Meandros


É possível ter-se um conhecimento correto de uma parte sem se saber a natureza do todo? A resposta a essa pergunta pode parecer simples inicialmente, principalmente quando essa indagação é sobre o mundo físico, vide o sucesso da ciência atual. Mas, quando envolve seres vivos (a espécie humana, inclusive), parece que o problema toma outras proporções e fica evidente uma metafísica embutida na pergunta inicial.

Metafísica, pois envolve questões finalistas; além da física; envolve uma compreensão de universo particular. Envolve uma racionalidade pluralista, pois pressupõe sistemas isoláveis na natureza e pode, por essa razão, ser também chamada positivista.

O perigo do positivismo não é não conseguir fugir do pensamento metafísico – o que é impossível; é, ao contrário, não reconhecer que ele está enraizado na racionalidade humana. Se não se reconhece as recorrentes (e muitas vezes, inconscientes) tentativas metafísicas de nosso pensamento, corremos o risco de transmiti-las, acriticamente, mais rápido que outros conceitos, pois ao invés de utilizarmos a argumentação direta, o faremos da forma mais persuasiva e sensível ao homem: a insinuação. Linguagem das entrelinhas. Extremamente poderosa, principalmente quando se fala de abstrações e divindades. Ao invés de abrir portas, favorecerá uma certeza coberta com o véu que esconde a eterna dúvida.

Neo-obscurantismo

Segundo Morin, o desenvolvimento científico comporta um certo número de traços “negativos” que são bem conhecidos, mas que, muitas vezes, só aparecem como inconvenientes secundários:

1) Superespecialização: enclausuramento ou fragmentação do saber;

2) O ponto de vista das ciências da natureza exclui o espírito e a cultura que produzem.

3) Revolução na história do saber, em que ele, deixando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por seres humanos, integrado na investigação individual de conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser acumulado em bancos de dados, para ser, depois, computado por instâncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar.

4) Neo-obscurantismo. O especialista torna-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua disciplina e o não-especialista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para tanto.

Essa última, tem especial aplicação à prática médica contemporânea e aos “cientistas em exercício ilegal da medicina”.

A Ciência Quadrúpede

Morin disse certa vez que a Ciência anda em quatro patas. As patas que sustentariam o corpo científico seriam empirismo, racionalismo, imaginação e verificação. Mas, ela seria um “animal” bastante estranho. Isso por que as patas poderiam ter importância diferente dependendo de cada época e, principalmente por que poderiam brigar entre si! Por paradoxal que possa parecer, é exatamente no momento do conflito que o tal “animal científico” anda mais rápido! Racionalismo e empirismo respondem pela maioria das brigas e parecem ser as patas anteriores. Imaginação e verificação, co-irmãs porém não menos belicosas, as de trás.

Quando li isso pela primeira vez, logo pensei, mas ué?! Quem seria a cabeça? Sendo a cabeça aquela que dá direção ao corpo, a “fera” poderia ter duas cabeças: Moral e Ética? Não. Logo me dissuadiram dessa hipótese. Uma cabeça: Ideologia? Capital? A simples Curiosidade Humana? Não cheguei a conclusão nenhuma.

Me é irresistível, entretanto, conjecturar que tipo de aberração seria, então, o “animal” Medicina.

Dúvida e Salvação

duvida.jpgHorkheimer em 1970, escreveu o ensaio Teoria Crítica Ontem e Hoje. Sobre a ciência, escreveu ele:

“A ciência é uma tal ordenação dos fatos de nossa consciência que ela permite, finalmente, alcançar cada vez, em um lugar exato do espaço e do tempo, aquilo que exatamente deve ser esperado ali. (…) A exatidão é, nesse sentido, o objetivo da ciência. Entretanto, e aqui aparece o primeiro tema da Teoria Crítica, a própria ciência não sabe por que põe em ordem os fatos justamente naquela direção, nem por que se concentra em certos objetos e não em outros. O que falta à ciência é a reflexão sobre si mesma, o conhecimento dos móveis sociais que a impulsionam em certa direção: por exemplo, em ocupar-se da Lua e não do bem-estar dos homens.”

