A lógica da raiva

É assim que você fica quando está brava
ResearchBlogging.org

“A raiva é parte da biologia básica da espécie humana. Ela aparece espontaneamente na infância, está distribuída universalmente entre culturas, em todos os indivíduos e tem uma base neural espécie-específica.”
Assim começa o artigo que eu vou comentar hoje. Quando você é cientista, nada do que serve de acalento para a maior parte das pessoas funciona. Florais de Bach, mantras, massagem holística… nada disso ameniza a mente racional. Bom, é verdade que Rivotril funciona mesmo nos cientistas. Mas antes de partir pras drogas pesadas, a gente procura consolo na sabedoria de bilhões de anos da seleção natural.
Na tentativa de explicar biologicamente a raiva, os cientistas procuraram primeiro compreender qual seria o propósito da raiva: para que ela teria sido selecionada pela seleção natural? A resposta, vejam só, é que ela teria evoluido como ferramenta de barganha, para resolver conflitos de forma favorável para a pessoa com raiva.
Como assim?
Todo ser humano dá um determinado valor ao próprio bem estar e também ao bem estar alheio. E é claro, está disposto a investir uma certa quantidade de tempo e de recursos (de energia) nesses bem estares (o próprio e o alheio). A raiva seria um ‘incentivo’ (ou como veremos melhor, uma ameaça) para que o ‘próximo’ desse mais valor ao bem estar da pessoa com raiva, as vezes até mesmo em detrimento do dele próprio.
O quanto nós deveríamos nos preocupar com o bem estar do próximo (ou o bem estar alheio) com relação ao nosso próprio?
Eu já tratei aqui sobre questões de agressividade, e como podemos calcular o valor do altruísmo e da ajuda. Certamente essa resposta depende do que está (ou se há) em jogo, mas alguns fatores variam de forma esperada, sempre. Um deles é o grau de parentesco (que você pode ler mais aqui).
“Os seres humanos possuem sistemas cognitivos que buscam pistas de grau de parentesco, e ‘recalibram’ suas ações altruísticas de acordo com essas evidências.”
Se um amigo pede para eu ir até a Barra da Tijuca buscar os ingressos para ele ir a um show numa 6a feira as 5 da tarde pela linha Amarela, eu não vou. Mas já se for a minha irmã…
A raiva faz parte de um outro sistema cognitivo, que é o sistema de barganhas. Como podemos convencer alguém a ser altruísta conosco se ele não é nosso parente?
Depende do nosso poder de barganha, que se resume, basicamente, em duas coisas com nomes estranhos, mas significados muito familiares: formidabilidade e conferibilidade. No inglês, de onde vem a nomeação, os dois termos não são utilizados com os significados mais usuais do português, mas sim no sentido de ‘impor dificuldades’ e ‘conceder benefícios’, respectivamente. Assim, quanto mais ‘formidável’ uma pessoa é, mais dificuldades ela é capaz de impor a você (e não é que as vezes é assim mesmo?!).
Entre outras coisas que podem ser levadas em conta pelo mesmo ‘sistema de barganhas’ estão a agressão, a reciprocidade e as externalidades. Essas suposições todas precisam se apoiar em um suposto sistema computacional do cérebro humano que seja capaz de:

  • Avaliar as consequências de um ato para si mesmo
  • Avaliar as consequências de um ato nos outros
  • Relacionar e avaliar as consequências dos atos em ambos

