A Fundação Rockefeller e o Modelo Filantrópico de Medicina

FMUSP contrução

Construção da sede da Faculdade de Medicina – Foto de 31 de Julho de 1929. Cortesia do Acervo da FMUSP

Parece ter havido um momento bastante peculiar e relativamente curto, logo no início do século XX, no qual as práticas de saúde, medicina incluso, sofreram uma modificação estrutural de proporções gigantescas. A formação médica, que era baseada na transmissão de conhecimentos do prático a seus aprendizes, muda repentinamente seu eixo em direção às grandes instituições de ensino médico; o estudo anedótico de casos clínicos dá lugar, sucessivamente, à estatística vital, à epidemiologia clínica e, claro, posteriormente à medicina baseada em evidências; Galeno sai, finalmente, de cena e entra Claude Bernard; o francês e o alemão, como línguas científicas, cedem espaço ao inglês. A maleta do médico é progressivamente substituída pelo hospital; tudo isso em não mais que um par de décadas.

Muito tem sido escrito sobre qual o papel desempenhado pelas fundações filantrópicas e, especificamente, a Fundação Rockefeller (FR), nessa revolução. Ele não foi pequeno. Há centenas de livros, documentários, artigos e uma simples busca na internet revela uma enorme quantidade de informações confiáveis em meio a outras cuja veracidade é difícil comprovar. A atuação da FR, bem como de outras entidades filantrópicas, na área educacional em geral e no ensino médico em particular, além de sua influência na saúde pública, agricultura, e outras tantas áreas nas quais a ciência estava em pleno desenvolvimento na época, tem sido tanto objeto de críticas violentas, como defendida com fervor e devoção até hoje. Mas, uma questão permeia incomodamente todo esse corpus monumental de ideias: Por que os maiores de todos os filantropistas, os Rockefellers, Senior e Júnior, orientados pelo reverendo batista Frederick Taylor Gates, escolheram a medicina? Tal decisão não parece ter sido tomada de modo súbito e consciente desde o início. A questão do saneamento básico era premente naquela época: esgotos a céu aberto, pobreza, água não tratada, epidemias de cólera, febre tifóide, ancilostomíase, febre amarela e malária dizimavam a população e diminuíam drasticamente a produtividade dos trabalhadores, em especial no Sul dos Estados Unidos. Com esse quadro caótico, nada mais natural que os incentivos às campanhas de erradicação de pragas, à pesquisa de novas técnicas agrícolas e ao fomento da ciência biomédica, bem como a construção de escolas e outros tantos projetos desenvolvidos por Gates e financiados pelos Rockefellers. Inicialmente com a fundação do Rockefeller Institute for Medical Research (hoje a Rockefeller University) em 1901, e depois, por meio do General Education Board a partir de 1903, a predileção quase obsessiva pelo ensino médico só viria manifestar-se com todas as suas características após o estabelecimento da Fundação Rockefeller em 1913 (perfazendo seu centenário em 2013, portanto).

Duas linhas de pensamento orientavam as práticas médicas na segunda metade do século XIX. A medicina social era, como vimos, um campo em pleno desenvolvimento e nomes como Villermé, Buchez e Guérin na França; Neumann, Virchow, e Leubuscher na Alemanha, estudavam as causas sociais e ocupacionais das doenças. Rudolf Virchow (1821-1902), um dos pais da patologia celular moderna e um dos médicos mais importantes do século XX, defendia que a medicina “deveria intervir na vida política e social”.  Por outro lado, desde Pasteur e Koch, proponentes da teoria infecciosa das doenças, uma visão algo mais “conservadora” começou a dominar a pesquisa médica já que a identificação de agentes responsáveis por toda a constelação clínica de sinais e sintomas que uma doença específica causa, encorajou a ideia de que terapias específicas tratariam doenças específicas. A descoberta de tais terapias deveria ter precedência sobre fatores econômicos e sociais. Não por acaso, Virchow se envolveu em embates sobre o assunto com Koch e Semmelweis, este último, o descobridor de que a causa da febre puerperal era a falta de higiene das mãos dos médicos. Quando da apresentação de Koch na Sociedade de Fisiologia de Berlim em 1882 sobre a descoberta de que um bacilo causava a tuberculose, Virchow, cuja visão podia ser classificada como “anticontagionista”, se opôs veementemente. Para Virchow, o fato de carregarmos bactérias em nosso organismo era sinal de que tais “micróbios” só causariam doenças se, por algum motivo, o hospedeiro se enfraquecesse. O anticontagionismo teimoso de Virchow foi uma reação à passagem para segundo plano de sua “teoria social das doenças”. Ambos médicos receberam verbas de seu país, montaram laboratórios influentes, receberam fellows e foram pesquisadores reconhecidos mundialmente, mas a visão “científica” de Koch e Pasteur era a mais adequada a quem tinha a “caneta na mão”. Para Gates, a miséria era uma questão técnica, não social. Como escreveu Brown [1]