Ao descartar as promessas não cumpridas de Marx como diferenças entre a Teoria Crítica de ontem e hoje, Horkheimer escreve:

“Por último, aquilo que Marx esperava da sociedade justa é falso – não fosse por outra razão – , e este enunciado é importante para a Teoria Crítica, porque a liberdade e a justiça tanto estão ligadas quanto opostas. Quanto mais justiça, menos liberdade. Se quisermos caminhar para a equidade, devem-se proibir muitas coisas aos homens, notadamente de espezinharem-se uns aos outros”.

E quanto a quem poderia ser aliado na empreitada:

“Se a tradição, as categorias religiosas e, em particular, a justiça e bondade de Deus não forem transmitidas como dogma (grifo meu), como verdades absolutas, mas como a nostalgia daqueles capazes de uma verdadeira tristeza, e isso precisamente porque essas doutrinas não podem ser demonstradas e porque essa dúvida é seu lote, a mentalidade teológica, ou pelo menos sua base, poderá ser conservada de uma forma adequada. A introdução da dúvida na religião é um momento necessário para salvá-la”.

É onde Ratzinger conscientemente peca.

A Razão Diabólica

deus-e-o-diabo.jpg

José Arthur Giannotti (precisa ter assinatura), na Folha de hoje, fala sobre o discurso de Bento 16 na ONU, referindo-se a ele como pérola do pensamento conservador. Além de toda questão política comentada, me interessa mais a relação entre ciência e religião que o papa usa como argumento e que Giannotti critica. Vejamos o papa:

Deste modo o nosso pensamento se dirige ao modo como os resultados das descobertas da pesquisa científica e tecnológica foram aplicados. Não obstante aos grandes benefícios que a humanidade pode tirar deles, alguns aspectos de tais aplicações representam uma clara violação da ordem da criação a ponto de não contradizer somente o caráter sagrado da vida humana mas a própria violação da pessoa e da família em sua identidade natural.”

Giannotti questiona a noção de identidade – crítica óbvia – o que faz muito sentido para ironistas (no sentido rortyano do termo), mas nenhum sentido para o homem que ocupa o cargo mais metafísico da humanidade. Ele acredita sim em essências!

Segue o sumo pontífice:

Do mesmo modo, a ação internacional, na busca de preservar o ambiente, e proteger as várias formas de vida sobre a terra não deve garantir somente um uso racional da tecnologia e da ciência, mas deve redescobrir a autêntica imagem da criação. Isto não exige nunca uma escolha entre ciência e ética, mas se trata de adotar um método científico que respeite verdadeiramente os imperativos da ética.”

Isso daria uma tese. Alguém tem dúvida de que Habermas assinaria a primeira frase se ela não terminasse com a tal “imagem da criação”? Uma razão compartilhada internacionalmente é seu sonho de consumo. Por outro lado, se não existe método científico subordinado a imperativos morais, pode haver um consenso de pares – vamos por aqui ou melhor trabalhar por lá, call for papers sobre determinado assunto, etc. O cientista publica, mantém os grants, a revista publica, mantém as assinaturas e patrocínios, a massa cita o artigo, fica “estudada” (ver Manoel de Barros) e fica todo mundo feliz! Só que isso vale para a ciência normal kuhniana.

No caso das grandes descobertas é diferente. Para Giannotti existe uma razão diabólica por trás delas: “Foi diabólico para os pitagóricos pensar os números irracionais, foi diabólico para toda a razão convencional do século 19 pensar que a espécie humana tivesse uma origem comum àquela dos macacos, e, atualmente, é diabólico pensar que uma pessoa possa ser clonada.”

O argumento de Giannotti é que o papa quer subordinar, inclusive pela força (ver o final do artigo), a ciência a uma visão de fé (ecumênica até) com todos os desdobramentos que isso possa acarretar. É claro que isso não vai dar certo nunca!

O ponto aqui é que o papa argumenta sobre um assunto polêmico e extremamente necessário com as armas de que dispõe. Ou Giannotti esperava ver o papa pedindo desculpas (de novo!) a Galileu e assumindo a culpa na Inquisição? Este blog vem defendendo a reflexão, de preferência conjunta, como medida da razão desenfreada. O papa faz exatamente isso com sua linguagem metafísica e altamente conservadora. Mas o que deveríamos esperar de Ratzinger?

O cientista produz um poder sobre o qual não tem controle. Giannotti chama isso de diabólico pois é ousado, transgressor, invasivo e agressivo. É quase ciência heavy-metal. Tudo bem. Mas acho bem mais diabólico, no sentido de “do Mal” (como dizem meus filhos) a apropriação desse conhecimento para outro fim que não minimizar as aflições da espécie humana e do planeta em geral, o que, no fundo, é quase a mesma coisa.