E essas avaliações tem de levar em conta todos os fatores que relacionamos até agora (raiva, agressividade, parentesco, formidabilidade e conferibilidade, além de externalidades não previstas) juntos. Isso quer dizer que é fácil atribuir um valor ao medo que temos de uma agressão isoladamente, mas e se o risco de agressão se apresentasse quando uma pessoa querida está envolvida, ou em uma situação de ‘tudo ou nada’, ou ainda com um aparente parceiro, mas que cometeu uma grande traição? Os valores, os pesos que damos a cada variável, bem podem mudar. E mudam!
“Existem muitas evidências de que esse ‘sistema de avaliação da barganha’ existe nos humanos como parte de uma intrincada arquitetura neural e toma parte ativa nos nossos processo de tomada de decisão.”
Mas como poderíamos influenciar no valor que a outra pessoa dá ao nosso ‘bem estar’ em uma situação de conflito, quando ela está computando a barganha? é ai que a raiva entra! A raiva é a nossa ferramenta para ‘ entrar’ no sistema nervoso do outro e modificar as prioridades dele para que atendam mais as nossas próprias.
Acontece que a raiva por si só provavelmente não tem poder suficiente para modificar a perspectiva alheia. Ou você nunca ouviu aquela frase, principalmente dos seus pais, no auge da sua raiva: “Vai ter dois trabalhos, ficar puto e desficar” (Bom, meu pai não falava palavrão, mas ele dizia, “Claro filho, você pode ir na festa, mas eu não vou te emprestar o carro”).
Para não arriscar o desperdício de energia da raiva, a pessoa irritada faz uso de duas outras ferramentas, essas sim, muito mais poderosas: o potencial para infligir custos no oponente, ou o seu potencial para retirar benefícios que são esperados.
“Claro meu amor, você não precisa concordar comigo, mas hoje não vai ter sacanagem pra você” diz a minha irmã para o marido dela (mas tudo bem, ele é Francês).
A maior parte dessas transações é mais efetiva se ficam no campo da ameaça. Ou seja, só com a reação de raiva sendo suficiente para mudar o comportamento alheio para atender as demandas do indivíduo, sem ter que partir para a agressão ou para a privação.
Isso porque todo esse ‘teatro’ é baseado, principalmente, na visão que a pessoa tem do seu próprio potencial de barganha. Se essa percepção estiver muito equivocada, ninguém vai dar atenção a ela, ou ninguém vai recusar nada a ela. Mas se essa percepção estiver apenas um pouco descalibrada, então o conflito pode ser perigoso.
Abre Parênteses:Aliás, esse parece ser o único porém desse excelente artigo, o grupo de indivíduos estudado é quem avaliou a sua própria propensão a raiva, em um questionário com perguntas do tipo: Você tem o pavio curto? Ainda que você não aja, você tem vontade de dar um murro na cara das pessoas? Você nunca arreda o pé de uma discussão? Fecha parênteses.
Mas é isso mesmo que os modelos comportamentais modernos mostram: que são as pessoas com maior poder de barganha que efetivamente se enraivecem com mais facilidade. Ou seja, não há ‘blefe’ no ‘sistema’ de raiva.
Abre Parênteses: uma conhecida teoria de blefe no sistema de raiva é o ‘efeito napoleão’, onde os indivíduos tentariam compensar a perda de poder de barganha da sua baixa estatura colocando força nos seus acessos de raiva. Fecha parênteses.
Então, pessoas que possuem um grande capacidade de machucar ou de causar privações nos outros, acabam esperando melhor tratamento dos outros, e ficam com raiva facilmente quando não recebem. Aposto que você conhece alguém assim, não conhece?
Mas assim como em outros programas neurocognitivos, não existem evidências de que os seres humanos conheçam as bases para o funcionamento desse processo ou ajam de forma consciente. Eles simplesmente conhecem seus efeitos na motivação e no comportamento. E usam e abusam deles.

Sell A, Tooby J, & Cosmides L (2009). Formidability and the logic of human anger. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 106 (35), 15073-8 PMID: 19666613

A raiva tem lógica

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(Essa é uma postagem colada e talvez você queira ler primeiro o artigo anterior)

“Os seres humanos diferem da maioria das espécies no número, intensidade e duração de relações de colaboração próximas”