Quando Gates, [Rockefeller] Júnior e outros homens da Fundação Rockefeller decidiram estabelecer a primeira escola de saúde pública dos EUA, eles selecionaram o Dr. Welch e a Johns Hopkins como seus veículos sabendo que a nova escola deveria ter forte ênfase nas ciências básicas e não divagar em questões sociais.

A resposta à pergunta “por que a medicina?” pode servir de base para entendermos a medicina que é praticada em grande parte dos países ocidentais e também no Brasil atualmente. Quando John D. Rockefeller o chamou para coordenar as ações filantrópicas do que viria a se tornar a Fundação Rockefeller em 1890, Gates comprou um exemplar do livro do canadense William Osler da Johns Hopkins (que, aliás, estagiou com Virchow em 1873), um dos médicos mais influentes da época [2]. Gates ficou fissurado pelo livro. Em uma série de memoranda enviadas ao seu “chefe”, ele defende que o desejo por saúde é uma força unificadora “cujos valores permeiam tanto o palácio do rico quanto a cabana do pobre. A medicina é um serviço que penetra todos os lugares”. Portanto, “os valores da pesquisa médica são os valores mais universais da Terra e eles são os mais importantes e individuais de cada ser vivente”[3]. Com a medicina, o reverendo Gates queria converter pagãos e angariar mercados de matérias-primas e viu nela um quebra-nozes cultural, capaz de transpor as barreiras que exércitos não poderiam transpor. A medicina tecno-científica seria o substituto secular do proselitismo cristão com as vantagens de poder exibir resultados incontestáveis na melhoria da vida das pessoas. A FR injetou 45 milhões de dólares na China para modificar a Peking Union Medical College e quantidade similar nas Filipinas, Tailândia, México, entre outros tantos países. Para o nosso país, valem as palavras da professora Maria Gabriela Marinho [4], maior estudiosa do assunto:

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, mais particularmente em São Paulo, o ensino e a pesquisa na área biomédica foram dimensões privilegiadas desse apoio institucional cujas origens podem ser identificadas em 1916, quando estabeleceram-se os primeiros contatos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Desses contatos iniciais resultaram dois grandes acordos, envolvendo recursos específicos e de grande monta: o primeiro, com vigência entre 1918 e 1925, destinado à criação do Instituto de Hygiene e para o qual foram enviados dois pesquisadores norte-americanos, Samuel Taylor Darling e Wilson Smillie. Como desdobramento deste mesmo acordo, foi criado ainda o Instituto de Pathologia, onde atuaram, entre 1922 e 1925, dois outros pesquisadores estrangeiros: o canadense Oskar Klotz e o norte-americano Richard Archibald Lambert. Especificamente no campo da Higiene, o processo traduziu-se pela criação, sucessivamente, da Cadeira de Hygiene (1916), depois Departamento de Hygiene (1917), posteriormente Instituto de Hygiene (1918), que resultou, finalmente, em 1946, na implantação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública. O segundo grande acordo visou especificamente à reformulação da estrutura acadêmica da Faculdade de Medicina com o objetivo de transformá-la em instituição modelo para a América Latina, com base no projeto de excelência das Rockefeller’s Schools, disseminado em escala planetária e assentado no modelo uniforme de tempo integral para pesquisa e docência nas disciplinas pré-clínicas, numerus clausus (limitação do número de vagas) e criação do Hospital de Clínicas, recomendações preconizadas em 1910 pelo Relatório Flexner, encomendado pela Fundação Carnegie e substrato das reformas do ensino médico norte-americano no período. A abrangência da intervenção na Faculdade de Medicina de São Paulo pode ser aferida, entre outros indicadores, pelo volume de recursos a ela destinados pela FR: foram transferidos cerca de um milhão de dólares entre 1916 e 1931 para a remodelação do ensino médico. Aproximadamente no mesmo período – 1916-1940 – a mesma agência destinou cerca de quatro milhões de dólares para o combate à febre amarela em todo o território brasileiro.

