Sobreviver e adaptar


Quem já não se emocionou com Fernão Capelo, a gaivota que não se conformava com sua vida cotidiana? Passei o final de semana passado na casa dos meus pais que tem no seu quintal uma bela história de conformação, adaptação e sobrevivência.

A primeira vista, Lili é uma gaivota normal. Não fosse o entorno, o quintal lá de casa, você poderia até pensar “O que será que ela tem de especial?” Mas olhando a próxima foto, de perfil, você pode ver que a penugem negra desse lado é um pouco menor. É que ela não tem a asa direita.


Lili é uma sobrevivente. Minha mãe a encontrou enquanto passeava na praia, literalmente “arrastando uma asa” para ela. A asa estava quebrada e pendurada apenas pela pele, infeccionada e a beira da necrose. Lembrando dos seus tempos de instrumentadora cirúrgica, minha mãe pegou Lili na praia e levou pra casa. Sedou, cortou a pele, amputou a asa, suturou e medicou.

Isso foi há 6 anos e ninguém acreditava que Lili sobreviveria muito tempo. Mas ela não só está viva até hoje, como goza de uma saúde invejável e está totalmente adaptada a vida no quintal: tem uma grande bacia de água na sombra onde se banha todos os dias e convive harmonicamente como Duque e Baby, os dois vira-latas da casa; com Loiro, o papagaio e com o vai e vem dos humanos que circulam por ali. Mas é só: ai de um pombo se tentar pousar no quintal. Vai levar uma corrida!

Não, não há nenhum sinal óbvio que indique se Lili é uma gaivota macho ou fêmea. Tipo a crista dos galos. Ou pelo menos nada que apesar de eu ser biólogo (e meio metido a saber tudo), eu reconheça. Mas como gaivota é um substantivo feminino, vai ficar Lili mesmo até que a gente descubra o contrário.

Depois de recuperada, o maior problema foi como alimentar uma gaivota? Felizmente ela se acostumou com peixe congelado, mas tem de ser fresco e inteiro. Os pescadores da região passam lá em casa para entregar os peixes pequenos que eles separam “para a madame que tem uma gaivota no quintal”. Além de ser exigente com o peixe, Lili tem todo um ritual para se alimentar. É ela quem tem de vir até a comida, que deve ser deixada na porta da cozinha. Então ela sai da sombra da Bananeira, no canto esquerdo, anda paralela ao muro até a metade do quintal e faz uma curva de 90o para andar em linha reta novamente até a porta da cozinha, onde a espera seu almoço de sardinhas, cocorocas e manjubinhas. Curiosamente, Lili não anda em diagonal.

Apesar de ser uma graça, Lili ainda é arisca e muito assustada. Ninguém pode se aproximar dela que ela fica super nervosa: primeiro tenta se afastar com seus passos miúdos, as vezes vomita, mas se o perseguidor insiste, Lili tenta instintivamente decolar com sua asa esquerda (apenas), em uma cena de partir o coração, e que mostra toda a força do instinto e toda a fraqueza da memória desse animai. Lili não ‘sabe’ que não tem uma asa, mas inevitavelmente descobre toda vez que mais precisa dela.


Em poucos dias ouvi em dois locais diferentes a frase que coloquei no título. Sobreviver e adaptar. A primeira de Amparo, personagem do livro “Rio das Flores” de Miguel Souza Tavares, que terminei de ler esses dias, falando da sua herança cigana. A segunda da Sonia Rodrigues, no buteco, acho que também falando da sua herança cigana.

Sobreviver e adaptar é o que nos permite evoluir. As vezes isso significa lutar, outras vezes se conformar com o quintal.

Isso é flexibilidade adaptativa?!?

Uma pergunta complexa merece uma reflexão que nem sempre favorece uma resposta simples. Outras vezes a resposta simples, simplesmente, é menos interessante (ainda que consiga cumprir o papel de responder). A pergunta da Sonia, sempre tentando aprofundar a idéia da flexibilidade adaptativa, mereceu uma reflexão que eu divido com vocês.

Sonia: “(…) o ser humano (…) orgulhoso (…) obrigado por contigências materiais a um exercício de humildade, sem ficar ressentido em demasia, (…) está demonstrando flexibilidade adaptativa?”

Acho que a resposta ainda é não. Mas está quase virando sim!

A flexibilidade age através de mecanismo adaptativos: fisiológicos, bioquímicos, comportamentais, mentais. E para ser considerado um mecanismo, uma forma de operar, temos que poder diferenciar do que é eventual, incidental. Fisiologicamente, podemos diferenciar tolerância de resistência, e a diferença é muito importante. Lembrem-se que tolerância aqui tem uma definição provavelmente diferente das ciências sociais (e portanto, diferentes do sentido que usei para tolerância no texto anterior).

