquei. Diagnosticar doenças cardíacas e pulmonares com um aparelho é muito interessante. O estetoscópio tem uma história bonita (um resumo razoável em inglês aqui, qualquer dia conto essa história em bom português).

A evolução tecnológica do estetoscópio (esteto, para os íntimos) é uma marca da evolução da própria medicina. De um tubo rígido interposto entre o ouvido do médico e o seio de belas senhoras evitando assim o constrangimento de colocar diretamente a orelha em locais castos, a um instrumento acústico e, recentemente, eletrônico, foram quase 2 séculos.

Recentemente, a ultrassonografia (USG) vem ganhando um espaço jamais imaginado na prática médica. Antes, um campo dominado exclusivamente pelos radiologistas, o “ultrassom” vem sendo incorporado a várias outras especialidades como traumatologia, emergências, terapia intensiva, cirurgia geral e vascular, entre outras tantas. Os aparelhos vem melhorando dia a dia e as imagens, que antes pareciam as de uma TV com “chuvisco” foram ficando impressionantemente nítidas. Qualquer pessoa que já viu um ultrassom morfológico de uma mulher grávida sabe do que estou falando. Além disso, a tecnologia foi ficando mais barata, simples e menor! Esse último adjetivo é o motivo do post. Recentemente, a GE Healthcare lançou um aparelho de ultrassonografia que é mais que portátil. É de mão! Chama-se VScan (ver o filme promocional abaixo).

Bom, o fato é que um aparelho assim, do mesmo tamanho que um Iphone, permite fazer alguns exames interessantes em qualquer consultório. Um deles é o próprio ecocardiograma, que se baseia nos mesmos princípios ultrassonográficos de um aparelho comum de ultrassom obstétrico ou abdominal. Isso permite que o médico ao invés de auscultar um sopro cardíaco, o visualize, quantifique, diagnostique, com uma precisão jamais imaginada à beira do leito. Um dos cardiologistas mais famosos do mundo, o prof. Eric Topol (blogueiro dos bons!) não esconde sua admiração. Abaixo, um filme promocional.

Seria a aposentadoria anunciada de um instrumento tão caro aos médicos? O espelho frontal, aquele espelho que fica na cabeça dos médicos em qualquer desenho animado foi praticamente aposentado. Quem ainda os usa, raramente é verdade, são os otorrinos. Hoje, entretanto, eles têm uma coisa chamada “nasofibroscopia” que além de permitir-lhes uma visão melhor, incomoda menos o paciente e ainda deixa você, paciente, pegar uma carona no exame, por meio de um monitor.

Acho que o esteto vai se aposentar como o espelho frontal, as navalhas, o categut, as mezinhas e outras tantas tecnologias obsoletas com as quais os médicos tentaram minimizar as mazelas da espécie humana. Contudo, em todas as “aposentadorias” anteriores, ele, médico, acabou por se distanciar um pouquinho mais de seus pacientes. A sensação de um estetoscópio geladinho no peito com um sujeito de olhos fechados e aspecto calmo, em silêncio, ouvindo o que seu corpo tem a lhe dizer é, por si, terapêutica. A ver…

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Declaração de conflitos de interesse. Não tenho nenhum tipo de relação financeira, científica ou amorosa com a GE Healthcare, mas se eles quiserem dar um VScan para mim, eu vou ficar bem feliz!

 

A foto é do filme Zelig de Woody Allen. Atrás, Mia Farrow. (via Kentaro).