Corpos Dóceis

Não pude deixar de lembrar de Foucault ao assistir aula sobre treinamento em sepse. Os cursos do chamado adestramento médico proliferam. Para implantação do sistema, falou-se em punição e coerção… Eu, dócil?

“… a redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.”

Continua:

Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea.”

Como pode isso ser tão atual?

Necrofobia

fear-of-death.jpg

“Num mundo fundamentado na promessa de liberdade para os poderes criativos humanos, a inevitabilidade da morte biológica era a mais obstinada e sinistra das ameaças que pairava sobre a credibilidade dessa promessa e, assim, sobre o fundamento desse mundo“. Necrofobia…

A morte foi desconstruída na modernidade. São enormes os avanços na arte de repelir toda e qualquer causa de morte. A fragmentação do discurso é um velho truque para tirar de imediato o temor maior: a própria morte. Hoje, ela é substituída por incríveis fatores de risco!

Não. Eu não preciso de religião para tranquilizar-me com o pós-vida. Posso sublimá-la facilmente na lúdica tarefa de fugir da morte à módicas prestações, seja driblando fatores de risco, tratando pseudo-doenças ou quem sabe, contribuindo com alguma ONG. Os desejos da sociedade e os da indústria farmacêutica quase que se fundem promiscuamente… Como o remédio que tomo é muito bom, comprarei também as ações! Melhor ser rico e saudável que pobre com doença…

Nesse sentido, o texto de Shannon Brownlee, uma premiada jornalista americana de Medicina e Ciência, n`O Estado de S. Paulo neste domingo (13/04/08), é exemplar e repercute , felizmente. (Clique aqui para o original em inglês e o traduzido)

Mas Bauman conclui:

“No entanto, o preço dessa desconstrução é a vida policiada do princípio ao fim pelos exércitos ubíquos do inimigo banido. Havendo recusado enfrentar com coragem a incompatibilidade da promessa moderna com o fato da mortalidade humana, tornamo-nos de fato, ao menos temporariamente, inválidos acompanhando a vida das janelas do hospital”

Continuaremos com Zygmunt ainda mais um pouco.

Teleologia II

Ernst Mayr defendia uma filosofia particular para a Biologia. Uma das razões para isso é o fato de o pensamento biológico contar com certas características próprias. Talvez, a principal delas seja o pensamento teleológico. A linguagem médica é obscenamente teleológica com a desculpa de ser pragmática. Até posso aceitar esse argumento. Porém, não concordo quando os interlocutores comunicam-se assim por desconhecimento total do assunto e sua polêmica no universo da Biologia. O texto que se segue pertence ao portal Talk Origins

“There are two forms of teleological explanation (Lennox 1992). External teleological explanation derives from Plato – a goal is imposed by an agent, a mind, which has intentions and purpose. Internal teleological explanation derives from Aristotle, and is a functional notion. Aristotle divided causes up into four kinds – material (the stuff of which a thing is made), formal (its form or structure), efficient (the powers of the causes to achieve the things they achieve) and final (the purpose or end for which a thing exists). Internal teleology is really a kind of causal explanation in terms of the value of the thing being explained. This sort of teleology doesn’t impact on explanations in terms of efficient causes. You can, according to Aristotle, use both.

Evolutionary explanations are most nearly like Aristotle’s formal and efficient causes. Any functional explanation begs the further question – what is the reason why that function is important to that organism? – and that begs the even further question – why should that organism exist at all? The answers to these questions depend on the history of the lineage leading to the organism.

External teleology is dead in biology, but there is a further important distinction to be made. Mayr [1982: 47-51] distinguished four kinds of explanations that are sometimes called teleology: telenomic (goal-seeking, Aristotle’s final causes, ‘for-the-sake-of-which’ explanations); teleomatic (lawlike behaviour that is not goal-seeking); adapted systems (which are not goal seeking at all, but exist just because they survived); and cosmic teleologyO’Grady and Brooks 1988]. Only systems that are actively directed by a goal are truly teleological. Most are just teleomatic, and some (e.g., genetic programs) are teleonomic (internal teleology), because they seek an end.”

