Boaventura, Baptista e as Ciências em Bom Português
Obscurantismo e Irresponsabilidade
Imaginem a cena. Um professor de Zoologia é chamado para um grupo de estudo cujo o tema é “o que é ciência?”. Um dos textos propostos para discussão foi o “Um Discurso sobre as Ciências” do polêmico sociólogo português Boaventura Sousa Santos. Pânico! O texto é recheado de parágrafos rococós, idas e vindas e de fato, imprecisões científicas. A inteligibilidade do texto é um desafio para quem está acostumado ao estilo enxuto e direto da linguagem científica. Que fazer?Antes de mais nada, é necessário entender as raízes de uma “pósmodernofobia” da qual cientistas, divulgadores científicos e alguns sciencebloggers sofrem. Isso porque o Pós-modernismo é visto como uma relativização do discurso da ciência; ou pelo menos assim foi apresentado a ela. Mas, o fato é que o Pós-modernismo não é bem isso. Já é tradicional tentar defini-lo pelo que ele não é, pois que existe muita contradição sobre o que ele é ou deixa de ser. Definição? Nem pensar. Um jeito de entender é que o Pós-modernismo questiona do pensamento moderno (leia-se iluminista) seus próprios fundamentos que antes eram considerados imutáveis, supra-históricos, transcendentais. Ao fazer isso, o pensamento pós-moderno tira de centro o próprio Sujeito cognoscente, veja só. O Sujeito todo-poderoso que havia sido colocado ali por Descartes e toda turma, e também pela sucessão de fantásticos resultados obtidos a partir de então. Ao questionar quem é esse Sujeito, o Pós-modernismo dissipa a objetividade [1], desafia a autoridade e “truca” a adequação entre objeto e experiências impostas a ele pelo Sujeito, o que convencionamos chamar de Verdade científica, porque diz, por exemplo, que isso pode depender de quem é esse sujeito, ou que essa adequação é feita entre o objeto e um discurso que se produz sobre ele, entre outras. Putz, experimenta falar para um cientista dos bons que seu método é contingente (tipo, depende de outras variáveis que não dele próprio), que outro resultado poderia ter sido obtido se fosse conduzido de outra forma, por outra pessoa, etc. Daí toda essa aversão e as reduções perigosas que todo preconceito termina por efetuar: pós-moderno = relativo, sem base, inconsequente, etc. Tudo isso com requintes de crueldade quando um matemático meio irresponsável publicou um monte de baboseiras em um jornal “pós-moderno” e disse, depois, que era tudo uma farsa. “Hahaha, vocês publicam qualquer porcaria bastando para isto escrever um monte de termos rebuscados e difícieis. Isso é que é ciência? Hahahaha”. (No final, até acho que foi bom mesmo, porque os ‘pós-modernistas’ estavam exagerando).Entretanto, o Pós-modernismo, seja lá o que isso queira realmente dizer, trouxe algumas ideias interessantes e algo incômodas para os carinhas de óculos, avental e crachá (alguns têm gravatas também), preenchedores-de-formulários-para-conseguir-$ (provocação explícita a uma certa lista de emails, =)). Em primeiro lugar, toda vez que falamos de ciência, já deixamos de fazer ciência há muito tempo. Qualquer cientista, por melhor que seja, quando fala de ciência está produzindo um discurso (escrito ou não) sobre a ciência. Podemos chamar isto de metadiscurso. Um metadiscurso quando produz uma visão convincente das coisas pode ser chamado de metanarrativa. O Pós-modernismo tem como passatempo predileto dissolver essas metanarrativas e deixar todo mundo com as calças na mão exatamente por mexer com os fundamentos do conhecimento como dito acima! Em segundo lugar, resolveram perguntar pro cientista se o que ele estava fazendo (pressupostamente, Ciência, oras) melhorava o mundo e o ser humano. O cientista ficou bem bravo porque para ele a Ciência é: “Primeiro, uma atividade executada por cientistas, com certas matérias-primas, propósitos e metodologia. Segunda, é o resultado desta atividade: Um corpo bem estabelecido e bem testado de fatos, leis e modelos que descrevem o mundo natural.” E podem prevê-lo. Você não voa de avião? Não tem GPS no carro? Então, não enche meu saco! Óbvio que o mundo é melhor. Mas…… se quando falamos de Ciência já estamos distantes do ponto de vista científico, a partir de qual ponto