A Posteriori

O lema do instituto onde eu trabalho é “Aqui se ensina porque se pesquisa” . Não tenho dúvida de que quem pesquisa, ensina melhor.

No semestre passado, enquanto explicava a toxicodinâmica de metais pesados para uma atenta turma de biologia, no meu desconhecimento de um exemplo adequado de ‘substituição específica‘ – quando o problema biológico é causado pela substituição de um elemento específico que faz parte da composição de uma enzima, por outro elemento qualquer que não faz parte dela – criei o meu próprio exemplo. Mas será que eu posso criar meus próprios exemplos?

A biologia não é como o direito, por exemplo, onde você pode exemplificar um contrato de compra de veículo usando um gol 1.0 ou um PT Cruiser, que dá no mesmo (ainda que não dê no mesmo para quem compra um ou outro). Lá, as regras que se aplicam a um objeto, se aplicam também ao outro. Na biologia, na maior parte das vezes, as regras mudam de acordo com os objetos.

Uma das proteínas, se não mais importantes, mais abundantes no nosso corpo é a hemoglobina, que tem a nobre função de transportar o oxigênio pelo corpo, viajando nos glóbulos vermelhos do sangue: as hemácias. A hemoglobina possui um núcleo estrutural e funcional, a molécula chamada “Heme” que tem o seu cerne, um átomo de ferro (Fe).

O ferro faz melhor, o que todos os outros metais podem fazer em alguma instância: trabalha tanto como doador, quanto como receptor de elétrons. No caso do ferro ele pode mudar de Fe2+ para Fe3+, e de volta para Fe2+, com muita facilidade. Essa habilidade é importante porque permite ao ferro fazer uma coisa bem difícil: pegar o oxigênio em um lugar e soltar em outro. Tudo bem que a abundância de oxigênio nos pulmões ajuda ele a pegar e a carência de oxigênio nos tecidos ajuda ele a largar. Mas em se tratando de divisão de elétrons com o oxigênio… doar é fácil, mas pegar de volta é bem difícil.

Calma, já vamos voltar ao problema do exemplo em sala de aula.

O ferro não está solto na molécula do Heme. Como vocês podem ver na figura abaixo, ele é ancorado por quatro nitrogênios. Só tem um elemento que o ferro gosta mais do que o nitrogênio e o oxigênio: o enxofre. E não só ele, mas todos os metais. Não é por acaso que quase todas as proteínas possuem os 3 elementos.


Não… não estou exagerando na bioquímica. O que eu estou fazendo é explicando a regra do jogo. Se você é advogado, psicologo, engenheiro ou tem outra ocupação, basta substituir essa regra por outra que a moral da história será a mesma.

Como eu estava dizendo, a regra do jogo é: os metais gostam de N, O e S. O ferro é o preferido, mas em determinadas condições (quando você está intoxicado) qualquer um deles pode entrar no lugar do ferro. E era exatamente pra explicar isso que eu precisava de um exemplo na hora da aula.

Talvez por que analisei a quantidade de Zn em mais de 1800 ostras da Baía de Sepetiba durante o doutorado, acabei falando que o Zn poderia substituir o Fe no Heme. Vou no quadro, desenho os 4 nitrogênios (como na figura acima), desenho o Fe, olho para a turma, espero uns 5 s, apago e coloco o Zn, olho para a turma de novo, dessa vez com olhar de “Tchan, tchan!!!“. Ai explico que Zn e Fe não tem o mesmo tamanho, que não trocam elétrons com a mesma facilidade… e algumas outras razões para que o Heme com Zn não funcione. Tudo era meio hipotético, mas pela cara deles, minha explicação funcionara e todos haviam entendido, hipoteticamente, uma ‘substituição específica‘.

Ótimo. Até que na prova eu pergunto um efeito dos metais pesados e os meus quase 60 alunos respondem, em peso: a substituição do Fe pelo Zn na anel porfirínico do Heme. Gelei! Todo mundo tinha tomado como verdade o meu exemplo fictício. E agora?! Lembrei da responsabilidade do professor como ensinada pela profa. Marlene Benchimol: “Um erro é multiplicado por muitos“.

Fui fazer então o que deveria ter feito antes da aula: estudar! Livro de toxicologia pra cá, livro de bioquímica pra lá… artigos novos, artigos antigos… e finalmente encontro. Ela… linda… a Zinco protoporfirina!

A ferroquelatase, a enzima responsável por colocar o ferro dentro do anel porfirínico durante a síntese do Heme, na falta de ferro (como por exemplo na anemia) coloca um atomo de Zinco no centro do Heme. Em certos animais, como as galinhas, que tem a atividade da ferroquelatase baixa (menor que nos camundongos) o Zn em excesso entra de forma não enzimática no Heme!!! Eu sei que vocês não vêem razão para tantas exclamações, mas é lindo!!! E é um exemplo perfeito, e real, do exemplo que eu havia criado em sala de aula!!!

Isso me fez pensar: a intuição é um pouco como a criatividade. Pegue as coisas que você tem armazenadas no seu cérebro e use bem de acordo com as regras que você conhece, e o resultado deve ser bom. Se você conhece muitas coisas, e sabe muitas regras, o resultado pode ser surpreendente. E quem faz isso bem? O pesquisador! Certo, você não vai acertar sempre (afinal, não há como saber todas as regras e nem todas as condições de reação), mas não vai fazer ‘bruta figura’ com os seus alunos. E eles todos vão se dar bem na prova.

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