Resenha – Como os Médicos Pensam

Recebi a incumbência de resenhar um livro de Jerome Groopman chamado “Como os médicos pensam“. O Igor do 42 também. Ele já fez sua lição e muito bem, o que só aumenta minha responsabilidade. Vou tentar não cair no óbvio e complementar sua excelente resenha, o que não será tarefa fácil.
Gostei do livro. É um livro escrito por um médico hematologista judeu, formado na Harvard. Isso pode parecer irrelevante, mas é importante para entender um capítulo onde uma mulher pertencente a sua sinagoga passa por uma experiência tenebrosa com sua filha vietnamita adotada. A abordagem religiosa que inevitavelmente permeia uma relação médico-paciente, é feita de forma elegante, não piegas, diria útil, para médicos com forte viés ateísta como eu. Esse é um aspecto que não pode ser ignorado.
O título do livro me pareceu ambicioso demais. O assunto prevalente são erros diagnósticos, como se médicos só pensassem no diagnóstico! Como o autor é um clínico, pouco sobre cirurgia, bastante mais sobre indicações cirúrgicas. o que teria muito a ver também com diagnósticos.
O autor desfia casos próprios e de médicos que entrevistou, tendo o cuidado de procurar entender onde houve falhas cognitivas para se atingir o diagnóstico correto. Há passagens de uma honestidade desconfortável para um leitor-médico. Esse é uma das razões pelas quais gostei do livro. Outras, em que fica bastante repetitivo.
Outro ponto positivo é o de colocar o paciente na outra ponta do processo. Ele também tem sua parcela de responsabilidade pela dificuldade diagnóstica e pode, claro(!), ajudar o médico nessa tarefa. Os exemplos citados são bastante reais e pude me identificar com alguns. Aqui, temos algumas diferenças culturais em relação aos pacientes de Groopman. Quando o médico não acerta na primeira, o paciente volta ao mesmo médico e tenta resolver. Pelo menos é isso que Groopman propõe. Diferente da praxe brasileiríssima de ficar pulando de médico em médico para ouvir segundas ou terceiras opiniões e acabar não fazendo nada do que lhe foi dito!
Achei o livro útil. Bem escrito e com boa tradução, torna a leitura e a explicação de termos técnicos bastante assimiláveis. Vou deixar o exemplar no consultório. Quem sabe ele não me dá uma mãozinha?

O Corpo de Copérnico

Capt. Dariusz Zajdel M.A., Central Forensic Laboratory of the Polish Police / AFP – Getty Images A computerized portrait, released Thursday by Polish police, reconstructs the face of a man whose skull was found buried in a cathedral in the
northern city of Frombork.

Acharam o corpo de Nicolau Copérnico em uma catedral (Frombork) na Polônia. Não ia escrever sobre isso, não é a especialidade do Ecce Medicus, mas não resisti.

A repercussão da notícia chama a atenção. Experimente googlar com os termos “copernicus skull”! Se estiver entre aspas mesmo, são 235 entradas com sites em árabe, japonês (acho, eu), russo, polonês.
Agora me digam: Qual é a real importância de acharmos o crânio de Copérnico? Convenhamos, parece que achamos a tumba de um apóstolo ou do próprio JC!! O que as autoridades vão fazer com o crânio do homem? Um altar? Organizar excursões e cobrar ingresso para vê-lo? Quem gostaria de ver um espetáculo assim? Cientistas, historiadores da ciência e quem mais?
Qual a real importância de acharmos o crânio de Copérnico? O que há por trás dessa incômoda pergunta?
PS. Agradeço ao Luiz Bento o envio da notícia.

Ciência e Social II – Racismo Científico

Mad Scientist at DHM

Do repórter de ciência da Folha de São Paulo e blogueiro Marcelo Leite, um texto com o sugestivo título de “O Favor Impacto” no Caderno Mais! de 16/08/11 (para assinantes):

“Há muito se suspeita de que pesquisadores de nações periféricas sejam prejudicados nesse troca-troca de citações. Seus artigos tenderiam a ser menos lidos e, segundo a hipótese, incluídos de modo menos freqüente nas listas de referências dos colegas dos países desenvolvidos. Um protecionismo acadêmico, por assim dizer.”

