"Foi… por medo… de avião…"

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Em ‘O brilho eterno de uma mente sem lembranças’, Clementine, depois de anos de relacionamento com Joel, resolve apagá-lo, literalmente, de sua memória. As angustias que um despertava no outro, vivendo juntos ou separados, eram insuportáveis e eles se submeteram a um tratamento experimental no cérebro para bloquear as memórias que tinham um do outro.
Dois artigos publicados esse mês nas prestigiosas revistas Nature e Science mostram que a ciência está cada vez mais perto de fazer com que Joel possa bloquear, senão a memória de Clementine, a reação de angustia a lembrança dela.
Eu já falei aqui sobre drogas que podem induzir a perda do medo, mas elas tem o ‘pequeno’ inconveniente de interferir com a síntese protéica no cérebro de humanos. Mas esses novos artigos demonstram uma abordagem não invasiva, ou seja, sem drogas, que pode se tornar revolucionaria e mania nos consultórios de psicanálise.
Aprender a ter medo pode ser importante adaptativamente. Um dos maiores especialistas do mundo em memória, o neurocientista Ivan Izquierdo, diz que de todas as nossas emoções, a única que realmente sabemos que é capaz de estimular a nossa memória é o medo. O medo também pode ser ensinado através do ‘reflexo incondicionado’ de Pavlov. É quando ratos tomam um choque depois de ouvir o som de um apito e aprendem a temer o apito. O medo é medido através de uma resposta involuntária e inata (que no caso dos ratos é ficar completamente imóvel).
A memória pode ser de diferentes tipos e no caso de uma memória do medo, vários tipos estão envolvidos: a memória declarativa (aquela que é ativada por palavras e outros símbolos), a emotiva e a inconsciente (que gera, por exemplo, a resposta motora ao medo). Elas estão localizadas em diferentes regiões do cérebro, mas são fixadas contemporâneamente em um processo único e definitivo chamado de consolidação. No entanto, novos resultados de experimentos com bloqueadores químicos tem mostrado que a memória é fixada, construída, de novo, todas as vezes que ela é acessada (toda vez que nos lembramos daquilo), em um processo chamado de reconsolidação.
O período de reconsolidação é relativamente curto (em ratos e humanos, de até 6h), mas durante esse período, a memória pode ser relaxada, flexibilizada, alterada, manipulada e outros -adas que você queira. Passado esse período, a memória é fixada e não pode mais ser modificada. Porém, se tiver sido modificada, o efeito, segundo o artigo da Nature, é bastante duradouro, sendo observados mesmo após 1 ano da reconsolidação.
A maior parte dos tratamentos contra ansiedade é baseada em um processo chamado de extinção: o contexto amedrontador é apresentado, mas sem o agente do medo. A teoria diz que depois de repetir esse processo muitas e muitas vezes, o medo desaparece. E desaparece mesmo. Só que na maioria dos casos, não para sempre, com grandes chances de retorno após o final do tratamento.
Segundo os autores, a extinção só é eficiente se conduzida durante o processo de reconsolidação. É importante acessar a memória amedrontadora, para que o novo processo de contextualização seja disparado. E só então podemos alterar a memória.
Estou com a sensação que falta um exemplo. Fiquei aqui pensando no que eu poderia usar que não fossem os quadrados azuis e verdes do experimento descrito no artigo, medindo como resposta ao medo a variação na condutividade elétrica da pele. E ai lembrei do Belchior e do medo de avião que fez com que ele pegasse na mão da menina, me dando assim os dois argumentos que eu precisava para construir um bom exemplo: o contexto amedrontador – avião; e a resposta inata ao medo – segurar na mão.
O medo de avião é mais que bom, é um ótimo exemplo. É um medo intuitivo forte, porque o medo de altura é inato e todos nós o dividimos; mas ao mesmo tempo irracional, porque todo mundo sabe que é o meio de transporte mais seguro que existe e as estatísticas mostram que a chance de você morrer em um acidente aéreo é de 1:1.600.000 (menor que a de morrer atingido por um raio), o que significa que você pode viajar de avião todos os dias durante 26.000 anos sem que nada lhe aconteça. E ainda assim, a gente tem medo!
Eu, por exemplo, não tinha medo de avião até que comecei a andar muito neles. Mas tudo começou mesmo quando assisti um programa que mostrava que é durante a decolagem e a aterrissagem que a maior parte dos pouquíssimos acidentes acontecem. Agora, todas as vezes que o avião decola, eu não chego a segurar na mão de quem está do lado, mas as minhas mãos suam frio, que é outro sinal inato de medo.
É um medo que eu controlo tranquilamente. Mas se o Belchior não, então minha sugestão é que ele fosse ao psicólogo pra tentar uma terapia de extinção, mostrando, por exemplo, filmes de várias e várias viagens de avião onde as pessoas partiram integras e chegaram integras aos seus destinos.
Mas o artigo diz que a terapia de extinção só funciona se houver antes uma exposição ao medo e uma recuperação da resposta a ele. Então, antes de começar a extinção, antes de começar a mostrar as viagens que são bem sucedidas, é preciso mostrar uma viagem mal sucedida. Só depois de ver um avião caindo, pegando na mão da psicóloga, a memória amedrontadora terá sido acessada, dando inicio ao período de reconsolidação. Só ai os filmes teriam efeito na flexibilização da memória do desastre que despertava a reação de segurar na mão dela. Da próxima vez que ele viajar com a menina, o gesto de pegar na mão será voluntário, e não uma resposta incondicionada.
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Já o artigo da Science diz que essa extinção não funciona para todo mundo, porque eles identificaram que pessoas que possuem uma mutação em uma única letra do DNA do gene BNDF, um fator de crescimento de células do cérebro mas que também está envolvido com comportamentos relacionados com ansiedade, não são suscetíveis a extinção. E estão fadados a viver sempre com medo de Joel ou de Clementine.
Schiller, D., Monfils, M., Raio, C., Johnson, D., LeDoux, J., & Phelps, E. (2009). Preventing the return of fear in humans using reconsolidation update mechanisms Nature, 463 (7277), 49-53 DOI: 10.1038/nature08637
Soliman F, Glatt CE, Bath KG, Levita L, Jones RM, Pattwell SS, Jing D, Tottenham N, Amso D, Somerville L, Voss HU, Glover G, Ballon DJ, Liston C, Teslovich T, Van Kempen T, Lee FS, & Casey BJ (2010). A Genetic Variant BDNF Polymorphism Alters Extinction Learning in Both Mouse and Human. Science (New York, N.Y.) PMID: 20075215