de vista falamos, então? A rigor, segundo D. Christino, qualquer um” “(..) pode ser filosófico, mas também sociológico, como crê Boaventura de Sousa Santos, ou antropológico, como argumenta Bruno Latour, ou (mesmo) ético-jurídico.” Pois é, Boaventura Sousa Santos (também conhecido como BSS) aborda a Ciência de um ponto de vista sociológico e não poderia ser diferente porque o homem é um baita sociólogo. Por mais defeitos que a Sociologia possa ter (deu-nos até um presidente!), ela tem lá seu jeito peculiar de ver o mundo. E esse jeito peculiar de ver o mundo vê a Ciência e a critica a partir de seu ponto de vista. O livro em questão (“Um Discurso sobre a Ciência”) é muito polêmico mesmo, tendo sido criticado tanto dentro da Sociologia como fora dela. De fora, em especial pelo físico António Manuel Baptista que publicou dois livros em resposta a tese de BSS, rebatendo suas imprecisões. Cristina Pereira publicou um estudo sobre o livro que vale a pena ser lido onde explica toda a polêmica. É sua conclusão que comento abaixo:“‘Um discurso sobre as ciências’, é uma obra polémica que versa o tema da epistemologia das ciências sociais, é nesse campo que nos demonstra que nos encontramos numa fase de transição, uma vez que face à existência de um paradigma dominante, já é possível encontrarem-se vestígios um paradigma emergente.” Apesar de criticas de dentro e fora da Sociologia, segue a autora “A obra está no centro da discussão sociológica e há que lhe reconhecer a qualidade de 21anos depois da sua primeira edição ainda despertar o interesse do público académico, tendo dado origem a outras obras, quer como resposta, quer como defesa de teoria.”
Perguntinha Newtoniana
A Máquina de Escolher
Interessante artigo cujo título é “Nascido para Escolher”. Publicado no “Tendências em Ciências Cognitivas”, os autores defendem a ideia de que a escolha e a decisão sobre algo são biologicamente determinados e não aprendidos, como se pensava. Escolher dá sensação de controle e auto-confiança. Reforça crenças e a auto-eficiência. Parece que o desejo por controle está presente em animais e em crianças mesmo antes de valores sociais e culturais serem aprendidos. A grande pergunta é se houve uma adaptação para que essa sensação de controle que a escolha propicia fosse percebida como recompensa. Sua ausência parece ser mesmo aversiva e o exercimento do controle está relacionado a uma diminuição do estresse ambiental sofrido pelo “bicho”. O artigo cita até possíveis vias neurais responsáveis por isso (veja figura abaixo).
Se a necessidade básica de controle pode ser biologicamente motivada, é possível que a percepção de controle e a preferência em exercê-lo pode ser modificada como resultado da experiência pessoal e também aprendida, via recompensas, em um meio social favorável. Como os autores escrevem na conclusão “ (…) but what is important cross-culturally is that the exercise of choice acts to energize and reinforce an individual’s sense of agency. Anything that undermines this perception of control might be harmful to an individual’s wellbeing.” Eu acho difícil traduzir agency (quem quiser, pode ajudar), mas a conclusão se refere ao fato de que escolher/decidir reforça o sentimento do indivíduo ser o agente de sua própria realidade e não um mero coadjuvante, o que, convenhamos, faz bastante sentido.
Fiquei conhecendo esse artigo por meio de um grupo de médicos do qual participo e me chamou a atenção o fato de que o colega que o enviou estava bastante frustrado quando “transpôs” as conclusões do artigo para a prática médica da Terapia Intensiva. Como ele “publicou” esse email no grupo, fico à vontade de reproduzi-lo aqui (obviamente preservando-lhe a identidade):
“Transportando a análise dos autores para a UTI fico me perguntando o quanto nós, intensivistas, conseguimos racionalizar que muitos resultados de nossas intervenções são frutos do acaso… como lidar com isso? o nosso cérebro é suficientemente adaptado para “individualizar/isolar” o resultado de nossas decisões? ou ele só enxerga decisões -> intervenções -> desfechos? não é nada fácil lidar com o acaso, não é? Parece que precisamos sempre de “maior n” ou “mais estudos para elucidar a questão”!”