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estabeleceu-se como uma “Rockefeller School”. Muitas outras escolas médicas a seguiriam em seu modelo hopkinsniano de ensino e pesquisa, algo avesso às “divagações sociais” e que floresceria na Ásia, Europa e América na primeira metade do século XX. Podemos afirmar que a formação médica no Brasil jamais seria a mesma após sua fundação. A pergunta que se impõe agora é saber quais os possíveis efeitos colaterais desse modelo vencedor de fazer medicina dado que os efeitos desejados, já são conhecidos: a FMUSP vem cumprindo seu papel de liderança no cenário médico brasileiro e latino-americano com projeção internacional. Quando perguntei se “ao trazermos, com força, ao debate acalorado de hoje, a ciência que nos embasa e nossa própria sabedoria prática médica como argumentos inelutáveis ao criticismo “laico”, não estaríamos também invocando os fantasmas de um certo “conservadorismo sofisticado”, autoritário e paternalista, aos moldes dos grandes filantropistas à frente de suas poderosas fundações?” era sobre isso que eu gostaria de saber. Sempre que somos chamados a nos posicionar sobre assuntos que nos dizem respeito – da vinda de médicos estrangeiros e sua forma de fazer medicina, às políticas de saúde, formas de remuneração e relação com outros profissionais -, não devemos nos esquecer das bases históricas, políticas e sociais nas quais nossa formação se insere, sob o risco de, ou associarmo-nos a mudanças sociais indesejáveis, ou retardarmos as que legitimamente representam um anseio da população, dado o papel singular que a medicina desempenha na sociedade, como já notava Gates. É preciso olhar um pouco para baixo e ver do lugar a partir do qual falamos. O “modelo filantrópico de medicina” foi uma alternativa norte-americana ao modelo “social” de medicina proposto por Virchow, pela Columbia e por outros tantos autores de orientação marxista. Sem juízo de valor, para que nos utilizemos melhor dele, será preciso nos emancipar de seus eloquentes resultados e considerar também o que foi deixado para trás, em especial, aquilo que ainda não nos é dado ver.

 

[1] Brown, ERRockefeller Medicine Men: Medicine e Capitalism in America. Berkeley, University of California Press, 1979. Disponível para download em Rockefeller medicine men : medicine and … – Revalvaatio.org

[2] Osler constituiu um dos quatro cavaleiros fundadores da Escola de Medicina da Johns Hopkins, chamados de The “Big Four” junto com William Stewart Halsted, Professor de Cirurgia, Howard A. Kelly, Professor de Ginecologia e  William H. Welch, Professor de Patologia. Um dos grandes méritos de Osler foi insistir na Residência como parte integrante e insubstituível da formação do médico.

[3] Gates, FT. “Address on the Tenth Anniversary of the Rockefeller Institute,” 1911, Gates collection, Rockefeller Foundation Archives, in Brown, ER.

[4] Marinho, MGSMCHorizontes, Bragança Paulista, v. 22, n. 2, p. 151-158, jul./dez. 2004 (pdf)

USP – Universidade Classe Mundial?