Você que é biólogo…


Sempre que ouvia essa frase sentia um arrepio. Alguma pergunta idiota estava por vir. Claro, nenhuma pergunta é idiota, dirão os pedagogicamente corretos. Mas é um fato científico, algumas perguntas são idiotas! O tempo passa e sempre, SEMPRE, alguém inicia a fatídica frase: Você que é biólogo… e, talvez por que eu esteja sendo mais complacente, ou por que tenho novos amigos, ou por que meus amigos estão ficando mais interessados (e interessantes) as perguntas não são mais idiotas. Tanto que me animaram a voltar a escrever no blog simplesmente para respondê-las. Um outro motivo é eu adorar falar, especialmente pros outros, meus amigos, e amigos deles, sobre ciência. Um tipo de catequese. No último final de semana, em São Paulo, onde fui assistir a duas rodas de samba especiais, respondi perguntas sobre as marés de sizígia, com direito a explicações sobre a natureza da gravidade, e o efeito Doppler. Vejam bem que, nem sempre, ou quase nunca, as perguntas são sobre biologia, o que aumenta em muito a minha capacidade de divagar sobre o assunto, e impressionar meus amigos parecendo que efetivamente entendo de tudo. E a maior prova de que não entendo, é uma pergunta bastante pertinente, feita há mais ou menos cinco anos, quando escrevi um artigo sobre o artigo de um outro amigo, que é a chance nacional de ganhar um prêmio Nobel, sobre os mosaicos do número de cromossomos no cérebro humano. A pergunta era sobre os efeitos do álcool nos nossos neurônios. Talvez por que quisesse dar uma resposta completa e adequada ao curioso, seguramente um bêbado, acabei deixando o cara na mão. Hoje, anos depois, ainda sem uma resposta completa, vou tentar me virar pra não deixar o curioso ainda mais ansioso. Ou seja: vou fazer um misto do pouco que sei sobre o assunto com um monte de divagações e torcer pra tentar impressionar! Existem diversos estudos que mostram que o álcool causa danos diretos no sistema nervoso. Ou seja, causa a MORTE dos nossos neurônios. Por sorte, nós temos bilhões deles e podemos nos dar ao luxo de perder alguns de vez em quando por uma causa tão nobre. Muitos dos efeitos são causados pela produção de radicais livres. O álcool é metabolizado em organelas celulares chamadas peroxissomos, que entre outras coisas, ajudam a célula a se livrar do peróxido de hidrogênio, que a maior parte de nós conhece como água oxigenada. Que deixa os pelos loiros, mas dentro da célula, produz radicas hidroxila, destruindo a membrana plasmática, os lisossomos, o DNA, proteínas diversas… e por aí vai. Essa é a mais provável razão da morte celular direta (necrose) e também da indução de morte celular programada (cujo nome chique é apoptose), que é um mecanismo para evitar que células com o DNA danificado se reproduzam formando, por exemplo, tumores. Como então o vinho, consumido em quantidades moderadas, parece ter um efeito benéfico a saúde? Por que apesar do álcool, o vinho é rico em substâncias antioxidantes. Que combatem os radicais livres. Não só os produzidos pelo efeito do álcool, mas aqueles outros produzidos no corpo diariamente. Está comprovado que pessoas que vivem em regiões (sul da Europa) que tradicionalmente consomem mais vinho, tem menos derrames e doenças do coração. Por outro lado, uma série de experimentos com camundongos demonstram, claramente, que o álcool afeta o equilíbrio e, principalmente, a memória de curto prazo. Nos famosos experimentos com labirintos, onde os camundongos mostram sua capacidade de “decorar” o caminho, os bichinhos que consomem álcool se enrolam todos pra chegar do outro lado. Nada que a gente precise de cientistas em laboratório pra já ter descoberto! E nem adianta comprar Ginkgo Biloba pra compensar. Os camundongos que tomaram o remédio não melhoraram em nada a sua performance no labirinto. Ou seja: é placebo! Quer um consolo: cigarro faz muuuuuito mais mal que o álcool. Quer uma solução? Sexo! O coquetel de hormônios produzidos pela excitação sexual e pelos orgasmos contribuem, entre outras coisas, pra aumentar nossas defesas imunológicas e antioxidantes. Mas se você beber até cair…

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