How the four forms of apparent teleology relate.
Venn diagram with Teleological systems in Teleonomic systems in Teleomatic systems with Adapted systems overlapping some (but not all) of each of the other four but entirely within Teleomatic systems

Exemplos de processos teleomáticos são aqueles em que a lei da gravidade e a 2a lei da termodinâmica regulam as transformações. Não apresentam um objetivo final. Os processos teleonômicos são guiados por programas e dependem da existência de uma meta que pode ser uma estrutura, uma função fisiológica ou mesmo um comportamento. Os programas estão sujeitos à seleção natural. Para Mayr, o programa genético proporciona em exemplo de processo teleonômico. Os sistemas adaptativos (por exemplo, funções de orgãos ou comportamentos de espécies) têm sido erroneamente chamados de teleológicos. Segundo Munson (1971) isso ocorre porque ao estudar um traço adaptativo buscamos uma explicação. Essa explicação é dada contando-se a história evolutiva desse traço como sendo um sucesso da seleção natural. De novo, não há metas.
Esse raciocínio muitas vezes explica o aparecimento de doenças que, assim, não necessitam mais ser vistas como maldições à espécie humana. A razão médica se beneficiaria do pensamento evolucionário que pode estar distante da prática clínica, mas traria de volta sua historicidade. Afinal, a história de um ser vivo, tão cara a Mayr, é o que o diferencia de um ente inanimado; e o que o torna irredutível à físico-química, sem recorrer a explicações vitalistas.

Teleologia I


Certa vez, ao assistir uma aula de fisiologia, fiz a pergunta que todo aluno do 2o ano de Medicina faz ao seu professor de fisiologia (ou pelo menos tem vontade de fazer!): “Mas, para que serve o sistema límbico?” (era uma aula de neurofisiologia). O professor, deixou o giz cair na calha, inverteu as sombrancelhas – até então, amigáveis – e me respondeu: “Você não deve pensar assim!”. Por quê? “Por quê?! Passamos anos tentando nos livrar dessa pergunta! Esse tipo de pergunta não leva a lugar nenhum!” Fiquei um pouco humilhado pelas risadas da classe e não quis me alongar no debate, mas a resposta nunca me satisfez. Principalmente porque ninguém nunca tinha me dito como não pensar antes!
Para que serve o rim? Para livrar o organismo de subprodutos tóxicos, eliminar ou economizar água e manter o equilíbrio ácido-básico. Nada mais simples. Entretanto, essa linguagem teleológica é quase um tabu na Biologia e mostra como a Medicina desconhece conceitos básicos de Teoria da Evolução. Nos próximos posts, tentarei refletir sobre o pensamento teleológico, principalmente à luz de Ernst Mayr. Extrapolações para a Ciência Médica e a Medicina propriamente dita serão permitidas, aceitas e até encorajadas. Nada faz muito sentido senão à luz da evolução, não é mesmo?

Isaac, Albert ou Charles

050203_Ernst_hmed_10a.grid-6x2.jpg
Ernst MayrPhoto by Kris Snibbe

Ernst Mayr defendia uma filosofia própria para a Biologia (Toward a New Philosophy of Biology). Acreditava que a Biologia não poderia nunca ser reduzida à Física, como sonhavam mecanicistas de outrora. Por que falamos em darwinismo e não existe um newtonismo ou eisteinismo?

Chamou a atenção por exemplo, à diferença entre a Biologia Funcional e a Evolucionária. A pergunta principal do biólogo funcional é “Como?”. Como isso funciona? Como aquilo interage com isso? e etc. A pergunta do biólogo evolucionário é “Por quê?”. No sentido de “Como aconteceu?” e não no sentido de “Para quê?”, a pergunta que Aristóteles fez e que gerou uma confusão que atravessou milênios! Voltaremos a ela, com Mayr em outro post.

Para usar uma analogia didática de Mayr, podemos comparar o trabalho dos campos da Biologia com a tecnologia da informação: o biólogo funcional quer decodificar a informação programada no DNA. Entender os mecanismos de funcionamento do processo. O biólogo evolucionista, por outro lado, está interessado na história destes programas de informação e nas leis que controlam suas mudanças de geração a geração. Ou seja, nas causas destas mudanças.

Os seres humanos são produtos de uma infinidade de experiências casuais da natureza culminando no que somos hoje. Para onde caminha a Ciência Médica? A quem ela almeja desposar: Isaac, Albert ou Charles ?