Seriam os seres humanos essencialmente bons?

2001

“Uma minoria de vândalos”

A frase passou da boca dos manifestantes, que queriam demonstrar para a sociedade que as imagens apresentadas pelos jornais e autoridades, como justificativa para o comportamento da PM; para as editorias dos próprios jornais, como anteciparam tantos dos meus amigos menos ingênuos, para que toda sorta de políticos e autoridades possam se apropriar das manifestações, contrárias a eles, que estão nas ruas.

“Deixem as ruas sem polícia e vamos ver o que dirão os manifestantes depois de 2 dias…” dizia um outro amigo, republicano radical, mas coberto de razão: assustados com a violência dos manifestantes para com o patrimônio público, com a polícia e com os próprios manifestantes, a galera mais tranquila dos protestos está assustada.

O que me chama atenção nos protestos do país do carnaval é a doce e ingênua ilusão, amplamente arraigada e difundida, que o ser humano, e especialmente o brasileiro, é, essencialmente, bom. Essa é uma gigantesca falácia que não encontra nenhuma sustentação na nossa história biológica ou cultural.

Explico.

Quando o clima começou a muda há cerca de quinze milhões de anos e as florestas que cobriam a europa e a Asia começaram a desaparecer, os símios resolveram descer das árvores e lançarem-se na vida terrestre, competindo com os outros animais, altamente especializados, que dominavam o pedaço. Para sobreviver, Ou se tornavam melhores assassinos que os carnívoros já experimentados, ou melhores pastadores que os herbívoros já existentes. Fomos bem sucedidos em ambos os setores, mas a agricultura, fruto da cultura, demorou muito para aparecer. Por outro lado, como diz Desmond Morris no sensácional livro ‘O Macaco Nu’ “era fácil apanhar animais jovens de todas as raças, desprotegidos ou doentes, e o primeiro passo para se tornar carnívoro não foi muito difícil.”

Compreender as mudanças de comportamento decorrentes dessa mudança de dieta é fundamental.

“passamos de vegetarianos a carnívoros (…) uma grande transformação desse gênero produz um animal com dupla personalidade. (…) Assume-se o novo papel com grande energia evolutiva (…) Ainda não houve tempo para se libertar de todos os velhos traços, mas apressa-se a adquirir novas características. Desenvolvemo-nos essencialmente como primatas de rapina. (…) Todo o seu corpo e modo de vida foram desenvolvidos para viver entre as árvores e, subitamente (em termos de evolução…), foi projetado num mundo onde apenas poderia sobreviver se se comportasse como um lobo inteligente e colecionador de armas.” , diz Desmond.

E continua: “A princípio, o macaco pelado não podia competir com os assassinos profissionais do mundo carnívoro. (…) um gato grande, era mais exímio em matar. (…) Os primeiros macacos terrestres possuíam já grandes cérebros de alta qualidade. Tinham bons olhos e mãos capazes de agarrar eficientemente as presas. Pelo fato de serem primatas, tinham também, inevitavelmente, um certo grau de organização social. À medida que as circunstâncias os obrigavam a aperfeiçoar-se na matança das presas, começaram a ocorrer modificações vitais: tornaíam-se mais eretos — correndo melhor e mais rapidamente; as mãos libertaram-se das atividades locomotoras — permitindo empunhar armas com mais força e eficácia; os cérebros tornaram-se mais complexos — tomando decisões mais rápidas e inteligentes. Tudo isso não se sucedeu segundo uma ordem bem estabelecida (…) uma competição baseada nas condições já existentes, (…) , originando um assassino mais parecido com o cão ou com o gato, (…) poderia ser desastroso para os primatas. (…) Em vez disso, fez-se uma tentativa completamente nova, em que se empregaram armas artificiais em lugar de armas naturais, o que dou resultado. (…) Pouco a pouco ia se formando um macaco caçador, um macaco assassino.

Foi quando a coisa começou a ficar perigosa para a nossa espécie. Ou, quando nós começamos a ficar perigosos para a nossa própria espécie.

“Para compreendermos a natureza dos nossos instintos agressivos, temos de encará-los segundo a nossa origem animal. A nossa espécie está atualmente tão preocupada com a violência e com a destruição em massa, que somos capazes de perder objetividade ao discutir esse assunto. Ê um fato comprovado que os intelectuais mais sensatos se tornam muitas vezes violentamente agressivos quando discutem a necessidade urgente de suprimir a agressão.”

Como isso funcionava com os nossos antepassados primatas omnívoros e com os carnívoros ‘puros’?

Entre os primatas, não há muito espírito cooperativo, como sucede entre outros animais — os lobos, por exemplo — que caçam em grupo. Existe sobretudo competição e dominação. Claro que em ambos os grupos existe competição na hierarquia social, mas no caso dos macacos e símios não há atividades cooperativas que a atenuem. (…) [Já para os carnívoros] no decurso de encontros sociais, as armas selvagens, tão importantes para a caça, constituem uma ameaça potencial para a vida e são utilizadas para resolver as mais íntimas disputas e rivalidades. Quando dois lobos ou dois leões se zangam, ambos estão tão fortemente armados, que, em questão de segundos, a luta pode originar mutilação ou morte. Isso podia ameaçar de tal maneira a sobrevivência das espécies, que, durante a longa evolução em que foram aperfeiçoando suas mortíferas armas de caça, os carnívoros tiveram igualmente necessidade de criar poderosas inibições quanto ao uso das armas contra os outros indivíduos da própria espécie. Tais inibições parecem ter uma base genética específica: não precisam ser aprendidas. Criaram-se posturas submissivas especiais, as quais apaziguam automaticamente um animal dominador e inibem-no de atacar.”

Mas para que lutar? Existem duas razões: ou para estabelecer domínio numa hierarquia social, ou para estabelecer os direitos em um território.

“Algumas espécies são puramente hierárquicas e outras puramente territoriais. Outras [ainda] mantêm hierarquias nos seus territórios e têm de encarar ambas as formas de agressão. Pertencemos ao último grupo: temos os dois problemas. (…) [com um agravante] a prolongada fase de dependência dos mais novos, que levou à adoção de unidades familiares unidas aos pares, exigia (…) que Cada macho passasse a defender a sua própria habitação no interior do grupo. (…) Como cada um de nós sabe por experiência própria, essas formas de agressão ainda hoje são bem manifestas, apesar das complexidades da sociedade atual.”

Apesar do que os muitos antropólogos (e eu sou fã e amigo de Massimo Canevacci e Alba Zaluar), sociólogos (e sou também fã e amigo de Domenico De Masi) e cientistas políticos falarão sobre os eventos dos últimos dias, cada um com uma explicação diferente (ou não) para os eventos, todos eles, TODOS, sem exceção, terão uma coisa em comum: ignorarão o papel dos nossos traços instintivos e heranças biológicas e relíquias comportamentais do nosso lado animal.

Não existe bom ou ruim. Por milhões de anos, para nos impormos como espécie, precisamos colocar em prática os nossos instintos mais violentos e conseguir outros. Somos violentos! Somos muito violentos! E ainda vamos precisar de muitos anos de escola e família, abundância de recursos e de um monte de outras coisas, para abandonarmos essa furia. Até lá… eu acho melhor não ignorar isso.

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