Se isso fosse aplicado a indivíduos do sexo feminino, negros, gays, índios, anões, espíritas, umbandistas, crentes ou ateus de qualquer espécie seria simplesmente chamado de racismo! Mas são cientistas do terceiro mundo, apenas. Continua:
 
“Meneghini, Packer e Nassi-Calò tomaram por base um acervo de 1.244 textos publicados em 2004 e 2005 com autores de quatro países latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile e México) em sete periódicos internacionais de prestígio. E, claro, as citações que receberam no ano subseqüente (2006). Para comparação, montaram outro banco de dados sobre mais de 44 mil
trabalhos com autores de cinco países ricos (Alemanha, Estados Unidos, França, Japão e Reino Unido). Em seguida, separam ambas as amostras em dois subconjuntos menores: um com artigos assinados por autores de um mesmo país, sem colaboração internacional, e outro com. Resultou o previsível (mas boa parte da ciência serve para isso mesmo, confirmar e apoiar em números objetivos aquilo que já se sabe). Estatisticamente, tanto faz para autores de países desenvolvidos publicar com ou sem colaboradores estrangeiros -serão citados em proporção semelhante e muito próxima do fator de impacto da publicação.  No caso latino-americano, a desvantagem é enorme. Artigos sem apoio de colegas desenvolvidos têm fatores de impacto 34% menores que a média. Com colaboração internacional, se aproximam do usual na publicação. Resta estabelecer se os trabalhos de latino-americanos são menos citados só porque são ruins, o menos provável, ou se os pesquisadores de países ricos é que não se dão ao trabalho de lê-los. Muitos latino-americanos já concluíram, bingo, que o caminho das pedras exige o favor de um co-autor bacana.”

Por fim, um artigo da Plos cujo título é “The Chilling Effect: How Do Researchers React to Controversy?” e cuja pergunta é, “Can political controversy have a “chilling effect” on the production of new science?” e que tem a seguinte conclusão:

These findings provide evidence that political controversies can shape what scientists choose to study. Debates about the politics of science usually focus on the direct suppression, distortion, and manipulation of scientific results. This study suggests that scholars must also examine how scientists may self-censor in response to political events.”

Ia comentar, mas deixo para meus fiéis e críticos leitores.

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Ciência e Social

Qual é a influência de fatores sociais nas descobertas científicas? Há alguma? Ou toda?

Diferenciacionismo


Formalhaut – foto do Telescópio Hubble – NASA

Podemos abordar criticamente a ciência sob seus aspectos cognitivos. A forma como as idéias são geradas, a maneira como a realidade é interpretada e os conteúdos decorrentes dessa análise pertencem a esse tipo de interpretação. Convencionou-se chamá-la de epistemológica. Podemos, por outro lado, abordar a ciência do ponto de vista de suas relações sociais. Desde a década de 1990, em especial após o caso Sokal, o domínio sociológico da crítica à ciência vem sendo polarizado por duas correntes de pensamento: a diferenciacionista e a anti-diferenciacionista.
Este post tem o objetivo de discutir (bastante superficialmente, aliás) a perspectiva diferenciacionista da sociologia da ciência e sua relação com os métodos de avaliação de cientistas, ora reunidos sob o termo cientometria. Para isso, seguiremos o raciocínio de Terry Shinn e Pascal Ragouet no excelente “Controvérsias sobre a Ciência”.
A perspectiva diferenciacionista se destaca pelo trabalho de Robert Merton. Esse autor, trouxe à luz o papel das instituições na produção científica. Tanto do ponto de vista de regras institucionais que devem ser obedecidas como também, quanto ao sistema de recompensa oferecido ao cientista. Toda essa visão, que recebeu enormes contribuições de outros sociólogos posteriormente, inclusive do próprio Merton, parte do princípio de que a ciência é um modo de conhecimento epistemologicamente diferente dos outros modos de apreensão da realidade. Nas palavras dos autores:
“Por consequência, a ciência não somente é institucionalmente distinta das outras regiões do espaço social, mas ela se demarca como superior aos outros modos de cognição. É por isso que se pode caracterizar essa perspectiva como diferenciacionista”.

