Bob Marley, Abrahan Lincoln e a credibilidade da Internet

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Não dá pra confiar em tudo que aparece na internet.
Tudo bem, isso a gente já sabe. Mas quando o acaso me levou a uma informação em princípio banal, mas que avaliada com um pouco de profundidade mostrou o quão levianas podem ser as publicações e atribuições na grande rede, eu me assustei.
Outro dia, escrevendo uma carta, disse que a melhor forma de evitar a decepção com relação a uma pessoa, era conviver com ela em público. Por que, continuava, fazendo referência ao grande Bob Marley, “nós podemos enganar algumas pessoas por algum tempo, mas não podemos enganar todo mundo, o tempo todo”.
Fiquei pensando um minuto sobre a profundidade da frase e, sem querer desmerecer o guru do movimento Rastafari, pensei: mas será que foi mesmo o Bob Marley que falou isso? Ou ele já estava citando alguém?
A citação está na canção “Get up, Stand up” de Bob Marley e Peter Tosh, que apareceu no álbum Burmin’ de 1973: “You can fool some people some time, but you can’t fool all the people all the time”. Mas como canções não trazem referências bibliográficas, eu fui perguntar pro oráculo: o google.
Descobri então vários sites de citações que atribuiam a célebre frase ao célebre 16o presidente americano Abrahan Lincoln (1809 – 1865). Lincoln teria dito a célebre frase em um discurso na cidade de Clinton, no estado americano de Illinois, no dia 2 de Setembro de 1858, durante uma série de debates com o também candidato ao senado Stephen Douglas.
A frase original seria “You can fool some of the people all of the time, and all of the people some of the time, but you can not fool all of the people all of the time”.
Porém, uma pesquisa ainda um pouco mais profunda mostrou que não, não foi Lincoln. Nenhum jornal da época confirma que ele tenha dito isso durante esse discurso. Os sites sobre a série de debates nem mesmo relacionam a cidade de Clinton (o discurso teria sido em Quincy em 27 de Setembro de 1858). Em uma pesquisa do professor de história americana David B. Parker, a primeira atribuição formal, por escrito, da frase a Lincoln está em uma edição do The New York Times de 1887. Antes disso não há nenhum registro da citação por escrito, seja para Lincoln ou qualquer outra pessoa. Ainsworth Spofford, que foi o diretor da Biblioteca do Congresso americano por muitos anos, por indicação do próprio Lincoln, e que disse que ele nunca havia dito aquilo.
Finalmente a frase é atribuida a Phineas T. Barnum, diretor do famoso Ringling Bros. Barnum and Bailey Circus, e que era amigo pessoal de Lincoln. Barnum era um homem do espetáculo, e vivia em um ambiente onde a frase já seria mais apropriada. Mas ele também era autor de livros e político amador. Muitas referências apontam para ele. Mas ainda há quem diga que foi o escritor Mark Twain ou um jornalista qualquer que criou a frase e colocou nos lábios de Lincoln.
Eu já escrevi aqui sobre a credibilidade na internet. Mas o mais importante é a questão do critério do leitor, que eu já discuti aqui e aqui. A importância de formar um público leitor capaz de avaliar a credibilidade da informação na internet é determinante para a inclusão digital e é um trabalho da escola, mas também uma responsabilidade da comunidade científica. Sem educação científica não há inclusão digital!
Numa série muito bacana de artigos sobre os professores do futuro no blog Inclusão Digital da escritora Sonia Rodrigues, ela cita uma entrevista com o escritor e filósofo italiano Umberto Eco, que disse: “Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a consulta. Sou capaz de distinguir os sites confiáveis de filosofia, mas não os de física. Imagine então um estudante fazendo uma pesquisa sobre a 2.ª Guerra Mundial: será ele capaz de escolher o site correto? É trágico, um problema para o futuro, pois não existe ainda uma ciência para resolver isso. Depende apenas da vivência pessoal. Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos.”
E um desafio para nós!

Discussão - 12 comentários

  1. João Carlos disse:

    O problema apontado por Eco existe faz tempo... Antes da internet, os "sites" se chamavam "livros"... Imagine que algum estudante vá pesquisar sobre a 2ª GM e comece por um autor britânico: David Irving. Quem nada sabe sobre a 2ª GM, pode achar que um britânico jamais seria pro-nazista.
    No seu próprio campo da ciência é possível achar um monte de pseudo-ciência criacionista assinada por gente que ostenta um "PhD" após o nome...
    Não basta ensinar ciência: há que ensinar a raciocinar com o próprio cérebro (e nem isso é garantia...)

  2. Mauro Rebelo disse:

    Exatamente João. Tenho uma amiga que achava que o filme "Quem somos nós", que é uma grande baboseira, estava cheio de argumentos científicos, porque todos os depoimentos eram de PhD.

  3. FernandoP disse:

    Oi!
    Só para puxar um pouco a brasa para o meu lado -- e dos meus colegas de profissão: a explosão da informação (e as consequências disso, tanto quanto credibilidade quanto capacidade de assimilação) existem desde que existem livros, como disse o João Carlos.
    Contudo, tão antiga quantos os livros, existe a profissão de bibliotecário!
    Uma das questões dessa profissão é habilitar o leitor a procurar por fontes de informação confiáveis, mesmo sem ser um profundo estudioso da área. Essa educação das pessoas é uma parte relevante dessa profissão, que não está só interessada em organizar estantes.
    Ah, e só para ser um pouquinho mais chato ainda: se você como autor (ou leitor também) quiser saber mais sobre determinado assunto, tiver disconfiança de algum dado ou quiser alguma resposta bem cabeluda (tipo essa, da qual tu foi atrás), também dá pra recorrer ao bibliotecário! Eles estão aí pra fazer o trabalho sujo de pesquisar as informações já publicadas que possam responder às tuas dúvidas!
    Lembro que meu pai veio pra mim um dia com um e-mail em mãos, que ele recebeu e imprimiu, sobre algumas "verdades escondidas" sobre os celulares -- códigos secretos que aumentavam a vida útil da bateria; um número de telefone que ligava para a polícia internacionalmente e outras cosias. Fui atrás e enviei uma resposta, explicando cada resposta, citando textos sobre aqueles assuntos. Não deu outra e ele enviou aos amigos que tinham enviando o original para ele.
    Enfim, esse comentário foi mais pra lembrar que bibliotecários existem do que comentar teu post. 🙂
    Espero que tu compreenda.
    Um abraço e bom trabalho.
    FernandoP

