"Eu vejo… pessoas"

No (já considerado) clássico moderno “A Verdade Sobre Cães e Gatos”, o autor fala de sua experiência em uma discoteca na década de 80, quando resolveu argumentar sobre a viabilidade da astrologia com uma gatinha que ele tinha abordado e que tinha despretenciosamente tinha perguntado a ele qual era seu signo. Ele falou que Ptolomeu e Copérnico, sobre bilhões e bilhões de estrelas e sobre o charlatanismo. E ela… foi embora.

É impressionante a nossa capacidade de não responder o que foi perguntado ou de responder o que não foi perguntado. Ou, simplesmente, de falar demais. Principalmente quando falamos com (ou quando queremos impressionar) garotas bonitas. E foi isso que aconteceu, de novo, hoje.

Eu acesso super pouco o Twitter, mas hoje, quando dei uma olhada, lá estava ela, Eliane Brum, divulgando seu novo texto sobre a audiência pública do amianto no STF. Finalmente a minha jornalista preferida falava de um assunto sobre o qual eu podia me manifestar com propriedade.

brumelianebrum: Nesta sexta, começa a audiência pública do amianto no STF. Entenda o que está em jogo. Se puder, ajude a divulgar http://t.co/rCiRsa2s 23/08/12 14:09
brumelianebrum: Infelizmente, parece que parte dos brasileiros só vai acordar p/ os riscos do amianto qdo começarem as mortes p/ contaminação ambiental 23/08/12 14:11
brumelianebrum: É bem triste, mas enquanto “só” morrem trabalhadores, de mesotelioma e asbestose, mta gente acha que ñ precisa fazer a sua parte de cidadão 23/08/12 14:14
brumelianebrum: Quem anda pelo Brasil vê assentamentos, quilombos e aldeias indígenas cobertas de telhas de amianto. Como é possível? Por quê? 23/08/12 14:15

Eu estudo mecanismos de toxicidade, eu conheço epidemiologia de poluentes ambientais e até entendo de exposição ocupacional de um monte de substâncias tóxicas incluindo… o asbestos. Minha amiga Valéria Borges, pesquisadora da FIOCRUZ Bahia estudava os granulomas formado nos pulmões de trabalhadores da indústria naval expostos ao asbestos e que desenvolviam o ‘Pulmão de pedra’ no mesmo corredor do instituto de Biofísica da UFRJ onde eu avaliava a contaminação por Cádmio na Baia de Sepetiba e por Mercúrio no lago do Puruzinho na Amazônia. Fiquei tentado a responder a pergunta dela, e respondi:

vcqebiologo
@brumelianebrum o risco da exposição ocupacional ao amianto é muito bem compreendido, enquanto o risco da exposição ambiental é bem menos
23/08/12 14:19
vcqebiologo
@brumelianebrum E compreensão de risco, você sabe, é uma questão de educação científica e de ensino universitário de qualidade
23/08/12 14:21
brumelianebrum
@vcqebiologo Concordo. Mas também de capacidade de enxergar além do seu umbigo.
23/08/12 14:23
vcqebiologo
@brumelianebrum com uma sociedade distante da universidade, é mais difícil compreender o problema do amianto (e do mercúrio, e da soja…)
23/08/12 14:24
brumelianebrum
@vcqebiologo Verdade.
23/08/12 14:25
vcqebiologo
@brumelianebrum Sim, mas a maior parte dos estudantes do BR não sabe fração. Como entender a probabilidade e o risco, ainda que enxerguem?
23/08/12 14:26
vcqebiologo
@brumelianebrum E sem entender o risco… não tem atitude, caem no marasmo e voltam pra TV e pros problemas do próprio umbigo.
23/08/12 14:28
brumelianebrum
@vcqebiologo Qdo vejo alguém doente pq trabalhou numa fábrica q sabia dos riscos e ñ contou,eu enxergo.Enxergaria mesmo se ñ soubesse fração
23/08/12 14:29
vcqebiologo
@brumelianebrum eu não quero dizer que a solução é dar educação. Isso é óbvio. Mas podemos começar prendendo quem faz isso com o trabalhador
23/08/12 14:33
vcqebiologo
@brumelianebrum por mais que problemas como o amianto sejam terríveis (e eu estudo muitos deles), falta de saneamento básico ainda é o pior
23/08/12 14:36
brumelianebrum
@vcqebiologo Algo interessante a se observar é q as pesquisas financiadas pela ind. do amianto são produzidas por profes. da Usp e Unicamp
23/08/12 14:37
vcqebiologo
@brumelianebrum A quantidade de Hg nos lagos da amazônia é menos perigosa para ribeirinhos do q a quantidade de coliformes fecais nessa água
23/08/12 14:38
vcqebiologo: @brumelianebrum hehe… assim como são as de medicamentos questionáveis. O título acadêmico infelizmente não garante idoneidade moral 23/08/12 14:40
vcqebiologo: @brumelianebrum quer chamar atenção da sociedade para além do umbigo? Veja o uso rejeito químico como complemento mineral em ração animal 23/08/12 14:43
vcqebiologo: @brumelianebrum os índices de câncer de mama e outros em bichanos vem aumentando loucamente nos últimos anos 23/08/12 14:45
vcqebiologo: @brumelianebrum e você sabe… pode mexer com índio e pobre, mas se mexer com os ‘pets’… as madames gritam! 😉 23/08/12 14:45

Como naquela noite no Clube Naval em Charitas, fiquei falando sozinho. Me senti, depois, como uma das pessoas que ela provavelmente criticava. Sem a capacidade de “enxergar além do próprio umbigo”. No meu caso específico, de enxergar além da ciência do que eu estava falando, de enxergar as pessoas.