A falta de controle de fato é aversiva. Veja só:
“Entender que não temos controle estrito do doente e sobre o mundo pode ser frustrante para quem não se acostuma com essa idéia… Quantas vezes por dia nos indagamos que, se estivéssemos esperado um pouco, o desfecho/resultado seria igual? O hábito do fazer mais, supranormalizar, etc., tem se mostrado infrutífero… e os estudos randomizados?… ao invés de aceitarmos que nos adaptamos para decidir (e aprender com isso) tentamos justificar a falta de resultados positivos com editoriais do tipo “estudos randomizados não respondem tudo” ou “metanálises caíram em descrédito pois muitas são reuniões de trabalhos antigos e malfeitos” ou “desfecho mortalidade é muito duro para o ambiente de UTI” (…) Desculpem se me prolongo, mas ser intensivista é dureza e temos que lutar até com a estrutura do nosso raciocínio…. O que vocês acham, amigos? Será que o “problema” está no método? ou no processo adaptivo?”
Convenhamos, é um apelo dramático, não? Aqui, novamente a (neuro)ciência se junta com a filosofia (eu adoro quando isso acontece para desbancar positivistas utópicos que substituem Deus pela Ciência): o Fazer é mais fácil que o Não-Fazer. O Fazer, principalmente quando embasado em alguma diretriz ou mesmo quando “decidido” pelo agente, provoca alívio e sensação de bem-estar. O artigo em questão diz que isso é porque exercemos um controle sobre o meio ambiente que nos envolve. No caso do médico, sobre o paciente. Colocando de lado a insatisfação pelo efeito do acaso na prática médica, os médicos parecem estar entendendo que são diferentes dos cientistas. Antes tarde do que nunca. Parece que a “máquina de escolher” está dentro de outra máquina: a de desejar.
Leotti LA, Iyengar SS, & Ochsner KN (2010). Born to choose: the origins and value of the need for control. Trends in cognitive sciences, 14 (10), 457-63 PMID: 20817592
Religião, Ciência, Bolsa de Valores e Bullying
Redimir os passados e transformar todo “foi” num “assim o quis”: só isto é redenção para mim.
Assim Falou Zaratustra
F. Nietzsche
Esse tipo de verdade é fundamentado em um evento; seja na suposição da realidade da coisa-em-si, seja na fidelidade de um relato, seja, por fim, na esperança de que uma profecia se cumpra. Esse é o tipo de verdade da qual se nutrem ciência e religião. Tanto para uma como para outra, a verdade é algo tangível ou porque corresponde a uma expectativa (emunah) no caso da religião, ou porque se adequa a um modelo proposto que funcione (aletheia com um véu a menos) no caso da ciência. Mas não só a tangibilidade da verdade importa. Importa saber que existe um “gabarito”, um porto-seguro onde encontraremos a Verdade sem que ninguém possa constestá-la, bastando para isso a pureza do método ou infinita luz revelada. E assim, nos redimiremos de todo o mal. A ciência é a minha religião. A religião é minha ciência…
Essa é a incômoda proximidade de Ratzinger aos cientistas como chamei a atenção aqui, aqui e aqui. Sim, eles todos acreditam em essências e na Verdade. Fundamentalistas a combater o relativismo, seja sob a forma de uma ética laica — impossível para o Vaticano; seja de uma verdade consensual, voltada ao bem-estar de uma sociedade, “cadáveres de metáforas que formam redes de conceitos utilizados como valores de verdade.” No final, são todos uns relativistas pós-modernos, dizem.
Na Bolsa de Valores há dois tipos de abordagem do “mercado”: os “fundamentalistas” e os “grafistas”. Os fundamentalistas, grosso modo, baseiam-se nos “fundamentos” da empresa, como lucro, grau de endividamento e participação no mercado. Eles querem conhecer a realidade da empresa para saber quanto ela vale. Nada mais justo! Seu guru Warren Buffett. Mas há os grafistas. “Um analista grafista usa figuras desenhadas com base em critérios subjetivos, do tamanho e na posição que ele acha que deveria ser, como base em suas preferências pessoais, e com isso acredita ser capaz de montar estratégias vitoriosas. Há muitos exemplos de analistas grafistas, porém não saberia citar nenhum comparável a Buffett ou Simons.” Os grafistas estudam o histórico da ação: eles observam a ação no passado e tentam perceber o que irá ocorrer com as cotações nas próximas semanas”. A análise dos grafistas é baseada em… em história?! em comportamento passado e curvinhas sobe-desce?! Alguém poderia dizer que os grafistas construiram “castelos de fumaça” e moram dentro deles. Eu diria diferente. Diria que além de construir esses castelos, eles os vendem por preços bastante interessantes. Eles também ganham (e perdem, eu sei) dinheiro na Bolsa, mas o importante aqui é entender que os dois tipos de análise são exatamente opostos: um se baseando numa “realidade” presumida, construída, com endereço certo, tijolo e ferro. O outro baseado em tendências que geram padrões donde se tiram comportamentos, tudo fincado num terreno bastante pantanoso da nóia geral que é o mercado, totalmente criado pelo homem!