Publico aqui, com autorização da autora, carta da professora Rita Cruz, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP. É uma carta-reflexão sobre a proposta de alteração regimental na pós-graduação da USP de que falávamos. De forma clara e brilhante, ela expõe os desencontros da política universitária do Estado de São Paulo que, a pautar-se pela interpretação fria de rankings e pelas comparações grosseiras entre as instituições, afeta diretamente a maior universidade do país com consequências desastrosas. Mais que isso, provoca uma reflexão sobre qual o papel da universidade na sociedade paulista e brasileira atuais deixando a pergunta: qual a melhor forma de uma universidade latino-americana portar-se para estar entre as melhores do mundo? Um simples “copy-paste” resolve?

~ o ~

Universidade Classe Mundial: paradoxos de um  pensamento ao mesmo tempo neoliberal e neocolonialista

Como é do conhecimento de todos, estamos vivendo um processo de reformulação do Regimento Geral da Pós-Graduação da USP. Conforme declarações públicas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, as mudanças propostas fazem-se necessárias no sentido de transformar a USP em uma Universidade Classe Mundial.

Todavia, o que nos tem inquietado a muitos, alunos e professores da USP, diz respeito à pertinência/necessidade de algumas das mudanças anunciadas, entre as quais se pode destacar:

  1. exame de qualificação obrigatório para todos os alunos da pós-graduação, a realizar-se em até 12 meses de seu ingresso;
  2. exclusão da possibilidade de re-apresentação do Relatório de Qualificação no caso de reprovação;
  3. necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;
  4. orientador sem direito a voto nas bancas examinadoras finais.

A principal argumentação utilizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação para justificar tais mudanças é a referência a IES [instituições de ensino superior] estrangeiras, as quais têm modus operandi similares ou iguais a este que se propõe hoje para o Regimento da Pós-Graduação da USP, ressaltando-se o fato de que tais Instituições são melhores ranqueadas internacionalmente que nós. Naturalmente, não ignoramos o fato de que há muitas experiências vividas em outros lugares no mundo, no campo científico e acadêmico, passíveis de serem assimiladas por nós de forma positiva, ou seja, produzindo-se aqui, em nosso contexto social, econômico, político e geográfico, as mesmas benesses que produziram em seus lugares de origem.

Entretanto, entendemos, também, que não há um modelo universal para se produzir uma Universidade Classe Mundial e, se considerarmos as condições em que fizemos ciência no Brasil e na USP, particularmente, desde a sua fundação, podemos afirmar, sem dúvida, que somos muito mais Classe Mundial que diversas universidades melhores colocadas nos diversos ranqueamentos internacionais. Por que podemos afirmar isso? Pensemos em alguns dados/informações.

Ranking das 10 melhores universidades do mundo segundo a TIMES HIGHER EDUCATION – informações elementares

Universidade

Ano

Orçamento Anual*

No. de Alunos

Orçamento/Aluno¶

Doc/Pesq por Aluno

USP

1934

3

76.000

39.473,68

1/14,5

CalTech

1921

6,3[1]

22.000

286.363,60

1/1,13

Harvard

1636

57.6[2]

21.000

2.742.857,10

1/10

Stanford

1891

37[3]

18.500

2.000.000,00

1/1,73

Oxford

1096

3[4]

20.000

150.000,00

1/ 2,35

Princeton

1746

17,2[5]

12.000

Cambridge

1209

3,4[6]

10.000

340.000,00

1/3,3

MIT

1861

4,8[7]**

11.000

436.363,36

1/11

Imperial College

1891

2[8]

14.000

142.857,14

1/12

Chicago

1907

4,6[9]

15000

306.666,66

Berkeley

1868

3,5

36.000

97.222,22

1/15

Obs.: as informações e dados acima expostos foram extraídos das páginas das respectivas universidades, disponíveis na web.*Valores aproximados em bilhões de Reais.**Excluindo-se orçamento destinado ao Laboratório do MIT que tem parceria com a NASA.¶ Em Reais.

