O 'Mainframe' da vida
Raramente escrevo aqui sobre o meu trabalho. Poderia mentir, dizer que é modéstia ou alguma coisa assim, mas não é. Acho que o que eu faço no laboratório, pelo menos até hoje, não dava uma boa história. Acho que isso nem é verdade, mas sabe como é: casa de ferreiro, espeto de pau.
Mas essa semana publicamos um artigo… lindo! Mas lindo mesmo! Do jeito que dá orgulho de ser cientista. Fizemos tudo direito: o desenho experimental foi correto, os dados foram bem coletados, fizemos a análise correta e uma discussão inovadora.
Tão inovadora que… o revisor disse que ela era especulativa demais. Mas até nisso esse artigo funcionou: o revisor, que muitas vezes pode ser um idiota (veja aqui essa satira incrível de Hitler reclamando do terceiro revisor – se você não é cientista, talvez não se divirta tanto), foi sensacional: nos apontou na direção correta e, depois de bater a cabeça por um mês (as vezes na parede, as vezes nos pulsos uns dos outros) fizemos um artigo muito, muito bom.
“o parágrafo final é perfeito”. Gente… tenho só 40 anos e já vivi o suficiente para ouvir um revisor dizer isso!
Mas sobre o que é esse artigo que estou falando tanto, que me fez ir até o meu currículo Lattes e apagar uma estrela antiga para poder dizer que ‘esse’ é um dos meus 5 artigos mais importantes?
Eu poderia dizer, corretamente, que é sobre o sistema imune de ostras. Mas ai você poderia dizer, mas e eu com o sistema imune de ostras? Elas são uma delícia com sal e limão, e isso é que importa!
Bom, eu tenho que concordar que elas são uma delícia. Mas isso não desmerece o sistema imune delas. Os bivalves são um dos grupos animais com maior número de espécies. Ocupam todos os mares, rios e lagos. Alguns, como o mexilhão dourado, são pestes, invasores extremamente vorazes e eficientes. Isso, vivendo em um ambiente hostil: concentração de bactérias e vírus na água chega a 10ˆ6 e 10ˆ9 por mililitro!
E como elas conseguem ser tão eficientes, em ambientes tão diferentes quanto hostís? Uma das respostas é: com um bom sistema imune!
E quando eu falo em sistema imune você já pensa logo em anticorpos, linfócitos, imunoglobulinas… mas não, esses animais são muito anteriores ao sistema imune adaptativo dos mamíferos. Eles só possuem sistema imune inato. E que se resume a, e essa foi uma das nossas descobertas, um tipo de célula apenas! Só que essas bichinhas são sinistras! Fagocitam bactérias, metralham elas com espécies reativas de oxigênio e, pra garantir que elas não apareceram mais, disparam peptídeos anti-microbianos dos seus grânulos na hemolinfa do bicho. Se você for biólogo e entender de imuno, posso dizer em um linguajar mais técnico: desgranulam igual macrófagos!
E isso é que é o bacana. Apesar de não terem o sistema imune adaptativo que nós temos, nós temos o sistema imune inato que elas tem. Verdade, nós produzimos apenas um poucos tipos de defensinas, enquanto elas produzem um monte. É é justamente o estudo dessas proteínas de defesa que tem mostrado, por um lado, o que pode ser a origem do sistema imune adaptativo, e de outro, toda uma estratégia para combater as bactérias resistentes a antibióticos.
E você que pensou que elas serviam apenas para petiscos…
Nosso laboratório estuda isso: as relações entre os genes dos organismos e o seu ambiente, e como isso pode nos ajudar a resolver problemas ambientais e de saúde humana. Ou, como disse lindamente a professora Claudia Lage quando leu o texto: “Adoro esses estudos que mostram o ‘mainframe’ da vida”.
Eu também!
Rebelo, M., Figueiredo, E., Mariante, R., Nóbrega, A., de Barros, C., & Allodi, S. (2013). New Insights from the Oyster Crassostrea rhizophorae on Bivalve Circulating Hemocytes PLoS ONE, 8 (2) DOI: 10.1371/journal.pone.0057384
Discussão - 1 comentário
Bravo! São de trabalhos científicos desta envergadura que a ciência brasileira precisa!