O título do post é uma brincadeira com a fala do personagem de Haley Joel Osment no filme ‘O sexto sentido’ de M. Night Shyamalan: “I see dead people” (eu vejo pessoas mortas). Eu tenho que confessar que enxergar as pessoas não é o meu forte, principalmente quando se trata de ciência. Eu poderia ficar ali a tarde toda, discutindo com ela argumentos de porque é inútil tentar resolver qualquer problema ambiental. A verdade é que a pouca esperança que as pessoas tem de que podem resolver algum problema ambiental é baseada em… esperança. Quanto mais investigo os problemas ambientais mais compreendo duas coisas: os homens serão os responsáveis por sua própria extinção (levando consigo algumas outras várias espécies) mas para o planeta, isso não fará a menor diferença. Um milhão de anos atrás o planeta era completamente diferente do que é hoje e daqui a um milhão de anos, será, novamente, completamente diferente.

Para a maior parte das pessoas, o que importa, são pessoas. Elas não estão preocupadas com eventos que acontecem na escala do muito pequeno (eletrônicos e quânticos) nem do muito grande (espaciais). Elas vivem o hoje, o ontem e o amanhã. Vá lá, o ano passado e o ano que vem. Mas falar em separação dos continentes e evolução das espécies é um pouco demais. Para elas não adianta dizer que, cientificamente, não há solução. Para elas, a solução está em acabar com aquela dor.

E se um cientista almeja divulgar a ciência para a sociedade, e que essa sociedade pague pela sua ciência, precisa ver isso. Vamos torcer para que os ministros do supremo, mesmo em meio ao julgamento do mensalão, vejam.

"Estamos em busca de um conceito para o vocábulo vida"


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A solicitação foi feita pelo ministro do supremo tribunal federal (STF) Carlos Ayres Britto a 22 cientistas na audiência pública do processo de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança de 2005, aquela que permitiu o uso de embriões humanos para a pesquisa com células tronco.

Não foi um pedido simples. O tema adentra não só em um debate filosófico e moral que nem mesmo os grandes pensadores da humanidade conseguiram chegar perto de resolver, mas também em um complicado problema científico.

Atualmente o problema é abordado pelos astrobiólogos, aquelas pessoas que buscam indícios de vida fora da Terra. Uma dessas pesquisadoras, dra. Claudia Lage do Instituto de Biofísica da UFRJ, inicia sua palestra dizendo que: “Não existe uma definição de vida. Podemos denominar os atributos da vida, mas não definí-la”.

Se pensarmos bem, quando estávamos no ensino fundamental, aprendemos que os seres vivos têm características (esses atributos): nasce, cresce, reproduz e morre. Mas isso não é uma definição.

Para transformá-la em um definição, precisaríamos adicionar o ponto de vista bioquímico (entidades que possuem metabolismo), genético (entidades capazes de auto-replicação e evolução) e até termodinâmico (sistemas abertos onde a entropia tende a diminuir). Porém, todas essas definições encontram problemas para explicar algumas exceções: algumas vezes as máquinas também apresentam essas mesmas características, e outras vezes, alguns seres vivos falham em apresentar alguma delas.

Abre parênteses. Aqui começa um outro problema. A definição de vida tem de se aplicar a todo tipo de vida, mas os filósofos e juristas estão preocupados apenas com um tipo: a vida humana. Mesmo os ativitstas radicais dos direitos dos animais estão preocupados apenas com os animais ‘superiores’, um eufemismo para mamíferos com sangue quente e domesticados: cães, gatos, gado e cobaias de laboratório (ratos, camundongos, coelhos, porquinhos da Índia e macacos diversos). Até hoje não vi um comitê dos direitos das Salmonelas e Escherichias (bactérias utilizadas em testes de toxicidade e experimentos de genética e biologia molecular). Apenas o Canadá sugere um procedimento para o sacrifício de peixes utilizados em pesquisa. Fecha parenteses.

Alguns filósofos gregos imaginavam a concepção mesmo antes das evidências científicas da fecundação (que só apareceram no século XVII com o advento do microscópio) e determinavam que ali estava o momento da concepção. Durante toda a idade média o conceito vigente era de que a vida começava quando o feto também começava a se mexer na barriga da mãe.