A visão diferenciacionista valoriza as instituições científicas como formatadoras e fomentadoras da ciência, principal modo de interpretar a realidade. Compostas por cientistas, que por enquanto ainda fazem parte da espécie humana, tais instituições começaram a apresentar enormes e indesejadas tensões em suas estruturas devido a busca por reconhecimento entre seus membros. Não é de se surpreender que surgisse nesse âmbito, uma estratificação das ciências e uma metaciência chamada de cientometria. O objetivo aqui seria então, medir notoriedade e produtividade. A cientometria na forma como a conhecemos hoje (Fator impacto, Citation idex, índice H, ISI, Thomson, etc) portanto, é um produto do diferenciacionismo. Lembrar que no diferenciacionismo a ciência se considera uma forma superior de cognição, diferente das formas de entendimento do senso comum.
Não bastasse o fato de estarmos confundindo ciência com publicação científica, começamos a utilizar dados (que foram produzidos para outros fins) para balizar políticas de fomento. Cada vez mais a ciência deve servir a objetivos econômicos de curto prazo. A ciência não é redutível a um punhado de publicações científicas. Tal comportamento tem gerado distorções por favorecer o que convencionou-se chamar efeito Mateus. Muito para poucos e pouco para muitos. O que parece fazer um certo sentido.
Mas seria o anti-diferenciacionismo uma solução?

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Minha Guitarra e Você

Segundo alguns, há várias formas de capturar verdades quintessenciais de um objeto. A metafísica, a ciência, a arte estariam entre elas. É interessante ver como uma das formas ao produzir um discurso sobre um objeto normalmente abordado por outra, produz naturalmente uma crítica. Pelo simples fato de ver diferente. É o caso da poesia e da ciência ao falar do violão de Jorge Drexler.
“La máquina la hace el hombre,
y es lo que el hombre hace con ella.”
É só um lembrete para os tecno-médicos de plantão.

Continue lendo…

The 20 most productive Brazilian Institutions – Health Sciences

São dados de 2003, mas pouca coisa se alterou desde então. O artigo original pode ser baixado aqui.

Questionamentos II…

Perguntinha frankfurtiana:
“O que ciência tem a ver com democracia?”

Acromegalia II

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Desenho de máscara mortuária escavada no Peru com traços de acromegalia

Muitos diagnósticos em medicina são feitos através do método de reconhecimento de padrões. O médico olha para um paciente e, ao conseguir subtrair as diferenças, rearranja as similaridades em um formato de tal modo a poder compará-lo com outro já previamente visto. Quando a comparação faz sentido, está feito o diagnóstico. Parece simples, mas depende de experiência prévia e principalmente, como têm mostrado estudos recentes, da capacidade de rearranjar as informações em múltiplos formatos, verificar sua coerência, e compará-las com inúmeros diagnósticos diferenciais. Os diagnósticos diferenciais são uma lista de patologias cabíveis no caso específico. Mais que erudição médica é uma forma do médico manter outras portas abertas, um tipo de plano B, caso o diagnóstico no qual ele aposta, não se confirme em avaliações posteriores.

Todas as doenças que dão sinais e/ou deformidades mais ou menos características são afeitas ao diagnóstico por reconhecimento de padrão. Principalmente, quando a deformidade é facial. Há exemplos clássicos: hanseníase (antigamente conhecida como lepra), neurofibromatose ou doença de von Recklinghausen (a doença do homem-elefante) e, claro, a acromegalia (ver figura). No caso específico desta última, meu calvário, os diagnósticos diferenciais são extremamente escassos. Na verdade, existe apenas um diagnóstico diferencial para a acromegalia, o que seria uma grande notícia se esse diagnóstico não se constituísse propriamente de um estado patológico. Na verdade, nem uma doença seria. Seria apenas uma constatação. O  reconhecimento de padrão da acromegalia esbarra em apenas um único “diagnóstico” diferencial: a feiúra. Um tipo específico de feiúra de traços grosseiros e primitivos em total oposição ao padrão vigente de beleza. É um grande desafio despir-se de todo tipo de preconceitos, em especial os machistas, infiltrados em suas visões de mundo e utilizar conhecimentos isentos de juízos morais para tomar decisões puramente técnicas!

