De olhos bem fechados

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Li uma vez que a razão pela qual nos lembramos sempre das coisas ruins, é justamente para não repeti-las. Uma memória seletiva, que favorece a armazenagem de más recordações, não está exatamente de acordo com nossas concepções atuais de qualidade de vida, mas certamente salvou a vida de muitos hominídeos milhares de anos atrás.

Ontem, no blog do Shridhar vi um texto sobre enzimas, baseado em um artigo científico da Nature onde os autores encontraram uma droga para acabar com o medo.

Já falei sobre o medo aqui. Como eu dizia, existem alguns tipos de medo e o tipo ao qual os autores se referem é o medo adquirido. Justamente essas ‘más recordações’ de que eu comecei falando.

Esses medos protegeram e ainda protegem muito a gente. Mas no mundo em que vivemos, eles também são o ponto de partida das neuroses. Medos fictícios ou medos desnecessários (que foram reais um dia mas que agora não tem mais razão de ser) e que se gravaram em nossas memórias e não conseguimos esquecer. Os autores comentam o óbvio exemplo dos ex-combatentes de guerra, que mesmo depois de voltarem pra casa, suspeitam que o inimigo esteja a espreita. Mas é um mal que, em diferentes graus, pode afligir todos nós.

No caso dos ratos do experimento, o medo em questão era o de tomar um choque elétrico (0,7 mA por 2 s) 3 min após ser colocado em um novo contexto. O medo era representado pelo comportamento de imobilização dos ratos quando expostos novamente ao mesmo contexto. Depois de tomar o choque elétrico, os animais começavam a perder o medo apenas depois da 6a vez que eram re-apresentados ao mesmo contexto sem tomar o choque. Uma injeção de Butirolactona I no cérebro dos bichos, fez com que eles perdessem o medo já na primeira vez que eram re-apresentados ao contexto.

Você vai abrir a porta da geladeira e toma um choque. Em seguida alguém pede para você abrir a porta da geladeira e você hesita porque sabe que pode tomar outro choque. Mas se esse alguém injetar Butirolactona I no seu cérebro, então você abrirá a porta da geladeira sem medo do choque. Impressionante, não?!

A mágica é feita em uma proteína quinase chamada CDK5. As quinases são proteínas que modificam outras proteínas pendurando um fosfato nelas, como se fosse um brinco, e que participam de reações em cadeia. Cascatas de reações onde uma proteína vai colocando um brinco de fosfato em outra, como uma forma de enviar mensagens de um lugar a outro na célula. A cascata da CDK5 começa em uma proteína G da membrana plasmática chamada Rac-I e vai até o alvo, a proteína PAK-1, uma proteína envolvida na remodelação do citoesqueleto de actina (as proteínas que servem de ossos) da célula. Fico difícil?! Vamos lá, o que PAK-1 faz é mudar algumas sinapses, as conexões entre dois neurônios, de lugar.

Quando alguma coisa ruim acontece, CDK5 é ativada e faz com que as sinapses se re-organizem. Sempre que aquela o contexto ruim reaparece, os impulsos nervosos percorrem o mesmo caminho e você é alertado por um medo adquirido. Esse medo contextual. Nos ratos, a droga impede o funcionamento da CDK5. Sem a ativação do alvo PAK-1 as sinapses parecem voltar para seus lugares originais e Shazan você perde o medo. O contexto não mais percorre a via das sinapses fora de lugar. O medo desaparece.

Só pra confirmar, os caras testaram ratinhos mutantes, onde uma dieta a base de doxicilina faz com que eles tenham uma super produção de CDK5, e os bichinhos não perdem o medo do choque nunca mais.


É um estudo lindo, mas eu acho que o problema é outro. O problema é o contexto! Colocamos a culpa no medo, quando o problema é que não somos capazes de reconhecermos as mudanças de contexto. E sentimos medo à toa. Se o contexto é diferente, não há porque achar que vem choque pela frente. Atacamos nossos medos com química, por que não conseguimos reconhecer as mudanças do mundo a nossa volta. Termina tudo doido! Não são nossos medos que nos deixam neuróticos, são nossos olhos fechados!

Sananbenesi, F., Fischer, A., Wang, X., Schrick, C., Neve, R., Radulovic, J., & Tsai, L. (2007). A hippocampal Cdk5 pathway regulates extinction of contextual fear Nature Neuroscience, 10 (8), 1012-1019 DOI: 10.1038/nn1943

Discussão - 6 comentários

  1. João Carlos disse:

    É... Eu tinha visto o mesmo artigo através do EurekAlert.E resolvi não botar uma tradução no "Chi vó, non pó" porque eu sou pessimista demais.Eu logo pensei nas aplicações militares da descoberta e, depois, extrapolei para um novo narcótico, comercializado em "bocas".Por que será que o artigo não fala de um processo para, em lugar de eliminar, aumentar a produção da quinase do medo? Seria muito útil aplicar uma dessas em um Fernandinho Beira-Mar, por exemplo.