  4. Leandrus disse:

    Poxa, cara, que post fantástico!
    Concordo em número, gênero e degrau!
    Realmente, Luís Fernando Veríssimo, numa entrevista (www*sempreumpapo*com*br/audiovideo/player.php?id=120) diz que já perdeu a conta de quantas vezes viu textos na rede cuja autoria era atribuida a ele, sendo que ele não os havia escrito.
    Bom trampo ae com o blog,
    Abraços!

  5. Érico disse:

    Eu acredito que dentro das universidades as pesquisas online estão melhorando. Claro que ainda não é uma maravilha, e ainda tem aluno fazendo trabalho usando Wikipédia como fonte principal, mas aos poucos os estudantes estão aprendendo a utilizar fontes mais confiáveis de pesquisa, como bases de dados oficiais (Scielo, PubMed, etc) e de revistas que disponibilizam seus artigos. Não tenho nenhum tipo de dado aqui, mas aposto que a popularidade desses sites e também dos trabalhos de universitários que consultam essas fontes tem aumentado. Eu sempre me perguntei até onde a internet teria sido vantajosa no círculo acadêmico, porque se antes os estudantes só tinham a biblioteca como ferramenta de pesquisa, tudo de repente ficou mais fácil (e menos confiável) com a Internet, e a credibilidade muitas vezes foi mesmo pro saco... hoje acho que é um recurso muito potente, se bem utilizado, é claro.
    Na minha opinião, a base do problema tá no que você falou: na educacão digital. Não adianta inclusão digital sem educacão digital, e acho que os professores tem responsabilidade nessa hora. Eles tem que ensinar aos alunos como fazer pesquisa na Internet. Da mesma forma que os alunos necessitam ser alfabetizados para o uso dos códigos da linguagem escrita, é também importante que eles sejam capazes de manusear os instrumentos e as novas formas de representação do conhecimento em linguagem digital.
    Essa também é uma discussão que surge bastante a respeito do uso do computador na escola: não vai ter nenhum usufruto se a presenca do computador na escola seja uma mera formalidade, ou reproduza somente uma visão de educacão defasada, que é o que geralmente ocorre...

  6. Bessa disse:

    Mais uma vez genial, Mauro. Mas segue minha provocação (que talvez devesse endereçar ao Umberto Eco ou pelo menos à Sônia Rodrigues). Se somos capazes de avaliar a confiabilidade de um site apenas de áreas as quais dominamos, será que isso não é porque aquelas informações nós já conhecemos e sabemos ser corretas? E, sendo assim, será que as leituras na internet realmente acrescentariam novas informações?

  7. professor gostaria de saber quem arcca com as despesas de uma elaboração do EIA/RIMA obrigada pela atenção, abraços.

  8. Mauro Rebelo disse:

    Olá, em geral é o contratante. Dá uma olhada nesse texto aqui http://scienceblogs.com.br/vqeb/2007/05/quem-tem-medo-do-eia-rima.php Um abraço

  9. Caro Mauro,
    Encontrei, por sugestão da Sibele, uma prova cabal de que a informação na internet nem sempre é confiável, e às vezs pode ser um lixo. O texto a seguir, obtido no site http://www.administradores.com.br/informe-se/artigos/elementos-quimicos-e-a-natureza/39808/, ilustra bem o que eu menciono:
    Na quimica encontramos varios elementos quimicos que o homem extrai da complexa e prolongada evolução do planeta, a partir do
    desaparecimento do grande numero de vulcões que existiam na superficie do planeta terra, entre as eras geologicas pelos quais o planta já passou.
    Os elementos quimicos estão dispersos por varias partes do planeta e devem ser preservados o maximo possivel em sua forma natural, pois não podem ser fabricados de maneira a alterar a tecnica e o elemento, pois o planeta correria um serio perigo de modificação sem um equibrio natural atravez do desenvolvimento ao logo de milhoes de anos ( era geologica ).
    Os minerios e os elementos quimicos primitivos, fazem parte da composição química de varias moleculas, onde são modificadas naturalmente atraves das diferentes interações que ocorrem entre os elementos na materia natural de formação do planeta, nos diversos estados da materia.
    Incrível!
    abraço,
    Roberto

  10. Eliane disse:

    Puxa!!!
    Muito legal esse blog. Vc está de parabéns Mauro. Não o conhecia até então, até porque nossas áreas não são muito semelhantes (sou economista e bancária), mas adorei seus artigos, voltei no tempo e li vários.
    Gostei muito,
    Abraço!

  11. Mauro Rebelo disse:

    Que bom Eliane! Obrigado e volte sempre!

  12. […] Essa eu tenho que dividir com vocês, principalmente com aqueles que consideram o ‘Google’ não mais uma ferramenta de acesso ao conteúdo e sim a ‘fonte’ do conteúdo em si. Não é! Mas o mais importante é ter clareza de que a frequência com que uma informação aparece no Google também não é um critério de veracidade dessa informação, como eu já falei aqui. […]

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