No Renascimento, Descartes complicou a questão com o seu ‘ penso, logo existo’. O ser vivo só passou a ser ‘humano’ depois de ter a consciência da sua existência. A Igreja também gostava dessa idéia, porque podia ser associada diretamente ao conceito de alma. Mas quando as primeiras pesquisas de embriogênese no sec XVIII mostraram o momento da fecundação e o desenvolvimento do embrião, até mesmo a Igreja se dobrou e passou a aceitá-lo como o início da vida.

Mas no que se difere um zigoto de uma outra qualquer célula dentro do organismo? Certamente ambos estão vivos. Tirando as unhas, pelos, cabelos e a camada superficial da pele, todas as células do nosso corpo estão vivas. O potencial para se diferenciar em um organismo também não é um argumento definitivo. Muitas outras células se diferenciam durante o seu processo de desenvolvimento e também se multiplicam formando tecidos e órgãos inteiros. A capacidade de diferenciação não é uma característica definida por algo que apenas o zigoto tem, mas pela forma única pela qual o zigoto controla algo que todas as outras células têm.

Alguns cientistas defendem que o momento do início da vida está mais adiante, quando o óvulo fecundado adere à parede do útero, que é quando ele realmente passa a ter chances de se desenvolver. Outros vão ainda mais adiante e sugerem que a vida começa a partir da segunda semana de desenvolvimento, quando aparecem as primeiras terminações nervosas que resultarão no cérebro. Para os biólogos que trabalham em escalas macroscópicas, um bebê com menos de 5 anos de idade não tem chances de sobreviver sozinho e por isso poderia nem mesmo ser considerado como ‘vida independente’. Isso leva a uma outra discussão sem solução, que é de onde vem a vida? Mas disso eu trato em um outro artigo, aqui.

O fato é que quanto mais a ciência avança, mais complexa se torna a questão, e mais difícil o consenso. Mesmo quando se tenta definir a vida pelo seu oposto, a situação continua complicada, já que determinar o momento da morte é tão difícil quanto o início da vida. Sem um consenso científico do que seja a vida e de quando ela se inicia, não é de se espantar que não haja consenso jurídico.

O direito avança bem mais lentamente que a ciência ou mesmo a sociedade. Imagino que até mesmo por isso, os princípios fundamentais são tão amplos. A ponto de na constituição de 1988 estarem garantidos o ‘direito à vida’, assim como ‘direito à felicidade’. Mas garantidos a quem?

“Na verdade, na verdade o feto não tem personalidade jurídica, então, à rigor, não tem direito nenhum. Mas o Direito preserva os direitos futuros, e assim resguarda os interesses do nascituro” diz a advogada Juliana Fernandes.

Ao dar o seu voto na questão da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, o ministro relator Carlos Ayres Britto, afirmou que a Constituição Federal vale para os brasileiros nascidos vivos, não para embriões. “É preciso vida pós-parto para ganho de personalidade perante o Direito. (…) A vida tem três realidades que não se confundem – o embrião, o feto e o ser humano. (…) Não há uma pessoa humana embrionária, mas sim um embrião de pessoa humana. Na definição jurídica, a vida humana revestida de personalidade civil transcorre entre o nascimento com vida e a morte.”

Essa questão foi dedicida e o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a regulamentar o uso de embriões humanos em pesquisa e continua sendo um dos poucos países com uma clara legislação a respeito, o que permitiu que hoje nossos pesquisadores, mesmo com escassez de recursos, sejam lideres nessa área de pesquisa. Mas o problema está longe de estar resolvido.

Em resposta a uma solicitação de um defensor público em favor de oito filhos de detentas de São Bernardo do Campo (SP), o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu que bebês que ainda não nasceram podem entrar com uma ação na Justiça e pleitear seus direitos.

“O zigoto é um individuo humano actual e não simplesmente um potencial do mesmo modo uma criança é uma pessoa humana com potencial para desenvolver a maturidade”.

Para Teresa Ancona Lopez, professora de direito civil da Universidade de São Paulo (USP), a decisão abre um importante precedente. “Apesar de o feto ainda estar em gestação, ele tem muitos direitos assegurados”, afirma. Ela explica que, nestes casos, a ação não é impetrada no nome que a mãe pretende registrar a criança, mas em nome do “nascituro” da seguinte cidadã.

“Existe uma diferença entre pessoa e sujeito de direito. O feto não é pessoa ainda, mas ele é sujeito de direito. E, com isso, já tem direitos assegurados”, explica Teresa. “A mãe tem que ser bem cuidada porque isso vai refletir nele (bebê)“, afirma.

E se, e quando, o Direito avançar para as áreas além das humanas, os dilemas já estarão lá esperando, porque recentemente a dra. Silvana Allodi do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ acabou de publicar o primeiro estudo sugerindo que células tronco de invertebrados levam a formação do sistema nervoso desses animais.

O que podemos dizer é que para que haja vida independente, é necessária a conjunção de uma série de fatores. E a falha em qualquer um deles, ainda que não diretamente, vai levar à morte. É uma boa definição.

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