  2. Mauro Rebelo disse:

    Pois é, mas acho que aumentar o medo pode ter mais usos maléficos do que eliminá-lo. Imagina uma tortura com droga do medo? Alias, se você gosta de super-heróis, foi justamente isso que o vilão do último filme do Batman usou.

  3. Shridhar Jayanthi disse:

    O que eu achei bem intrigante nessa pesquisa é que, pelo que eu estudei, CDKs são quinases que são traçáveis longe na linhagem evolutiva. Tudo bem que é parte do mecanismo evolutivo essa reciclagem de funções, mas eu imaginava que o medo adquirido fosse utilizar um mecanismo mais complexo envolvendo muitos processos. Essa pesquisa mostra que o medo adquirido pode ser tão instintivo quanto a dor ou a atração sexual...Se o que funcionou com ratos também funcionar com humanos, então significa que tratar PTSD com terapia é tentar domar uma sensação primitiva com uma capa de racionalidade e inteligência. Isso é incrível!ps. Mauro, se ao invés de colocar o link para o meu perfil, você botar o link direto para a matéria, um link para o seu post aparece automaticamente no meu site o que facilitaria a mim ou a alguém lendo o meu post, achar uma perspectiva diferente. E eu ganho pontos com o Google, hehe.

  4. Marilia Z. P. Guimaraes disse:

    Querido Mauro,Gostei muito do seu artigo. Eu tinha visto uma chamada pro paper que você se refere mas não tinha olhado! É interessante, mas eu tenho um pouco de medo (!) das interpretações que os autores fazem. Primeiro que eles medem as respostas dos animais por tempo de congelamento, que é a mesma resposta à ansiedade.(Aqui cabe um parêntese para esclarecermos algumas definições. Medo é uma sensação que decorre da presença de um estímulo potencialmente nocivo, condicionado ou incondicionado. Esse medo pode se tornar crônico de várias maneiras, como por exemplo, se o estímulo ou algo associado àquele estímulo ruim continua por perto. Esse medo crônico do tipo causado pela permanência do estímulo ruim é o chamado estresse. Finalmente, a ansiedade é um estado de apreensão gerado pela expectativa de algo não necessariamente ruim, podendo também se tornar patológica – como nas fobias, síndrome do pânico, transtorno de estresse pós-traumático, etc. Num paralelo com o seu artigo do medo, mesmo a ansiedade – sem ser patológica – é importante pro desempenho de várias funções).Então a gente pode pensar que o medo condicionado (isto é, uma coisa não nociva – tipo um sino tocando, mas associado por lembrança a algo nocivo – um choque), o medo crônico e a ansiedade requerem a formação de memórias aversivas (ou agradáveis, neste último caso). Ora, se a gente der pra esses animais do estudo um ansiolítico (um benzodiazepínico, tipo Valium) a resposta esperada será a mesma da Butirolactona nesse tipo de ensaio. Então o que é quente nesse estudo não é a descoberta de um novo fármaco que acaba com o “medo” mas sim a elucidação de pelo menos parte da cascata de sinalização que isso envolve e também uma possível alternativa de tratamento que atue à jusante dos outros alvos farmacológicos (especialmente levando-se em conta que os ansiolíticos mais comuns têm uma penca de efeitos colaterais graves). Agora, injeção intra-hipocampal não é uma alternativa terapêutica em humanos!Portanto, em relação ao seu último parágrafo, o contexto é tudo e as memórias também. Não é à toa que anatomicamente está tudo ali perto no sistema límbico: emoções, regulação de hormônios, memória, o que nos faz amar, o que nos faz comer – na base do nosso cérebro. E o interessante é que está mais que comprovado que psico-terapia é eficaz no tratamento de vários tipos de ansiedade patológica (incluindo síndrome de estresse pós-traumático que você mencionou). Ou seja, esse tratamento á capaz de fazer as alterações, que a gente chama de plásticas, no sistema nervoso: induz expressão de genes, inibe outros, elimina sinapses, faz outras. E já se sabe também que alguns indivíduos são mais propensos a essas ansiedades patológicas, tanto por fatores genéticos quanto ambientais. Um estudo que eu gosto muito, feito com 2 linhagens diferentes de camundongos, mostra justamente isso. Numa das linhagens, as mães lambem muito as crias e na outra, não. Os filhotes das mães que lambem muito, que portanto, são muito lambidos, têm pouca chance de desenvolver ansiedade. Já os das outras mães, têm muita chance. Se a gente troca os filhotes e dá os da lambedora pra não lambedora, esses continuam bem. E os da não lambedora, cuidados pela que lambe muito, ficam bem também. Ou seja, na dúvida do background genético das crianças, lamba-as muito!

  5. Mauro Rebelo disse:

    Excelente comentário Dra. neurocientista. 🙂

  6. Mauro Rebelo disse:

    Shridhar, o fato de contextos ambientais alterarem a plasticidade cerebral já me parece complexo o suficiente! Já atualizei o link para o seu post no texto. Um abraço,

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