Ratzinger, fundamentalistas da bolsa e cientistas têm boas razões para crer no que creem. As ciências ditas “humanas” ou históricas (que Aristóteles chamava de Política, Dilthey, de Geistwissenschaften – literalmente, ciências do espírito – e Kant, de razão prática) têm, porém, um status epistemológico diferente. Nesse caso, o homem é a medida de todas as coisas. Sim, o diagnóstico parece ser correto: Protágoras sofreu bullying por parte de Sócrates.
[1]Convite a Filosofia. Marilena Chauí.
O Matador de Metáforas
Confesso que não vai ser muito fácil. Também não sei se minha prosa tem a envergadura simplificadora que o empreedimento exige. Mas como tudo é exercício, mãos a obra. Que as musas me alumiem o caminho (que vai ser um pouco mais longo que o habitual – haja luz!)…
Retomemos o livro de Giannetti, (mal) resumido abaixo. Ao adotar um “fisicalismo reducionista” o personagem-narrador se mete numa enrascada existencial pois, acha ele, tal posição filosófica afeta a forma como se vê no mundo, tolhendo-lhe o significado do verdadeiro “eu” e colocando no lugar uma sopa de neuromediadores de concentração variável. O capítulo 55 (último) é pródigo neste tipo de questionamento existencial (que eu achei meio exagerada, como tentarei mostrar a seguir):
“É possível termos acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege os nossos músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos eletroquímicos no cérebro, como a fosforescência no rasto de um fósforo aceso no escuro ou a espuma de uma onda neural? E que, portanto, fazer de um propósito ou de uma intenção consciente a causa de uma ação humana é tão desprovido de fundamento como falar do propósito de uma espermatozoide ao fecundar um óvulo ou da cigarra ao entoar sua cantoria ou do Sol ao irradiar calor? Sim, é possível.”
Vai daí, que entram no rol do “é possível” as reflexões ético-morais, as guerras ideológicas e religiosas, a psicologia, o ateísmo militante e outras coisas até chegarmos ao engodo da consciência. Um tipo de farsa onde acreditamos que somos os personagens que representamos. Isso pode causar um imobilismo, um mal-estar trans-histórico (que vem desde a antiguidade); nos tornar a-morais, como parodiando a tese ivankaramazoviana: se não há um “eu”, nem uma alma, (então) tudo é permitido”. E assim, termina o livro e aqui vamos começar a discutir essa tese que foi criticada de várias formas, por vários autores.
“Uma tal tentativa é associada com a tentativa de identificar a ‘verdade literal’ com a ‘verdade científica’ e a tratar a literatura como oferecendo meramente ‘verdades metafóricas’, algo que não pode realmente ser denominado de verdade acima de tudo. A concepção usual, desde Platão, tem sido a de que um entre os vários vocabulários que nós usamos espelha a realidade, e que os outros são na melhor das hipóteses ‘heurísticos’ ou ‘sugestivos'”.