Biologicamente, a raiva de baseia na habilidade das pessoas de mudarem o peso que dão ao bem estar alheio em função de uma reação raivosa. Mas claro, essa habilidade não responde apenas a isso, principalmente em uma espécie tão social como a nossa. Reciprocidade e troca são outros fatores que se somam a formidabilidade e conferibilidade e aos que comentamos anteriormente, capazes de influenciar no processo de decisão.
Sim, mas apesar desse papo todo bonitinho de colaboração, o que conta, no fim das contas, é mesmo o tamanho do braço.
Sim, os pesquisadores correlacionaram as respostas do questionário (que, não canso de repetir, incluía perguntas como: Você encara os outros? Desde os 14 anos você esteve em quantas brigas? A violência resolve problemas pra você?) com o a circunferência do biceps e a carga de peso levantada no supino. O resultado não poderia ser outro: uma correlação significativa com a propensão a raiva e com o histórico de brigas.
Não poderia ser outro porque na verdade estamos falando de uma herança ancestral. A força da parte superior do corpo sempre conferiu habilidade a um homem de infligir dor aos seus oponentes. Esse é, também, um dos principais critérios cognitivos para despertar atração das mulheres. Logicamente, então, a força muscular aumenta o ‘índice de formidabilidade’ de um indivíduo.
Abre parênteses. Curiosamente, não havia correlação com a capacidade de ruminar. Não, não estou chamando os fortões da academia de ruminantes. Ruminar é o termo, também nomeado no Inglês, para o tempo que uma pessoa permanece com raiva. Na verdade, nenhum dos parâmetros avaliados pelo estudo apresentou relação com a ruminância. Fecha parênteses.
Mas se a força na parte superior do corpo de um homem pode servir de argumento para que ele espere que as outras pessoas atendam as seus caprichos (ou sofram as consequências), será que esse argumento também funcionaria para as mulheres? É verdade que quando a minha fisioterapeuta me pegava pelo trapézio com apenas o polegar e o indicador, a dor era tanta que eu seria capaz de qualquer coisa. Ela nem precisaria dar um pitty.
Mas para as mulheres o critério é outro: a beleza! Quanto mais atraente uma mulher, maior também o seu índice de formidabilidade e, principalmente, de conferibilidade.
Você acha estranho? Não, não acredito. Depois de tudo que eu já falei aqui e aqui?! Mas se precisar ainda de um argumento, o artigo traz vários: A beleza é um importante critério de juventude e pessoas mais bonitas são mais valorizadas como parceiros sexuais, companheiros, aliados, tem salários maiores, maiores probabilidades de assumirem posições de liderança, para serem eleitas para cargos públicos e, até mesmo, recebem penas menores do sistema judiciário.
E ainda que as mulheres reclamem da quantidade de outras mulheres e de homens gays no mercado, o acesso sexual as fêmeas é um fator muito, mas muito mais limitante para os homens do que o acesso sexual aos homens é para as mulheres. E assim, mesmo uma pequena habilidade de oferecer acesso a sexualidade, garante um grande poder de barganha para uma mulher. Não me massacrem, por favor. A culpa é da seleção natural.
De fato, os autores encontraram que as mulheres mais bonitas (ou melhor, as que se percebem – e são percebidas – como mais bonitas – por fotos ou então por perguntas de questionário como: eu mereço mais do que uma pessoa comum? Eu sou melhor do que a maioria das pessoas?) são mais eficientes em resolver conflitos, tem maiores expectativas com relação ao que os outros devem oferecer a elas, e tem uma propensão significativamente maior a acessos de raiva.
Novamente, a beleza não se correlacionou com a ruminação. Mas porque o tempo que ficamos com raiva não se correlaciona com a propensão a raiva? A explicação é lógica. Se o papel da raiva é atrair atenção (e energia, e esforço) para os nossos problemas (ainda que caprichos), então ela deveria se dissipar logo depois do objetivo ter sido atingido. A ‘ruminação’ acontece quando alguma coisa nos impede de tomar uma ação direta enquanto estamos com raiva, e temos que avaliar se essa ação considerando as consequências. Que podem ser políticas, sociais ou até criminais. E como as leis se aplicam a fortes e fracos, feios e bonitos, a ruminação não se correlaciona com nenhum dos fatores medidos nesse estudo.
O artigo termina mostrando que a força muscular é fator mais relevante para avaliar a propensão a raiva do que a própria testosterona, que a propensão a raiva está ligada também a uma atitude mais conivente com a agressão (já que homens fortes e mulheres bonitas tendem a aceitar melhor que o seu país entre em guerra com um oponente) e que a propensão a raiva tem um componente filogenético (ancestral e evolutivo) mais forte do que o ontogenético (histórico e desenvolvido).
Ao que tudo indica, “o crime não compensa”, mas a raiva sim.

Sell A, Tooby J, & Cosmides L (2009). Formidability and the logic of human anger. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 106 (35), 15073-8 PMID: 19666613

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