Como se pode ver na tabela acima, a Universidade de Harvard,  Estados Unidos, desenvolveu sua reconhecida capacidade de produzir conhecimento ao longo de pouco mais de três séculos e com orçamentos, muito provavelmente, bem superior aos nossos. Vale lembrar que se hoje Harvard tem um orçamento anual quase vinte vezes superior ao da USP, com um número total de alunos 60% menor, há poucos anos atrás, o orçamento total da USP – 2005, por exemplo – não chegava aos 2 bilhões de reais. Entre outras coisas, pode-se notar que enquanto a USP investe menos de R$ 40.000,00 por aluno, em Harvard esta conta chega ao estratosférico valor de quase 3 milhões de reais!!! Dá para comparar?

Oxford, por sua vez, tem, aparentemente, um orçamento igual ao da USP hoje, mas como a comunidade estudantil oxfordiana é 70% menor que a nossa, a universidade inglesa, com  quase mil anos de história, empenha cerca de 150.000 reais por aluno. Certamente, os seus quase dez séculos de história foram importantes na definição de suas políticas acadêmicas e, especialmente, de pesquisa. Estaremos nós querendo ser mais oxfordianos que nossos colegas ingleses? Ou será que queremos mesmo é ser mais realistas que o rei?

Entre as dez melhores do mundo, ainda segundo o ranking “Times Higher Education”, por exemplo, aquela que tem o menor investimento per capita por aluno – Califórnia University at Berkeley – empenha duas vezes e meia os valores investidos pela USP. Apesar de a USP ter, proporcionalmente às melhores universidades do mundo, orçamentos bem mais modestos, parte da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos países que abrigam as “top 10 do mundo”, estimulada por uma visão tupiniquim de uma imprensa irresponsável, nos rotula de “burgueses gastões” .

Outro elemento importante neste debate e que não pode ser negligenciado diz respeito à hegemonia lingüística mundial da língua inglesa, ou seja, pesquisadores/cientistas anglófonos levam reconhecida vantagem em termos da reverberação internacional de seus trabalhos em relação, por exemplo, a pesquisadores/cientistas não-anglófonos.

Em sua competente análise acerca de classificações internacionais de universidades e, especialmente sobre a classificação “Xangai”[10], Hervé Théry (2010: 192) diz a esse respeito:

Outro fator de distorção é que o inglês tornou-se, na maior parte dos campos científicos, a língua internacional e que os universitários do mundo anglófono são muito mais integrados ao circuito internacional que os seus homólogos dos outros blocos culturais. Consequentemente, essa classificação das universidades favoreceu claramente os países para os quais o inglês é a língua materna.

Outra distorção apontada por Hervé Théry (2010: 191-2) quanto à classificação “Xangai”, diz respeito à subestimação clara das ciências sociais e humanas. Conforme o autor:

O lugar das ciências sociais e humanas é claramente subestimado nessa classificação, os próprios autores o reconhecem, mas eles confessam não ter encontrado, para esses campos científicos, critérios que correspondam às exigências que tinham fixado: medidas universalmente reconhecidas como válidas e livremente acessíveis na internet. Em especial, o fato de não poder dispor de uma classificação dos livros, um dos principais meios de expressão dessas ciências, prejudicou a sua inclusão correta na classificação.

Se, entretanto, insistem alguns em comparar o incomparável, uma das conclusões a que podemos chegar é a de que a USP é muito mais Classe Mundial que as dez melhores universidades do mundo, afinal de contas, conseguimos ser a melhor universidade da América Latina e estar hoje entre as 70 melhores do mundo, com pouco mais de 70 anos de história, utilizando muito menos recursos que a maioria delas e abrigando 3, 4 ou 5 vezes mais alunos que a maior parte dessas instituições.

ISTO POSTO, NÃO DEVERÍAMOS NÓS ENSINAR A ELES OS NOSSOS MÉTODOS E NÃO O CONTRÁRIO?

Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais

Na onda dos ranqueamentos internacionais, outro processo em curso na USP é o de criação de um novo sistema de avaliação da qualidade de sua pós-graduação.

Para que e a quem servem os sistemas de avaliação seja de universidades “classe mundial” ou de programas de pós-graduação?

1. No caso da avaliação da pós-graduação, o sistema Capes tem servido, entre outras coisas, para fomentar a competição entre Programas, em escala nacional. Como? Os Programas melhor classificados são aqueles que recebem mais recursos. Assim, esse sistema trabalha para manter na penumbra aqueles que apresentam maiores dificuldades; enquanto isso, os melhores têm suas receitas fortalecidas.

2. Um sistema de avaliação pautado na competição contribui, efetivamente, para “varrer” do universo da pós-graduação os Programas que não conseguem melhorar suas notas, por razões diversas, entre as quais a dificuldade em vencer os mecanismos vorazes da competição (fatores temporais – programas jovens; fatores geográficos – dificuldade em fixar professores/pesquisadores em lugares distantes dos centros econômicos mais dinâmicos do país, fatores financeiros – escassez de recursos, por exemplo).

3. Coincide, historicamente, com a instalação do sistema de avaliação da Capes uma reconhecida perda de qualidade na formação geral de pós-graduandos no Brasil. Naturalmente, não se pode atribuir única e exclusivamente à avaliação Capes algo que decorre de um sucateamento do ensino em todos os níveis no país, reinante durante décadas. Todavia, alguém duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém  duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?

Tais inquietações me conduzem a perguntar: como se fazia a avaliação da produção na USP, por exemplo, nos anos 50, 60 e 70?

O reconhecimento nacional e internacional da USP, historicamente construído, subordinou-se, durante décadas, única e exclusivamente  à inserção social de seus formandos, graduados e pós-graduados, bem como à sua produção científica, que revolucionou diversos setores da vida social.

Todavia, na medida em que, pós anos 80, começa a ampliar-se, substancialmente, o universo da pós-graduação brasileira, “a fatia do bolo” para cada um tinha de diminuir!

É nesse contexto que assumimos uma lógica empresarial de avaliação, fundada não somente na produção, mas sobretudo e principalmente na produtividade. Paradoxalmente, enquanto o setor produtivo se flexibiliza, supera o paradigma fordista e incorpora princípios toyotistas, a vida cotidiana na universidade volta-se para a produção em massa além de tornar-se cada dia mais inflexível!

A melhor avaliação da USP foi e continua sendo feita pela sociedade brasileira, de modo geral, e paulistana, especificamente. A inserção de nossos egressos, tanto da graduação como da pós-graduação em todos os setores do mercado de trabalho, incluindo-se postos de liderança em escolas de ensino fundamental e médio, universidades, empresas de todos os ramos e governos em todas as escalas expressa a verdadeira reverberação do investimento público onde ele deve reverberar.

Por fim concluo acreditando que temos empenhado muito tempo e energia na construção de parâmetros, indicadores e relatórios de avaliação, os quais alimentam uma verdadeira esquizofrenia avaliativa nacional. Enquanto isso, nossos alunos clamam, simplesmente, por uma boa aula, por um pouco de atenção, por uma boa conversa, enfim, atividades elementares,  cada vez mais difíceis de serem desenvolvidas em um cotidiano acadêmico regido pela competição. Quanto ao tempo para a pesquisa, passou a ser um sonho de todos nós. Algo me parece estar errado.

Sem mais, despeço-me, cordialmente,

Profa. Dra. Rita de Cássia Ariza da Cruz

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP

 

[10] Instituição Escore (2008)

1 Harvard University 100

2 Stanford University 73,7

3 University of California – Berkeley 71,4

4 University of Cambridge 70,4

5 Massachusetts Institute of Technology (MIT) 69,6

6 California Institute of Technology 65,4

7 Columbia University 62,5

8 Princeton University 58,9

9 University of Chicago 57,1

10 Oxford University 56,8

Fonte: THÉRY, Hervé. Classificação de universidades mundiais: “Xangai” e outras. estudos avançados 24 (70), 2010. Disponível aqui.