Eu fazia parte do staff clínico de um hospital universitário que atendia a comunidade acadêmica e seus funcionários. Nas tardes de terça-feira, fui escalado para um tipo de pronto-atendimento voltado exclusivamente à comunidade universitária. Era um atendimento de problemas simples: gripes, infecções urinárias, amidalites, crises de pânico e coisas afins. Numa tarde nublada, adentra a sala de atendimento uma secretária de um departamento com queixas bastante vagas. Cefaléia, dores pelo corpo, etc. Era uma moça de uns trinta anos. Pele branca, cabelo curtinho, óculos. A face coberta de espinhas. Um pouco gordinha e baixa. Uma moça feia. Os padrões começaram a borbulhar como água fervente na minha cabeça. Os sinais eram muito sutis, examinei as mãos, fiz algumas perguntas. Não estava certo do diagnóstico mas no final da consulta arrisquei: “Acho que você tem um pequeno tumor no cérebro. Essas alterações são compatíveis com acromegalia. Precisamos fazer alguns exames e uma tomografia”. Diferentemente de meu outro paciente, ela ficou em silêncio, ouviu tudo que eu tinha para dizer, pegou todas as requisições e disse que assim que os exames ficassem prontos, retornaria.

Um ano após esse episódio, não tinha tido nenhuma notícia da minha paciente. Estava em um plantão noturno no pronto-socorro geral, ocupadíssimo, quando vi uma figura conhecida, que rapidamente se esgueirou por um dos corredores e desapareceu. Corri atrás e vi que era a paciente em questão. Chamei-a e após mostrar-me surpreso por vê-la tão bem, perguntei por que ela não havia retornado. Sem conseguir me olhar de frente e com lágrimas nos olhos, contou a seguinte história:

“Doutor, saí da consulta naquela tarde completamente arrasada. Tinha de escolher entre me conformar em ser apenas uma mulher feia ou ter um tumor no cérebro! Não fui trabalhar no dia seguinte e entrei em profunda depressão. Tenho amigos médicos e numa reunião, um colega me perguntou o porquê de meu estado e eu contei a história. Ele ficou revoltadíssimo e disse que nunca um médico deveria proceder da forma como você procedeu. Ele e outros amigos me incentivaram a mover um processo. Procurei um advogado. Juntei suas requisições com a hipótese de acromegalia, recibos de consultas com psiquiatras e psicólogos, receitas de antidepressivos, dias de trabalho perdidos e começamos a montar a documentação.”

Todo o processo seria baseado em danos morais pelo fato de a paciente ter sido exposta a um diagnóstico inexistente com enormes prejuízos psicológicos e financeiros. Faltava apenas a prova de que a doença não existia. Continuou: “Fui orientada a procurar um neurologista e me encaminhei ao Hospital das Clínicas. Lá fiz uma ressonância.” Eu estava desesperado.

“A ressonância, porém, mostrou um microadenoma de hipófise! Minha vida virou de cabeça para baixo. Entrei em parafuso. Consegui superar tudo com ajuda da família e dos amigos. Fui operada há 6 meses e estou bem”. Eu estava estupefato. Quando pensei no perigo que passei devido ao excesso de confiança; nos prejuízos que um processo poderia causar à minha curta carreira profissional; no desconforto desnecessário que causei à paciente; na revolta que gerou toda uma mobilização contra minha pessoa, pouquíssimo simpática ao círculo de amizade da paciente – o diagnóstico correto ficou num plano muito, muito secundário. Ela abriu a bolsa e me deu uma carta que carregava com ela desde que se descobrira doente. Era uma carta de agradecimento, um grande obrigado. Eu disse que quem deveria agradecer era evidentemente, eu. Por que? Porque a lição estava aprendida: o exercício da medicina é algo muito maior que diagnósticos difíceis e tratamentos corretos.

Tenho essa carta comigo, até hoje. Para eventuais períodos de déficit de memória.

Michael Crichton

Michael Crichton 1942 – 2008
Fã da série Emergency Room (ER), fiquei triste com a morte precoce de Michael Crichton (66 anos!). Médico e excelente escritor, teve o mérito de reavivar o interesse que sempre houve pela medicina e pelos médicos. A série era perfeita nas condutas e bastante atualizada. Passava uma idéia da pressão sofrida pelos médicos ao trabalharem em condições de extremo estresse. E também sua humanidade. Guardadas as devidas proporções, muito do que se via por lá poderia ser transposto para nosso país. O sistema de hierarquia em especial me chamava muita atenção. Também o modo como os médicos trabalham com enfermeiras competentes. Existem enfermeiras como aquelas no Brasil. Trabalhei com várias. É simplesmente fantástico. Para captar aquilo tudo, Crichton só pode ter trabalhado em vários plantões. Essa série vai deixar saudade, como M.A.S.H. Talvez porque também já tenha trabalhado com alguns Carters e Hawkeyes.

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