Aqui entra Davidson, filósofo da linguagem, e o título do post. Uma de suas premissas é que metáforas não têm significados. Isso quer dizer que sua ocorrência é como um efeito colateral da utilização de uma linguagem, não há nada implementado com intuito de produzi-las. Entretanto, apesar de surgirem assim, quase sem querer, elas têm um papel fundamental quando se “literalizam”. Literalizar uma metáfora é matá-la, mas no momento em que isso ocorre, reformulam-se nossas crenças, conceitos e desejos. Sem a morte de metáforas “não haveria nenhuma coisa tal como uma revolução científica ou uma ruptura cultural, mas meramente o processo de alterar os valores de verdade das asserções formuladas em um vocabulário para sempre imutável.” Desse ponto de vista, uma teoria científica é simplesmente uma redescrição metafórica. Por exemplo, quando os cristãos disseram ‘O amor é a única lei’, quando Copérnico disse ‘A Terra gira em torno do Sol’, ou Marx ‘A história é a história da luta de classes’ ou ainda os físicos afirmaram que ‘a matéria pode ser transformada em energia’, tais frases pareciam mais com um modo de falar que com uma verdade. Um filósofo analítico naïve diria que são confusas. O que queremos dizer com “lei”, “sol”, “história” ou “matéria”? Mas quando cristãos, copernicanos, marxistas e físicos começaram a redescrever porções da realidade sob a luz dessas sentenças – e comprovar o valor de tais redescrições – nós começamos a falar delas como afirmações com grande valor de verdade.
Nesse ponto, nos aproximamos do cume. Eu disse que subir não ia ser tão fácil, mas não vamos parar aqui, né?
Vamos para uma citação do texto de Rorty:
“Esse fenômeno da produção e ‘literalização’ de metáforas é o fenômeno que a tradição filosófica ocidental sentiu como sendo necessário para avaliação a partir de uma oposição entre matéria e espírito. Essa tradição pensou a criatividade artística, bem como a ‘inspiração’ moral ou religiosa, como incapazes de serem explicadas nos termos usados para explicar o comportamento da ‘realidade meramente física’. (Nota do Blogueiro: dizem que tudo começa com Platão e aqui, em especial, isso é bem verdade, ver A República e o artigo de Maria Villela-Petit. Além disso, Rorty se coloca em uma linhagem de pragmatistas americanos que começou com Pierce, James e Dewey e que vem combatendo, a seu modo, a tradição filosófica ocidental que é como eles chamam o pensamento que começou com Platão e atingiu o seu ápice em Kant, com vários desdobramentos atuais). Em vista disso, surgiram as oposições entre ‘liberdade’ e ‘mecanismo’ que dominaram o período pós-kantiano na filosofia ocidental. Mas segundo a visão de Davidson, ‘criatividade’ e ‘inspiração’ são meramente casos especiais da capacidade do organismo humano articular sentenças sem significado – isto é, sentenças que não se ajustam a velhos jogos de linguagem e que servem enquanto ocasiões para modificar esses jogos de linguagem e criar novos. Essa capacidade é exercida constantemente, em toda e qualquer área da cultura e da vida cotidiana. Nesta última, ela aparece como chiste. Nas artes e nas ciências ela aparece, retrospectivamente, como gênio.”
“Exatamente como as sinapses neurais estão em contínua interação umas com as outras, constantemente formulando uma diferente configuração de descargas elétricas, também nossas crenças e desejos estão em contínua interação, redistribuindo valores de verdade entre asserções. Exatamente como o cérebro não é algo que “tenha” tais sinapses, mas É simplesmente um aglomerado delas, assim o Si próprio não é algo que “tenha” as crenças e os desejos, mas simplesmente a rede que as reúne e conecta.”
Isso implica que ter uma crença ou desejo significa ter muitas crenças e desejos; significa ter o fio de uma extensa trama que nos constitui.
Por fim, esse trabalho de desmistificação do fisicalismo reducionista também foi feito com muita simplicidade, a exemplo do silogismo de Giannetti na parte IV do post abaixo, por Hempel com o raciocínio que se segue:
“Talvez uma das críticas mais incisivas ao fisicalismo esteja no dilema apontado por
Hempel (1980): se o fisicalismo for definido de acordo com a ciência Física atual, então se
trata de uma tese possivelmente falsa, já que a Física atual não é, de maneira alguma, uma
ciência completa. Por outro lado, se o fisicalismo apoiar-se em uma ciência Física hipotética,
uma ciência completa que ainda está por vir, então o fisicalismo perde sua força, pois não
sabemos como será essa Física e que coisas farão parte desse mundo físico que ainda não
somos capazes de conceber.”
Do excelente artigo de Diego Zilio em Ciências & Cognição 2010; Vol 15 (1): 217-240.
Acho que dá para falar no “Erro de Giannetti” e em tempestade em copo de água, né?