USP em Tudo, USP então?

Têm sido divulgados na mídia, dados interessantes sobre a Universidade de São Paulo. Primeiro, a questão do número de doutores: a USP é a que mais forma doutores no mundo. Carlos Orsi no Twitter observou que Oxford estava apenas em 28o lugar nesse quesito e a pergunta que ficou no ar é: o que isso quer exatamente dizer? A USP é seguida pela Universidade da Jordânia e pela Universidade de Tóquio na formação de acadêmicos.

Recentemente, no dia 14 de março de 2012, foram publicados os novos dados da Times Higher Education parabenizando os new entrants no top 100, a saber “Hebrew University of Jerusalem, University of São Paulo, in Brazil, and the Middle East Technical University, in Turkey”, que ultrapassaram universidades do velho mundo. (Veja aqui, reportagem d’O Estado)

Em que pesem as críticas metodológicas sobre os tais “rankeamentos” em geral e de universidades, em especial (veja, por exemplo, a eterna briga dos rankings de clubes de futebol), há mais de 40 rankings de universidades publicados no mundo, inclusive alguns no Brasil e que sempre fazem muito barulho. A discussão é válida enquanto for um instrumento para mudanças. (Veja excelente post do Quipronat sobre o assunto, no ano passado).

Lado Ruim

Eu, particularmente, acho que esse tipo de propaganda acaba não agregando muito à universidade. A USP não cobra mensalidade. Tal exposição, positiva de fato, acaba por servir à acirrada política paulista – lembrar que estamos em ano de eleição -, servindo também à inércia, tão cara a alguns administradores públicos, de manter as coisas como estão. Pior, no caso do número de doutores, há em curso um projeto que talvez acelere sua formação, coisa que já vem acontecendo há alguns anos, como se o número de acadêmicos formados fosse um fim em si.

Lado Bom

Mas há um aspecto positivo. A Lei de Diretrizes Orçamentárias prevê uma destinação fixa de verbas para as universidades estaduais paulistas: os tais 9,57% da Quota Parte do Estado do ICMS (QPE). O Brasil tem várias universidades estaduais mas acho que só as paulistas gozam desse tipo de estatuto (quem tiver dados contrários, por favor me avise, eu procurei mas não achei isso). Justamente, USP, UNICAMP e UNESP que têm aparecido em posições bastante destacadas nos rankings de universidades latinas. Os governos de outros estados poderiam se “animar” com esse tipo de propaganda (que não é ponte, nem estrada!) e destinar mais verbas as suas próprias universidades e para a educação em geral.

Lado Pior

Mas, no melhor estilo “tirar doce da boca de criança”, segundo a ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior ),  “os dados mostram que as universidades não receberam o percentual sobre cerca de R$ 1.422,2 milhão, valor correspondente a impostos recebidos em atrasos e suas respectivas multas e juros de mora, e sobre aproximadamente R$ 741,1 milhões, referentes ao repasse para Habitação, sistematicamente subtraído antes do cálculo dos 9,57%. Ou seja, as universidades públicas paulistas deixaram de receber, no ano passado, um total de R$ 207 milhões (R$ 108,8 mi da USP, R$ 50,7 mi da Unesp e R$ 47,5 mi da Unicamp), montante que deveria ser repassado à educação superior pública paulista, por força de lei, e que o governo Alckmin destinou outro fim.” (itálicos meus).

A ADUSP afirma que a sangria orçamentária foi feita com a anuência dos reitores (CRUESP). Aqui vale aquele ditado que diz que “nego só vê as pinga que a gente bebe, não vê os tombo que a gente leva”…. Por tudo isso, vejo esses números com uma alegria contida e uma atenção redobrada para avaliar como eles serão, ou estão sendo, utilizados. E por quem.

PS. Lamentável a morte do professor César Ades, sob todos os aspectos. Veja homenagens de quem o conheceu de perto aqui, aqui e aqui.