Os mecanismos que conferem a flexibilidade adaptativa são mecanismos de tolerância às variações no ambiente. Quanto mais numerosos os mecanismos e mais amplos os intervalos de tolerância, maior a flexibilidade. Um peixe que pode tolerar variações de temperatura entre 10 e 30 oC tem uma tolerância maior que aquele que tolera temperaturas entre 15 e 25 oC. Sua flexibilidade é maior e ele pode colonizar novos ambientes (de águas mais frias ou mais quentes) ou simplesmente sobreviver quando um fenomeno com El niño alterar a temperatura da água para um desses valores extremos.

Muito bem, até agora só dei mais um exemplo de flexibilidade (ainda que dessa vez com uma definição correta de tolerânci). Mas o conceito novo que quero introduzir é o de resistência. Quando acaba nossa tolerância à alguma variável, é inevitavelmente perecermos se a razão do nosso estresse não cessar. É perecer ou perecer, dependendo apenas de quando! O tempo que leva entre a quebra do mecanismo de tolerância e a morte é tido como tempo de resistência. Não sei se podemos definir um “mecanismo” de resistência, já que ele não pode a priori ser descrito ou previsto. Quando algo essêncial se quebra (o mecanismo de tolerância), algo incidental (o “mecanismo” de resistência) passa a operar. A resistência não contribui para a adaptação ao ambiente. Tanto o peixe que tolera 25 oC quanto o que tolera 30 oC podem sobreviver à 40 oC. A questão é como e por quanto tempo. Mas além disso, essa resistência não faz com que os próximos peixes consigam tolerar os 40 oC. Não há adaptação.

Por isso a resposta a pergunta da Sonia depende se o nosso humano orgulhoso tolerou ou resistiu (no sentido fisiológico) as contingências materiais que lhe obrigaram a um exercício de humildade. Acredito que isso esteja relacionado com a essencialidade ou a incidentalidade do seu orgulho. Assim como aos personagens que ele possui e os papéis que eles precisam desempenhar.

O que é Flexibilidade Adaptativa?

Durante toda a minha vida de estudante de biologia fiquei procurando uma tradução para um termo que, até então, aprendiamos apenas em Inglês: Fitness. Hoje o termo tem a ver com malhação, mas naquela época estava relacionado com a capacidade de um organismo se adaptar ao seu ambiente.

Estava andando pela orla de Aracajú, discutindo com minha querida amiga bióloga Cristine sobre coisas da vida, acompanhado da ilustre Sonia Rodrigues, quando querendo dar uma de erudito falei: Cris isso é flexibilidade adaptativa! Sonia, enquanto literata, e autora da frase que mais tenho usado ultimamente (“A palavra não é casa da mãe Joana”) perguntou imediatamente: O que é flexibilidade adaptativa?

Enquanto Biólogos, recorremos a pool gênico, adaptação ao ambiente, seleção natural pra explicar que é a capacidade de um organismo de se adaptar ao ambiente onde ele vive. Se adaptar, principalmente, as mudanças bruscas nesse ambiente. Essa capacidade de adaptação envolve o estoque de genes que um organismo tem para poder “ativar” ou “desativar” em caso de necessidade (o pool gênico). Esse estoque de genes é, geralmente maior em organismos que tem reprodução sexuada. E quem tem o maior estoque, tem maiores probabilidades de ser “escolhido” pela seleção natural. E pensar que passei vários anos procurando a tradução de fitness com ela bem na minha cabeça.

Mas a Sonia não é “física”, é “poeta” e nada disso, ainda que estivesse super correto, alcançava a sua alma poética. Ela tentou mais uma vez, agora a seu jeito. Queria aprender essa coisa “nova”. E todo mundo que dedica tempo para aprender uma coisa nova, e que eu sei ensinar, ganha toda a minha atenção. Foi quando a sonia recitou um poema (Se – If – de Rudyard Kipling, do qual eu reproduzo uma parte para vocês) e pediu para dizermos se ele representava ou não a flexibilidade:

“Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.”

E perguntou, então é isso flexibilidade adaptativa?

Ainda não, mas foi uma ótima colocação. A meu ver esse poema explica o que é tolerância. Que também é um conceito importante adaptativamente, mas que não é o mesmo que flexibilidade.

A diferença entre os dois é que a tolerancia pode ser aprendida, mas flexibilidade não. Depende do conjunto dos seus genes. Ou você tem, ou não tem!

Ser tolerante é passar um dia sem comer pão, ser flexível é aprender a comer biscoito. Ser muito tolerante, é poder passar vários dias sem comer o pão que você tanto gosta. Ser muito flexível é passar a gostar mais de biscoito do que você gostava antes de pão. E no dia que acabar o biscoito… ai você pode dar um pitti, porque… vai ser flexível assim na puta que o pariu!

PS: Tanto o original do poema If em inglês quanto a tradução Se em português são fáceis de achar com o Google.

PS2: Não entendeu as fotos? Se você estiver na água, nade; se estiver na terra, corra; se tiver uma bicicleta, pedale porque você vai chegar mais depressa e se cansar menos. Isso é flexibilidade adaptativa!

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