Acordo de cavalheiros


O livro que eu estou terminando de ler (“O quadrante Paster” de Donald Strokes), discute uma questão complicada: a Utilidade da ciência.

Como assim a utilidade? Como negar os benefícios da ciência para a humanidade? Difícil. As evidências são tantas que apenas um organismo muito doente ou muito motivado poderia refutá-las. Por que então a dificuldade?

O cientista americano Vannevar Bush, que não é parente de nenhum dos dois presidentes Bush, foi conselheiro científico de Roosevelt e Truman durante a segunda guerra. Ao final do conflito, ele escreveu um documento chamado “Ciência, a fronteira sem fim” (Science, the endless frontier), aonde ele estabelecia a existência de duas ciências: uma básica, onde os cientista deveriam ser livres para escolher e conduzir seu tema de pesquisa; e outra aplicada, que se alimentaria desse fluxo de novas informações para transformá-las em conhecimento e tecnologia. É de Bush a idéia de que a ciência básica alimenta a tecnologia.

Para esse sistema funcionar, era necessário um acordo entre a sociedade (o governo) e a academia (a comunidade científica). Os cientistas desenvolveriam a ciência que em última instância geraria a tecnologia e aumentaria a qualidade de vida da sociedade. A sociedade paga a conta. O governo deveria se responsabilizar por financiar esse modelo científico de liberdade de escolha e ação do pesquisador. Era a única forma desse modelo funcionar. Não te parece razoável? Bush tinha um excelente argumento nas mãos: a ciência é que tinha ganho a guerra para os EUA. E depois que eles ganharam aquela, não queriam correr o risco de perder outras (ainda que tenham perdido e continuem perdendo). O modelo de Bush era razoável e o governo dos EUA topou o acordo. O modelo foi rapidamente aceito por outros governos, em outros locais do mundo e a ciência foi se sistematizando. O homem chegou a Lua, parecia que o modelo estava realmente correto.

Muitos anos depois, a sociedade não está mais satisfeita com esse acordo. Existem três razões principais: A primeira, é um acordo caro! A segunda, é que a sociedade se distância cada vez mais da ciência porque essa, por sua vez, está cada vez menos acessível à sociedade. Ninguém gosta de pagar uma conta alta sem saber direito o porquê. Em terceiro, parece que o modelo está incorreto.

Boa parte da tecnologia atual não veio, diretamente, de uma idéia da ciência básica. Essa falha no modelo começou a aparecer no final do século passado. Alguns estudos mostraram que os grandes benefícios vieram de iniciativas diferentes da ‘ciência aplicada’, baseadas em um modelo de pesquisa ainda mais antigo que o de Bush. O modelo de Pasteur. Nesse modelo, a aplicação da ciência move o objetivo científico. Uma ciência direcionada, onde a aplicação prática move o objetivo científico e ao alcançar esse objetivo, o cientista contribui de forma contundente com o avanço (e acúmulo) do conhecimento.

Fazer ciência básica virou fazer ‘qualquer coisa’. O cientista é uma pessoa diferenciada pela sua capacidade de observação. Observar, identificar, hipotetizar, testar, reportar e explicar. Mas também é humano. Isso quer dizer que pode errar nesse processo, mas pior do que isso, pode deixar o processo científico, que deveria ser amoral como a natureza, ser influenciado por crenças e emoções. A pior coisa que pode acontecer à um cientista é se tornar tendencioso. E como mostra Ioannidis no seu fabuloso artigo ‘porque a maior parte das pesquisas publicadas são falsas’ (Why most published research findings are false) os cientistas se tornaram tendenciosos. Muitos deles adeptos da crença no Deus Dinheiro e na Santa Indústria de Fármacos.

Os cientistas começaram a focar nas respostas (número de artigos publicados, número de projetos aprovados, de teses defendidas, de patentes registradas) e foram perdendo a habilidade mais peculiar à atividade científica: fazer boas perguntas! Uma leitora fã do Zen e um amiga fã do Jostein Gaarder já falaram disso esse ano pra mim e tenho cada vez mais pensado no assunto: Uma boa pergunta é mais importante que a resposta!

Temos que voltar a fazer boas perguntas. E temos de ensinar nossos alunos que o mais importante são as perguntas. Pra isso, vamos ter de trabalhar o conceito de utilidade. Um conceito que também só se define de forma completa à luz da estatística. Mas isso fica para o próximo texto.

Discussão - 4 comentários

  1. João Carlos disse:

    (O curso de "escritor" está fazendo efeito: você deixou um "gancho para o próximo capítulo" que deixou todo o mundo sem fôlego!...)Comentar o que?... Eu não poderia discordar menos!Mas aí me vem à memória o fato de que a maior parte dos professores de "ciências" no ensino médio não tem as qualificações necessárias...

  2. Mauro Rebelo disse:

    João, olhei de volta o texto e vi que tem um monte de coisas diferentes das quais você não poderia discordar menos. Você pode ser mais específico? Vou terminar o texto essa semana! Um abraço

  3. João Carlos disse:

    Sendo mais específico: das suas constatações que termo "ciência" se tornou um porte-manteau onde se mistura pesquisa séria, com coleta direcionada de dados para comprovar um pré-conceito qualquer qualquer e até qualquer coisa ininteligível, mas com uma aparência científica.E, mais do que tudo: o mais importante é fazer as perguntas, desde o início do aprendizado. O questionamento deve ser encorajado logo no início, porque a prática leva à perfeição. E, assim, ao chegar em um nível de ensino mais elevado, o estudante já terá aprendido a arte de "pedir maiores explicações" e não vai apresentar questionamentos inoportunos, como aqueles que você apresentou sobre a importância de seguir os protocolos.

  4. João Carlos disse:

    Por falar nisso, já deu uma olhada no "Semciência" do Osame?

Deixe um comentário para João Carlos Cancelar resposta

Seu e-mail não será divulgado. (*) Campos obrigatórios.

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM